Guerra Civil: o relato do poeta Ademir Assunção sobre violência em Porto Alegre

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Porto Alegre, noite de 3 de junho, um dia após meu aniversário de 56 anos: depois de assistir a um bom trio de jazz no bar Odeon – piano, baixolão e percussão – seguimos a pé pela avenida Salgado Filho, rumo à Cidade Baixa, para comer um sanduíche – minha filha Naiara e Carlos, o namorado dela, Barbara, Gabi e um casal de amigas da minha filha. Menos de dois quarteirões de caminhada, nos deparamos com um grosso líquido vermelho escorrendo pela calçada da Salgado Filho e aquelas fitinhas amarelas, com listras negras, cercando o pedaço da calçada onde o líquido vermelho escorria. Notei que uma das fitas estava rompida. Notei uma caixinha de leite ao lado do líquido vermelho. Nenhuma viatura policial.

Percebi que minha filha, o namorado e as amigas apertaram o passo, enquanto caminhávamos entre barracas de moradores de rua. Relaxado pelas duas doses de Red Label, ainda comentei, brincando: “bá, como as gaúchas andam depressa”. Seguimos até a lanchonete Cavanas. Mal pedimos nossos lanches e uma briga estourou na porta da lanchonete. Um dos envolvidos parecia um morador de rua. O outro, parecia um garoto. Indiferentes, comemos nossos lanches e voltamos para casa.




Na manhã deste domingo, minha filha me mostra uma notinha no Facebook informando que uma pessoa havia sido morta num ponto de ônibus da Salgado Filho e duas outras haviam sido baleadas. Um carro passou pelo ponto de ônibus e abriu fogo – dizia a nota. Incrédulo, ainda pensei: não é possível, deve ser notícia falsa. Será que não deu em nenhum jornal? Procuramos o site do jornal Zero Hora e encontramos uma pequena notícia: uma van preta passou na noite anterior por um ponto de ônibus na Salgado Filho e abriu fogo. Uma pessoa morreu, duas outras foram baleadas. Uma das pessoas estava com um bebê de quatro meses no colo.

Isso ocorreu, segundo as duas notas, por volta das 22h30. Nós passamos por lá uma hora, uma hora e meia depois, no máximo. Não havia nenhuma viatura da polícia, repito. A “cena do crime” estava isolada por umas fitinhas amarelas. O líquido vermelho, grosso, escorrendo pela calçada, que pensamos ser groselha, possivelmente era sangue mesmo.

Até agora não consigo concatenar as ideias: era sangue mesmo? Houve uma chacina em plena avenida central de Porto Alegre uma hora, uma hora e meia antes de passar por lá com minha filha, o namorado dela, e mais quatro amigas, todas jovens? Um carro passou e abriu fogo? Não havia, uma hora e meia depois, nenhum resquício de investigação? Nenhuma viatura policial?

Até agora continuo pensando: como é possível se acostumar com isso? Como é possível passar diante de uma poça de sangue escorrendo pela calçada, apertar o passo e seguir indiferente? E se estivéssemos passando por ali uma hora antes? Será que estou ficando maluco? Será que devo olhar uma poça de sangue escorrendo pela calçada e seguir adiante, como se fosse uma cena banal?

Será que daremos graças aos céus por não ter acontecido com a gente, aconteceu com outro, o que se pode fazer? Será que quase ninguém está percebendo a guerra civil que está crescendo a olhos vistos nas grandes e médias cidades? E nas áreas rurais também? Será que quase ninguém percebe que enquanto persistir essa brutal desigualdade entre muito ricos gananciosos e muito pobres desesperados o gatilho da violência e da barbárie será a linguagem corrente dos dias e noites?

No momento em que escrevo esse texto, domingo à noite, vejo meus gatos brincando inocentemente entre os velhos vinis da casa e memorizo os versos de Itamar Assumpção: “às vezes me afundo / fico reclamando de tudo, de todo mundo / bate um desespero / ver alguém matar alguém / por meros trinta dinheiros / fato corriqueiro, mas não me acostumo / nem gosto do cheiro.”

Até quando os loucos poetas seres que andam pelas noites com os olhos abertos avisarão e não serão ouvidos?

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