Guerra no Oriente Médio: a primeira vítima – e a segunda

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Responsabilidade ao tratar da barbárie do conflito entre Israel e o Hamas é o maior desafio para a mídia e as redes sociais

Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora

“Na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade”




Autor desconhecido*

A espiral de barbárie em Israel e na Faixa de Gaza, deflagrada sábado (7) com o horrendo ato terrorista do Hamas, não vai arrefecer num futuro visível. O grupo mata, sequestra e tortura impiedosamente; de seu lado, o governo de ultradireita do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu aperta o torniquete colonial sobre os vizinhos palestinos: empenha seu desproporcional arsenal militar e, o clímax da crueldade, bloqueia até água e comida dos miseráveis além da cerca. Os dois lados não aceitam a existência dos oponentes, tentam varrê-los da terra, do mapa – e as mortes se multiplicam em escala geométrica.

No mundo patologicamente conectado, o conflito se espraia pelas redes sociais, exumando o aforismo sobre a verdade, que de tão batido virou clichê. A batalha digital tem importância quase tão grande quanto a militar, pelo poder de estabelecer algozes e vítimas, apontar mocinhos e vilões, sentenciar culpados e inocentes, aos olhos do planeta.

Duelo de narrativas tão dramáticas exige responsabilidade. Mas o predicado está a caminho de ser a segunda vítima, diante da ânsia generalizada por chocar, gritar mais alto, veicular o horror mais abjeto, denunciar o crime mais repulsivo. E na frente dos outros, com muito mais pressa do que juízo.

Palestinos protestam contra Israel incendiando pneus em Hebron: espiral de violência crescente. Foto Hazem Bader/AFP
Palestinos protestam contra Israel incendiando pneus em Hebron: espiral de violência crescente. Foto Hazem Bader/AFP

Apresentadores levantam a voz seguidas vezes, em excitada ênfase a cada coluna de fumaça que se ergue sobre os prédios bombardeados em chamas. São várias cenas semelhantes (todas terríveis), mas os narradores sustentam o vigor vocal desde a primeira da série. Acaba por soar repetitivo – se tudo é dramático, nada é.

Até aí, trapaças da transmissão ao vivo – como avaliar, em átimos de segundo, o tom exato para cada item da tempestade sangrenta? Mas a partir da quarta-feira (11), circula história que elevou o sarrafo da barbárie: bebês israelenses teriam sido decapitados pelo Hamas num kibutz, diante de câmeras. Houve desmentidos, até que, no dia seguinte, o governo de Israel divulgou umas poucas imagens, dentro da estratégia de vilanizar ao máximo os adversários.

Bota máximo nisso – porque, em verdade, não há como garantir que o massacre dos miúdos realmente aconteceu. O que se tem é a informação dada por um dos lados envolvidos. E aqui reside um par de dilemas da mídia que se pretende séria, criteriosa, profissional: tratar como verdade ou não o relato de uma das partes do conflito; e a forma de abordar assunto tão delicado e trágico.

O perfil oficial do Ministério das Relações Exteriores de Israel no Twitter e o próprio Netanyahu divulgaram três fotos de bebês martirizados – sem qualquer comprovação do contexto. Alguns órgãos de imprensa trataram como verdade, escorando-se no governo que foi para a guerra. Mas, na era das fake news, torna-se impossível garantir que não é somente a estratégia da vilania do outro. Afinal, o primeiro-ministro milita na mesma extrema-direita de Trump, Bolsonaro, Orban e outras excrescências que usam a mentira como veículo de poder. Ou seja: convém desconfiar.

Se, tragicamente, for real, brota o outro dilema – como abordar o fato? O sensacionalismo manda divulgar as imagens e soltar os comentaristas mais histéricos que gritarão contra a barbárie. A audiência, naturalmente, responderá com números crescentes. Mas não será ético, pelo delito de exploração da barbárie.

Tudo indica que a guerra se arrastará por meses, talvez anos, como novo capítulo sangrento do conflito milenar. O ódio se acirra também nas redes sociais, com acusações dos dois lados, abordagens inflamadas, críticas contundentes. Boa parte da veemência se alimenta do desconhecimento numa odisseia de muitos lados, aspectos, interesses, crenças e personagens complexos. Prato cheio para quem não se importa em ser irresponsável e leviano.

Assim, a temperança urge, até que venha a (distante) paz. Se a verdade morreu, a responsabilidade precisa sobreviver.

****

*A frase que abre o texto é atribuída a vários autores, entre eles Ésquilo, dramaturgo da Grécia antiga, o senador americano Hiram Johnson e o político britânico Phillip Snowden.

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