Trabalhando há mais da metade dos seus 73 anos atendendo a população de rua e imigrantes em sua paróquia na zona leste de São Paulo, o padre Júlio Lancellotti é uma das maiores referências do assunto, conhecendo de perto a realidade e problemas enfrentados por este grupo vulnerável, à frente da Pastoral do Povo da Rua, ligada à Arquidiocese de São Paulo.
Por Gustavo Basso, compartilhado de Yahoo
Ao longo dos 21 anos de censos da população de rua na capital paulista, Lancellotti viu a população sem moradia triplicar em relação ao total de habitantes, apenas levando em consideração os números oficiais.
“Há problemas metodológicos sérios com os últimos censos realizados em 2019 e 2021, e nenhuma das entidades que lidam com a população em situação de rua independentes da prefeitura e por isso com liberdade para falar, dá credibilidade a esse resultado”.
O censo de população de rua realizado pela agência Qualitest, contratada pela Secretaria Municipal De Assistência E Desenvolvimento Social (Smads), revelou que ao final de 2021 havia em São Paulo 31.884 pessoas em situação de rua. Destas, 19.209 foram contadas nas ruas, e 12.675 nos centros de acolhida. O número de famílias nas ruas quase dobrou.https://dk79lclgtez2i.cloudfront.net/bQ3ePR7
Em comparação com o último dado antes da pandemia do coronavírus e a crise disparada por ela, houve um aumento de 31%, ou mais de 7,5 mil pessoas sem condições de pagar uma moradia.
Este aumento em dois anos é maior do que toda a população em situação de rua do município do Rio de Janeiro, conforme resultados do estudo realizado no referido município em 2020, onde foram encontradas 7.272 pessoas em situação de rua.
“Na vivência diária nós percebemos que o aumento em relação a 2019 é muito maior do que 30%; acredito que nós temos no mínimo de 35.000 a 40.000 pessoas em situação de rua”, afirma Lancellotti, enquanto lista alguns problemas do levantamento realizado para a Prefeitura:https://dk79lclgtez2i.cloudfront.net/4BcYOc7
“É um problema de conceito básico: Só é população de rua se estiver dormindo na calçada ou estiver em abrigos municipais; não contaram o pessoal que está embaixo do viaduto da avenida Salim Farah Maluf ou embaixo do viaduto Alcântara Machado… são pessoas que fizeram barracos, mas são populações em situação de rua”.
A própria empresa apresentou um relatório preliminar apontando as dificuldades que tiveram de abordagem, de lugares para entrar, considerados inacessíveis ou que acharam sem segurança. De acordo com o documento, as equipes de abordagem relataram situações de risco em áreas onde há concentração de usuários de drogas e até dificuldade em acessar barracas em trilhas no matagal.
Nesses casos, a contagem de pessoas foi feita de forma visual ou a partir de relatos de pessoas no entorno, como comerciantes, ambulantes e outros sem-teto, segundo o documento.
Na quarta-feira (26) o MP (Ministério Público) de São Paulo pediu esclarecimentos à Prefeitura sobre como foi feito o censo da população em situação de rua divulgado no domingo, dando 15 para explicações.
O promotor Ricardo Manuel Castro enviou um ofício à SMADS pedindo que ela detalhe a metodologia da pesquisa com a intenção de entender como foi feito e se as conclusões podem ser consideradas confiáveis.
Segundo informações do MP, um inquérito está em andamento para entender como foi feito o censo e saber se os resultados são confiáveis. Outro ponto que a prefeitura precisa esclarecer é se consultou organizações sociais de apoio a essa população no decorrer do censo.
Descarte humano
A primeira contagem da população de rua paulistana foi realizada em 2000, durante a gestão da então petista Marta Suplicy. Naquele ano, havia, segundo o levantamento, 8.706 pessoas vivendo nas ruas e abrigos da capital.
Desde aquele ano, essa população mais vulnerável aumentou em 3,7 vezes, considerando apenas os dados oficiais. No mesmo período, em comparação, a população da cidade aumentou apenas 18%. A desigualdade é alvo de crítica de Lancelotti diante do modelo econômico aplicado no país.
“Se você observar o relatório da Oxfam [publicado no último dia 16 de janeiro], a cada 26 horas aumenta o número de bilionários. A desigualdade aumenta, é uma questão de classe. O neoliberalismo não pune a elite, o neoliberalismo pune os pobres”, reclama. “Em termos de neoliberalismo, somos muito eficientes; em termos de descarte humano, somos muito eficientes; em termos de desprezo a vida dos pobres, somos muito eficientes”.
O documento da organização internacional apontou ainda que os 10 homens mais ricos do mundo dobraram suas fortunas durante a pandemia, enquanto a renda de 99% da humanidade caiu.
Repetindo um chavão dos movimentos de moradia, o padre diz que São Paulo possui mais casas sem gente do que gente sem casa. “Há mais de 30.000 casas vazias em São Paulo para resolver esse problema; o que falta é nós não termos um sistema e uma justiça tão preservadora do patrimônio como a nossa”, afirma.
“Temos que pensar seriamente que São Paulo tem uma hipoteca social com essas pessoas, e não são 300 casas que vão resolver a questão”, completa, fazendo referência às moradias transitórias que a Prefeitura divulgou disponibilizar até o fim do ano dentro do Programa Reencontro.
Apresentado como resposta ao crescimento da população de rua, o programa prevê , de acordo com a administração municipal, moradias transitórias e ações intersecretariais capazes de acolher, a curto e médio prazos, as milhares de pessoas que foram para as ruas desde o início da pandemia.
A Prefeitura diz ainda que o novo programa já conta com imóveis reservados para a criação de moradias transitórias, e atua com um tripé formado por locação social, renda mínima e moradia transitória, além de capacitação profissional e intermediação para o encontro de postos de trabalho.