Há dois anos, Ricardinho foi morto por um PM que gostava de brincar de Hitler

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Por Aline Torres, Ponte / Carta Capital – 

Em 20 de janeiro de 2015, surfista foi baleado nas costas, aos 24 anos, pelo PM Luís Brentano. Condenado, policial cumpre pena em quartel

Na casa de Luciane há um canto vazio.




Luciane, mãe de Ricardinho, assassinado há dois anos por um policial bêbado

Porção de quarto antes dividida com os dois irmãos. Agora espaço de memórias, santuário de pranchas. Dizem alguns, quarto de filho morto deve ser desocupado! Mas o que fazer quando há vida pela casa? Nem é preciso fechar os olhos. Nas grades do portão enxerga o moleque arteiro, cinco, seis anos no máximo, a gritar, “ei moço, moço, vai surfar? Me leva também?”. Menino danado se deixava levar por qualquer um! Mas também quem lhe faria mal? Não para o Ricardinho da Guarda! Nascido e criado num pequeno paraíso catarinense, a Guarda do Embaú, talhado pelo Rio da Madre, entre o mar e a Serra do Tabuleiro. Balneário do município de Palhoça (SC), com menos de 400 moradores. Artesãos, pescadores, surfistas, pequenos comerciantes, gente que escolheu viver em paz.

Luciane pensa mais longe, no mar. Na lembrança, Ricardinho sendo levado pelo primo para as primeiras ondas. O menino com sua bodyboard queria prancha maior. Nasceu para provar valentia, era o primogênito. Sendo o orgulho da família, tentava suprir a ausência do pai, não que o pai estivesse morto, apenas não o quis.

Luciane se separou aos 19 anos com quatro meses de gravidez. Era um namoro de adolescência, frágil à vida nova que crescia no seu ventre.

Quando deu à luz avisou o ex por carta. Disse que o menino nasceu no dia 23 de maio, bonito e saudável. Propôs que ele o conhecesse.

A resposta ao convite demorou mais de duas décadas. A televisão avisou. Parecia grave. Tiros. Cirurgias. Ricardinho recebeu a esperada visita do pai quando estava em coma no hospital.

Se não tivesse abandonado o filho teria ouvido uma porção de glórias. Desde 2008, Ricardinho participava da Liga Mundial de Surfe. Queria as ondas gigantes pesadas tubulares. No mar, Andy Irons foi o modelo. Na vida, a mãe, Luciane.

A carreira começou para valer em 2012. Em Teahupoo, no Taiti, eliminou Kelly Slater, 11 vezes campeão mundial, o australiano Taj Burrow e só caiu diante de Mick Fanning. Terminou na quinta posição, mas levou para casa o prêmio Andy Irons Forever, por ter feito a apresentação mais inspiradora. Honraria tão importante, troféu com nome do ídolo. No ano seguinte, foi o primeiro brasileiro premiado no Wave Of The Winter pela melhor onda surfada durante a temporada havaiana. Em 2015 foi selecionado entre centenas para competição de abril em Carcavelos, Portugal.

No quarto, troféus, fotografias, o cheiro do filho nas roupas. Luciane percorre. Por quanto tempo ainda sentirá o filho? Por quanto tempo sentirá? O quarto dói, a cidade dói. Ricardo dos Santos, 24 anos, assassinado por um policial militar.

A vida de Luciane para sempre um canto vazio.

* * *

Foi tão rápido. Mauro da Silva tem fresco na memória. Ele e o sobrinho Ricardinho acordaram cedo. Era segunda-feira, dia 19 de janeiro de 2015, levavam as ferramentas para restaurar o encanamento da casa do avô Nicolau, que ocupou o lugar do pai do surfista.

Um dia antes ele propôs para o avô, “pai, você vai ficar velhinho e não vai mais conseguir consertar, quero aprender, assim faço quando você não puder”.

Ricardinho gostava de ser o homem da casa. Era o papel que melhor lhe cabia. Cuidava dos irmãos, pagava escola particular, os vestia com boas roupas, ajudava a mãe com as contas, não negava nada à família.

Foto: Henrique Pinguim

Ele e o tio trabalhavam quando o C4 prata estacionou em frente à obra. Eram dois, estavam bêbados. O mais novo desceu do carro para urinar. O outro envenenou o som do automóvel, pegou mais bebida, sentou no capô. Mauro viu o sobrinho se aproximar dos caras, três minutos de conversa. Ele pediu para que saíssem, tinham muitas famílias e crianças ali, não era lugar pra zoeira. Não teve discussão. Os homens concordaram, entraram no carro. Mas, antes de arrancar o policial Luis Paulo Mota Brentano, do 8º Batalhão de Joinville, deu três tiros em Ricardinho. Nas costas. Perfurou baço, fígado, pâncreas e intestino e fugiu.

Mauro ficou paralisado. Era verdade? “Tio! Faz alguma coisa, anota a placa, pelo amor de Deus”, foi a última frase que ouviu do sobrinho.

No Hospital de São José, Luciane, abraçava amigos e parentes. “O pior já passou”, repetia. Não, o pior viria com força. Nenhuma das quatro cirurgias controlou as hemorragias. Minutos antes, o homem que Ricardo sonhou a vida inteira conhecer tinha chegado ao hospital. Era tarde. Às 13h, do dia 20, Ricardinho teve uma parada cardíaca, morreu. Mauro lembra os gritos de Luciane. “Não é verdade! Por que com meu filho? Ele é tão bom!”

* * *

Luis Paulo Mota Brentano, 25 anos, foi preso poucas horas depois de atirar. Estava escondido numa casa alugada pelo pai para a família passar as férias, na Praia da Pinheira, pertinho da Guarda. O adolescente, comparsa no crime, é seu irmão. Levado para Unidade Militar respondeu o de praxe: “foi legítima defesa”.

A nota oficial da PM veio na proteção do assassino. Chamou Ricardinho, internado na UTI de “suposta vítima”. O policial militar, que já foi réu em quatro processos na Justiça Militar, nos quais foi absolvido, disse que o surfista o ameaçou com facão. A perícia não encontrou o tal facão.

Quando o óbvio foi perguntado, “legítima defesa vale para tiros nas costas, a menos de 60 cm, sem prestar socorro, pior ainda, tendo fugido?”, o discurso mudou. “Os tiros eram para assustar”, a defesa do PM alegou. O comandante-geral da Polícia Militar de Santa Catarina na época, coronel Paulo Henrique Hemm, falou em “mau exemplo” e disse ser esse um “caso isolado”.

Os colegas também provaram a cumplicidade. Fardados e com armas, 53 policiais militares interromperam a missa de sétimo dia realizada no centrinho da Guarda. Eles carregavam a faixa “Daqueles que clamam por justiça esperamos a verdade”. O soldado Fernando Fernandes, vestido com a camiseta “Não à Imprensa Sensacionalista”, explicou que esperava que não fossem forjadas provas contra o Brentano, que merecia o direito à defesa.

Fernandes temia a pressão dos ídolos do surf nos jornais nacionais. As notícias quebraram o silêncio do Comando Geral da PM em Florianópolis: “Medina e comunidade do surf lamentam morte de Ricardo dos Santos” (UOL), “Alejo Muniz faz homenagem ao surfista Ricardo dos Santos” (Folha), “Kelly Slater faz homenagem emocionante a Ricardinho” (O Globo).

Uma investigação interna foi instaurada. Aviso dado em coletiva de imprensa.

Ricardinho virou símbolo de injustiça. Menos de um mês depois do seu assassinado, foi homenageado no desfile de carnaval da escola Unidos da Ilha da Magia. Enquanto seu carro “Tolerância, a onda que pode salvar vidas” entrava na avenida, a PM matava mais quatro em Florianópolis.

***

O envolvimento de policiais militares de folga em ocorrências graves não é incomum. Dados do próprio Comando Geral de Santa Catarina mostram que, em 2015, além de Brentano, 59 policiais militares usaram a farda como justificativa de ações violentas fora do trabalho.

A PM catarinense é letal. Segundo o 8° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, é a sétima que mais mata no país. Mesmo que o Estado tenha a menor taxa de homicídios. Em 2014 houve um aumento em relação ao ano anterior de 94% do número de assassinatos cometidos pelas polícias militar e civil em Santa Catarina. Em 2015 o índice cresceu mais 25%. E, no ano passado, outros 15%.

Nos últimos seis anos, 302 pessoas foram mortas pela PM. Metade dos agentes do Estado foi denunciada pelo Ministério Público por crimes militares neste período .O número poderia ser maior, mas alguns agentes respondem a mais de um inquérito. São 6.451 investigações para 11, 5 mil policiais: sendo 107 exonerações, apenas quatro por letalidade.

O promotor Raul Rabello diz que as expulsões comuns são por peculato e corrupção. Matar é banalidade no Brasil: a cada dia, seis morrem pela PM. O 8º Anuário divulgou também que, em cinco anos, 11.197 pessoas morreram por policiais no país, o equivalente a 30 anos de matança nos EUA.

O município com maior letalidade policial em Santa Catarina é Joinville. Cidade de Luis Paulo Mota Brentano. O soldado entrou na corporação em 2010. No mesmo ano seu perfil agressivo foi percebido pelos superiores.

Em episódios distintos, espancou gravemente dois jovens. Estava de folga. Também foi denunciado por tortura. Nos fundos da Central de Polícia de Joinville brincou de Adolf Hitler com um garoto de 20 anos.

Homenagem feita a Ricardinho em janeiro do ano passado

O jovem filmava uma partida de futebol na Arena Joinville. Brentano disse para desligar a câmera. Foi retrucado. Bastou. Ele carregou o garoto para o camburão. Na salinha da DP, o espancou por horas, testou a roleta-russa. “Tu sabe, né? Se eu quiser, te mato e ninguém vai saber. Vou fazer igualzinho ao Hitler”.

O Capitão Ribeiro ficou sabendo do caso e escreveu um ofício à chefia da PM.

“A análise dos fatos, bem como o histórico funcional do indiciado, revela que o soldado Mota trata-se de uma pessoa agressiva, não sendo o primeiro caso que responde com atos de violência injustificada. Em razão do comportamento agressivo demonstrado sou de parecer que o soldado deve ser retirado imediatamente da atividade fim, sendo absolutamente desaconselhável autorizar o registro de porte de armas particular ou da corporação”.

O promotor de Justiça Affonso Guizzo Neto também interveio. Falou pessoalmente com o soldado para que ele trabalhasse apenas na administração. O Ministério Público de Santa Catarina solicitou ao comando militar seu afastamento operacional.

Brentano continuou nas ruas, continuou armado. Assim como os policiais que torturaram covardemente um autista nas ruas de Blumenau no mesmo ano. Indefeso, obrigado a segurar um cão policial, o homem foi espancado, sem motivo, por prazer. Foi tão grande o estrago que a Samu o recolheu para internação hospitalar. Os policiais? Na ativa.

Igualmente não perdeu sua arma o policial que matou Doglas Vogel, 22 anos. O jovem e a amiga ouviam música alta no som do carro, em São Miguel do Oeste, quando foram abordados. O policial disparou com uma espingarda calibre 12. Doglas morreu na hora. O policial justificou dizendo que se confundiu. Achava que a espingarda estava munida com balas de borracha.

Já Anderson de Matos, 32 anos, deveria ter sido internado. O Samu (Serviço Médico de Urgência) foi convocado ao bairro Aririú, em Palhoça, para conduzir o esquizofrênico. Chamou a PM para auxiliar, mas, como ele não cooperou, foi morto. O policial que efetuou o disparo foi submetido a tratamento psicológico.

Dias após a morte de Ricardinho, a PM disparou 195 tiros de fuzil contra o carro de um suposto foragido em Florianópolis. Matou três pessoas.

Em maio do ao passado, o advogado Roberto Luís Caldart, 42 anos, foi espancado até a morte por cinco policiais militares, que foram contratados como capangas de um construtor, que invadia terrenos, simulando reintegração de posse. Os homens foram presos por pressão da OAB. Mas quatro deles já haviam sido condenados por outros crimes, como tortura, e permaneciam na ativa.

Os casos listados para o coronel Hemm não alteraram sua resposta. O Comandante Geral da PM Catarinense repetiu: “são casos isolados”.

***

Chovia fino. Não havia capela na cidade que comportasse a multidão que queria se despedir de Ricardinho. O padre José Artulino Besen ofereceu o salão da Paróquia Santa Terezinha, com 200 lugares. Não bastou. A fila contornava a quadra, ignorava a chuva. Mais de 1500 pessoas tocaram o caixão que em nenhum momento foi aberto, por recomendação do IML, em consequência dos ferimentos profundos no corpo do surfista.

Na tampa de mogno escuro, numa foto preto e branco, Ricardinho sorria, enquanto, Luciane se descontrolava. Alternava silêncios com gritos de “por que fizeram isso com você, meu filho?”. O luto não estava nas roupas. Quase todos vestiam branco, símbolo da paz banida do paraíso catarinense.

O enterro começou às 10h. No cemitério da cidade vizinha, Paulo Lopes. O caixão, no entanto, foi coberto por cimento próximo ao meio-dia. Apesar do cansaço, muitos precisavam falar. A tia de Ricardinho, Juciane dos Santos, cantou a música da Legião Urbana, “É tão estranho. Os bons morrem jovens”.

Karol Esser, namorada de Ricardinho há oito anos, repetia tocando a foto do companheiro “Você vai ficar bem, vai ficar bem”. A comunidade protestou por justiça. Pediu que a Guarda do Embaú pudesse ser novamente uma comunidade onde as crianças são criadas soltas na praia.

Muitos amigos do esporte estiveram presentes, como Alejo Muniz, Renan Rocha, Jaqueline Silva, os irmãos Thiago e Bárbara Müller, o skatista Alan Mesquita, além do fotossurfista William Zimmermann, que fez a última foto de Ricardo dos Santos. Os que não puderam comparecer enviaram mensagens.

Seu Nicolau falava com os presentes, consigo, com o neto e com Deus ao mesmo tempo. Aos 74 anos, não dormia desde que viu o neto ser baleado no portão de casa. “Meu neto me chamava de pai. Que Deus te proteja, meu filho, e te dê uma prancha. Ele vai ver que você já nasceu com cara de surfista”.

Seu Nicolau não permitiu que os coveiros acimentassem a cova do neto. Só ele selaria o fim do menino que recebeu neste mundo. No balde de cimento enfiava as mãos trêmulas, navalhadas pelo tempo. Pouco ao pouco cobria o caixão, murmurando frases inaudíveis, mais fortes que suas palavras, no tamanho exato da dor. Ricardinho parou de sorrir. Foi coberto de cinza.

***

Brentano foi acusado por homicídio triplamente qualificado, embriaguez ao volante e motivo torpe. No dia 16 de dezembro de 2016, após dois dias de julgamento, sete jurados decidiram o destino do ex-PM: 22 anos de prisão.

Mesmo expulso da corporação, após seis meses de trâmites do processo, ele permanece preso no 8º batalhão, em Joinville, onde trabalhava, para “proteger sua integridade física”.

Pela lei, o ex-policial não poderia cumprir pena em um quartel. Mas seu advogado Leandro Gornicki Nunes conseguiu uma liminar justificando que Brentano pode ser assassinado em um presídio por ter servido à corporação. O comandante da PM em Joinville, Nelson Coelho, disponibilizou um espaço confortável para o ex-funcionário. Brentano fica em uma residência militar, com ampla suíte, equipada com televisão e geladeira, sala de visitas e pátio.

***

Para Luciane, a prisão do assassino não trará alívio. A cada canto é uma dor. “O Ricardinho está no mar, nas trilhas, no centrinho. Essa presença me machuca. Quero meu filho, mas não posso tê-lo”.

Luciane tem outros dois meninos. João Antônio, 18 anos, e Martin, 12, que quer ser surfista como o irmão.

“Mas é diferente, sabe? Ele fala isso porque vê no irmão um ídolo. Mas o Ricardo morava no mar. Deixava de brincar na rua, de jogar videogame, de ir às festas dos amiguinhos. Ele nasceu surfista. O engraçado é que meu medo era do mar. Nunca imaginei que um policial que levaria meu filho”.

Homenagem feita a Ricardinho em janeiro do ano passado

Luciane, moradora de uma comunidade pacata, acreditava que polícia era proteção. Sua visão mudou. “Quem me garante que não são bandidos? Quer dizer, até conheço policiais trabalhadores. Mas não consigo confiar em nenhum deles, entende? Não sei o que acontece em sigilo. O que fica guardado. Sei que meu filho foi assassinado pelo Estado, como muitos outros filhos. E ninguém faz nada para evitar essa matança”.

Luciane e Seu Nicolau criaram um hábito novo. Eles acompanham nos noticiários casos de jovens que foram baleados por policiais. Não é um conforto, é um encorajamento. Saber que outros pais suportam dor parecida e conseguem seguir. “Sou obrigada a viver”, justifica Luciane.

Qualquer mergulho exige limite. Quando o alento vira revolta, Luciane busca ocupar a cabeça com a faculdade de Turismo. Ela se matriculou um ano após a perda do filho. Também começou a ler livros espíritas que a conectam com seu menino.

Seu Nicolau cultiva orquídeas e trama cestas com velhos fios de luz.

“Deus conforta, filha. Não podemos nos entregar à dor intensa. É um dia por vez, até nos juntarmos a ele”, ensina o pai/avô.

***

Dia 20 de janeiro do ano passado, dezenas de pessoas fizeram um círculo de saudações a Ricardinho. No mar. Quem tinha prancha foi remando, os outros foram de barco. Atravessaram o Rio da Madre, encontraram as primeiras ondas, choraram e rezaram pelo amigo. Em terra, foi celebrada uma missa e inaugurada uma placa no centrinho da praia da Guarda em formato de prancha.

Nesse ano, fizeram a tradicional homenagem no mar e outras duas comemorações, pelo reconhecimento da Guarda como Reserva Mundial do Surf pela Save The Waves Coalition, entidade americana que concede título.

E pela criação do dia do surfista, que será comemorado todo dia 20 de janeiro — projeto da Prefeitura de Palhoça aprovado pela Câmara Municipal.

***

Na Guarda, ninguém conhece George de Almeida Junior, 55 anos, pelo nome. O que não descarta sua importância. O professor Madeira, como é chamado, ensinou mais de mil crianças a surfar. Ricardinho, entrou na terceira turma do projeto, aos 6 anos. “Era coisa mais querida. O menorzinho da temporada, barrigudinho e inquieto pelo mar”, recorda o professor.

Nos cinco anos que passou ao lado de Madeira, Ricardinho aprendeu a base do surfe. Fora e dentro d’água. “Se você perguntar se ele tinha algum desafeto vou te responder com certeza que não. Ele era um garoto tranquilão, não discutia com ninguém. Aqui na Guarda é comum brigas sobre a prioridade das ondas. Sabe como é? Quem mora na comunidade tem preferência para pegar as boas ondas. Isso sempre dá confusão com quem é de fora. Mas nem nessas questões comuns aos surfistas o Ricardinho se envolvia”.

Levava o esporte a sério desde a infância. Queria ser o primeiro a demonstrar habilidades na prancha. Treinava o dia inteiro. Aprendia com os mais velhos, como o atleta e shaper Carlos Kxot, 51 anos, pai da surfista prodígio Tainá Hinckel, 13 anos, que faz parte da geração inspirada em Ricardinho.

Tainá entrou para a escolinha do Madeira com a mesma idade de Ricardinho. É atrevida. Rasga ondas, manobra batidas potentes, se agiganta nos mares que os gigantes temem, dos corais, belos e mortais, mares da Indonésia e do Havaí, que desbravou criança com patrocínio de grandes marcas, atentas aos talentos da Guarda. Com ela, outros seis ex-alunos do Madeira são candidatos ao topo do ranking do surfe profissional, quiçá futuros campeões olímpicos.

“Essa molecada vê o Ricardinho como o herói. Mas o mais bacana é que eles seguem o exemplo dele. São disciplinados. Na adolescência trocam os bares e bebidas por uma vida saudável, integrada à natureza”, conta o mestre Madeira.

No mar todos são iguais. Nas competições, não. Tainá quer acabar com a segregação feminina. Poucos duvidam que consiga. Na praia de Maresias, em São Sebastião, no litoral paulista, foi a primeira menina a vencer a etapa do Circuito Medina. No ano passado venceu o campeonato sul americano e no dia 6 de janeiro desse ano disputou o mundial com os melhores surfistas com menos de 18 anos.

Tainá oferece as vitórias a Ricardinho. O menino da Guarda ainda soma troféus. Na elite do surfe, Adriano de Souza, o Mineirinho, surfou a onda mais alta, o título de campeão mundial de 2015, e dedicou ao amigo.

“Queria dedicar esse título ao meu bom amigo, Ricardo dos Santos. Para o campeonato fiz a mesma tatuagem que ele tinha no braço – Força, Equilíbrio e Amor. Senti uma sensação incrível: ele estava aqui”, disse em coletiva.

Para Madeira os títulos dedicados a Ricardinho são mérito do seu caráter. “Ele ficou famoso, mas não virou estrelinha. Ao contrário, eu percebia que ele sempre fortalecia o elo com os amigos, principalmente, os da infância. Ele amava a Guarda, as pessoas daqui, era o paraíso dele”.

Ricardinho que iniciou a campanha há três para Guarda se tornar a Reserva Mundial do Surfe. Ele também era embaixador da Associação de Preservação da Guarda do Embaú. Promovia entre os surfistas mutirões de limpeza.

Ricardinho com a mãe e o irmão Martin

Constantemente Ricardinho desabafava com os amigos sobre as festas proibidas na areia da praia. A Guarda virou moda. A invasão dos baladeiros, consequentemente do tráfico, desfile habitual. A Associação dos Moradores solicitou blitz na entrada da comunidade. Eles temiam que as crianças se cortassem com os cacos de garrafas. Mas nesse texto, o surfista prediz um crime.

“Só para deixar bem claro, este não é um texto de um surfista profissional, mas de um cara que nasceu e cresceu em um lugar abençoado. Quem não sabe onde é esse lugar maravilhoso? Quem não sonha em viver em um lugar assim? Quem nunca aproveitou um verão nesse lugar lindo? Quem não adoraria ter uma casa nesse pedaço do céu? Pois é! Hoje parece que esse pedaço do céu está perdendo seu encanto, parece que as pessoas já não valorizam mais o fato de estar em um lugar lindo e puro.
É com um imenso sentimento de tristeza que escrevo isso, mas a Guarda está sendo destruída. Bons eram os tempos em que a Guarda era lugar de maconheiro, vagabundo, hippie etc. Agora, em vez disso, nós temos bandidos!
Eles ficam com seus carros de som à noite toda circulando ou parados no meio da praia, tocando uma musica medíocre no volume mais alto possível e deixando lixo por todos os lados. Que coisa mais linda, né?!
Aí, você diria: ‘Ah, mas isso não é possível. Como a população permite uma coisa dessas? Como a polícia permite algo desse nível na ‘pérola’ do estado? Como os políticos lidam com um absurdo desse? Eu diria que os moradores não fazem nada porque ficam com medo de tomar um tiro.”

Quatro anos depois, Ricardinho seria assassinado.

***

Quando Karol caminha pela Guarda vê Ricardinho no céu. Se as nuvens estão cinzas, a chuva ameaça, mas de teimosia o sol brilha, para ela é sinal. Seu amor da vida inteira não mora mais no mar. Flana, ama, flana, pelas ruas onde viveu. É o anjo da Guarda. E às vezes, em sonho, ele visita Luciane. Preenchendo na rapidez dos milagres o abismo deixado por três balas.

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