Por Gleyson Melo, publicado em Brasil de Fato –
No #OcupaBrasília, resgatamos décadas de luta que nos recuperaram as lições do passado e os desafios do futuro
Esse ano se comemora os 100 anos de uma tomada de consciência coletiva de um povo que inegavelmente mudou a paisagem do mundo. Estamos falando dos 100 anos da revolução Russa em 1917 e seu principal dirigente político, Wladimir Lênin, que nos deixou de modo muito oportuno para o período em que vivemos a famosa frase: “Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem.”
Como bom conhecedor dos movimentos da história humana e por conseguinte das lutas de classes, Lênin, o velho marinheiro, sabia que os movimentos da história oscilam entre momentos de profunda calmaria e momentos de tempestades em mar revolto dessa mesma história.
Nesses períodos de calmaria, a luta de classes não desaparece, mas se dá nos subterrâneos do cotidiano incorporado a sua normalidade. Está ali sendo maturada dia a dia, por ações das classes em luta, seja por meio de mecanismos de controle mais sutis, sem o uso necessário da força e/ou somada à repressão das classes dominantes, seja pelas ações muitas vezes isoladas e espontâneas, chegando até a greves por parte dos trabalhadores, revelando dessa forma os níveis de consciência daquele momento em particular. Nesse caso tanto as classes dominantes como as classes dominadas levam para si os aprendizados que serão fundamentais aos enfrentamentos futuros. Neste caso, seriam “as décadas em que nada acontece”.
Já nos tempos de tempestades no mar da história, em que as classes dominantes concentram toda sua força e poder nas formas mais visíveis de repressão, sem nenhum pudor, fazendo questão de exercer o uso da violência como contenção e lição aos dominados, as respostas – num nível de consciência coletiva elevado – por parte das classes dominadas e exploradas agem com mais intensidade e força, como se partissem em dado momento para o tudo ou nada.
Eis as semanas em que “décadas acontecem”. Nesse último caso, a conjuntura se mostra acelerada e dinâmica, como se a cada dia fosse uma década. Tanto as classes dominantes quanto as classes dominadas, devidamente estudadas e confrontadas, sabem dos mecanismos que uma e outra são capazes de realizar, como se toda história tivesse ali condensada e pronta, sob uma memória coletiva de lutas e desfechos, já conhecidas por ambas.
Acessar essa memória e as alternativas dos seus desfechos são e devem ser mediadas pelas condições do presente, sob o risco de repetir os erros do passado colecionando mais derrotas, ou de cristalizar saídas que não condizem em nada com as formas organizativas e de luta exigida pelo presente momento.
Pois bem: não nos resta dúvidas que o dia 24 de maio de 2017 entra para a história do Brasil como um desses dias em que são resgatadas décadas de luta entre as classes dominantes e as classes dominadas, nos recuperando as lições do passado e os desafios do futuro.
Curiosamente no nosso país, nos anos que antecederam o golpe militar de 1964, foram marcados por uma forte repressão ao movimento camponês, com as prisões, torturas e assassinatos das lideranças das Ligas Camponesas na região nordeste, a exemplo de Nego Fuba, Pedro Fazendeiro, Elizabete e João Pedro Teixeira. Portanto, o primeiro setor a ser violentamente testado seu poder de luta e resistência, já que se acreditava que dali poderia sair um enorme exército armado. Não é simples coincidência da história que, no mesmo dia do #OcupaBrasília, 11 trabalhadores foram assassinados no Município de Pau D’arco, no Estado do Pará, e informação de que outros 14 foram baleados até o momento.
No campo institucional, o Congresso aprova a medida provisória 759/16, que amplia a legalização de terras na Amazônia Legal, saindo dos 1,5 mil para 2,5 mil hectares de terra. Na prática legaliza e amplia a grilagem de terras. Com isso, as elites simultaneamente usaram no mesmo dia os dois mecanismos para barrar o avanço da luta pela reforma agrária. Numa ponta a violência, e na outra, uma manobra legislativa se aproveitando da saída da oposição que protestava contra o uso do Exército para reprimir a manifestação na frente no Congresso Nacional.
Enquanto isso, na cidade do Rio de Janeiro, a Assembleia Legislativa aprovava o Projeto de Lei que ataca os servidores públicos, aumentando a contribuição previdenciária, numa clara demonstração de arrocho em que os trabalhadores pagarão as contas pela crise econômica. O tentáculo neoliberal do modelo grego do pacote de austeridade, enxugando os gastos públicos, demonstrou que apesar do barulho segue tranquilo, e em breve chegará aos outros estados. Enquanto isso, na parte de fora da Assembleia fazia-se uso do que se tem de melhor para garantir seus os interesses frente a qualquer tipo de reação: o uso da força e da violência policial.
Em São Paulo, a polícia de Geraldo Alckmim (PSDB) e o prefeito João Doria (PSDB) davam demonstração de que, em nome da especulação imobiliária, são capazes de demolir casas ocupadas por dependentes químicos e moradores de rua, mesmo que caiam por cima deles. Os graves problemas de saúde pública e moradia são tratados como casos de polícia.
Por último, em Brasília mais de 200 mil pessoas de movimentos populares e centrais sindicais marcharam em direção ao Congresso contra as “reformas” trabalhistas e da Previdência, pedindo o “Fora, Temer” e eleições diretas. Porém, foram recebidas com violência pelas forças policiais, cães raivosos, balas de borrachas, bombas de efeito sem nenhuma moral, gás de pimenta e lacrimogênio, cavalaria. Elementos que compõem o aparato repressor do governo federal.
Contudo, diante da brava resistência das melhores filhas e filhos do povo brasileiro, que se recusaram a sair de imediato da frente do Congresso mesmo sob forte repressão, eles tomaram o céu de assalto. Dali em diante foram convocadas as Forças Armadas para entrar em cena, trocando a força do direito pelo direito da força. As cenas que se seguiram nesse dia 24 de maio são épicas e ficarão marcadas profundamente na memória do povo brasileiro, como a entrada desastrosa da cavalaria no meio da multidão, onde um dos policiais literalmente cai do cavalo. Ou ainda dos flagrantes da Polícia Militar atirando com arma letal, deixando pessoas gravemente feridas.
Certamente, muitos dos manifestantes que agora descansam nos encostos das cadeiras dos ônibus de volta para casa já trazem nas marcas da repressão e violência o tamanho e disposição da classe dominante em garantir os seus interesses, mas, sobretudo, demonstraram o tamanho da ousadia e coragem de que cada um e todos são capazes para retirar do poder um governo ilegítimo, exigindo eleições diretas para que de fato possa se restabelecer a normalidade democrática no país. Que abra caminho para uma profunda reforma política por meio de uma Assembleia Constituinte e, portanto, um programa emergencial que garanta emprego, renda, moradia, saúde e educação.
Como dizia o escritor Rubem Alves, “o prazer engravida, mas só o sofrimento faz parir.” Esse é o exemplo pedagógico que as massas deram hoje para si mesmas e para as futuras gerações. Mesmo no luto dos 11 companheiros assassinados, mesmo com a repressão e violência, as forças populares e progressistas de nosso país já estão grávidas do novo.
*Gleyson Melo é militante da Consulta Popular e constrói a Frente Brasil Popular
Edição: Luiz Felipe Albuquerque
Foto da capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil