Por Marco Weissheimer, compartilhado de Sul 21 –
Ao longo dos últimos meses, a pandemia do novo coronavírus deu lugar, entre outras coisas, ao desenvolvimento de um novo vocabulário que procura ressignificar palavras já conhecidas. O surgimento de uma espécie de “novo normal”, em função dos impactos da pandemia de covid-19 em nossas vidas, designa uma dessas expressões. Mas o que seria exatamente esse “novo normal”, considerando a realidade que estamos vivendo hoje. Para Jean Segata, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), há um pesadelo por trás dessa ideia, um pesadelo que se expressa pela naturalização de processos destrutivos da vida no planeta, pela absorção da vida privada pelas relações de trabalho e pela transformação da rua e do espaço público em um território cada vez mais hostil que será habitado fundamentalmente pelas pessoas que não podem trabalhar em casa.
Em entrevista ao Sul21, Jean Segata fala sobre os impactos da pandemia em nossas vidas, em especial quanto ao modo como estamos nos relacionando com o meio ambiente, com os animais e as demais formas de vida do planeta. Coordenador da Rede Covid-19 Humanidades (que reúne pesquisadores da UFRGS, Fiocruz, UFSC, UNIDAVI, UFRN, Unicamp e UnB), Jean Segata vê a pandemia mais como “um sintoma de algo que é muito maior e que se chama capitalismo”.
“Essa é a verdadeira enfermidade que tem adoecido todos nós, que tem corroído nossos corpos e que se corporifica em relações de trabalho cada vez mais precarizadas, colocando a vida das pessoas cada vez mais no limite. Além disso, ela se manifesta em formas de exploração de ambientes e de animais cada vez mais comoditizadas e transformadas em partes de um processo industrial de larga escala que não está assumindo suas responsabilidades pelo que está acontecendo no planeta”, afirma o antropólogo.
A ideia de um “novo normal” causa arrepios a Segata. “Novo normal talvez seja uma maneira de dizer que esses processos cada vez mais destrutivos da vida serão naturalizados. Talvez esse “novo normal” seja uma maneira de dizer que daqui em diante essa necropolítica que estamos vivendo será naturalizada, como os mais de 140 mil mortos que já temos no Brasil. Talvez as pessoas aceitem pensar que esse é um custo necessário para a vida de outros.”
Para ele, o modelo de “home office” aponta outro aspecto de um pesadelo que está virando realidade. “Já vivemos um trabalho que é quase onipresente. Nosso espaço e nosso tempo privado foram engolidos pelas relações de trabalho. Respondemos email fora do horário de trabalho, o celular fica vibrando no nosso bolso, avisando de alguma reunião. Essas reuniões de home office tomam o nosso tempo, algumas vezes, para além dos limites da jornada de trabalho. Temos sobreposições de tempo e um adoecimento do nosso tempo e espaço privados. Me preocupa que esse seja o novo normal”, diz ainda Segata.
Sul21 – Que lições já podemos tirar da pandemia de covid-19 no campo da saúde, em especial no tema das percepções envolvidas na elaboração de políticas públicas de saúde?
Jean Segata: Uma questão importante que a gente precisa ter em mente para responder a essa pergunta é entender o que é mesmo uma pandemia. É um termo que vem da epidemiologia e que indica uma determinada situação. Mas, ao mesmo tempo, é um conceito que tem uma certa dimensão abstrata. Uma pandemia designa um estado no qual há muitos surtos acontecendo em diversos lugares ao mesmo tempo, com diferentes intensidades, singularidades e agravamentos. Esses agravamentos não dependem exclusivamente da dinâmica do vírus ou da sua capacidade patogênica. Eles também dependem de questões culturais, sociais e econômicas.
Uma coisa é olhar para uma pandemia se manifestando em um país como o Brasil, onde a vida já é levada no limite, onde as pessoas vivem numa situação de precariedade, com pouca proteção social. Elas não tem o direito de preservar suas vidas, fazendo um isolamento, precisando se expor à rua, utilizando ônibus e trens para ir ao trabalho e enfrentando grandes aglomerações. Temos aí um agravante de natureza econômica. Essas pessoas precisam trabalhar e, muitas vezes, acabam se expondo a situações que não são as mais adequadas em termos de saúde. Temos vários exemplos disso perto de nós. O Rio Grande do Sul foi um dos estados onde um setor que foi convertido em serviço essencial, nos frigoríficos da indústria da carne, se tornou um ambiente altamente contaminante. Isso ocorreu não porque, necessariamente, os vírus venham da carne, mas sim porque esse ambiente favorece a contaminação. Esses trabalhadores não têm muita alternativa e precisam seguir trabalhando para manter suas vidas.
Podemos pensar também em condicionantes sociais e políticos. Não temos um ministro da Saúde, temos um presidente que advoga contra a ciência e que defende o uso de cloroquina para o tratamento da covid-19, em um flagrante descaminho em relação às orientações técnicas de saúde. Tudo isso embaralha as noções de cuidado de si que as pessoas têm e também de cuidado coletivo. Isso também complexifica as noções que as pessoas têm de risco e assim por diante. Também é preciso levar em consideração as inúmeras questões culturais que dizem respeito ao cuidado e ao risco, que não são necessariamente aquelas trazidas pelo escopo da ciência, mas que são práticas culturalmente situadas que não deixam de ser relevantes para a vida das pessoas.
Sul21: Em que sentido, mais precisamente, esses condicionantes influenciam ou deveriam influenciar a construção de políticas na área da saúde?
Jean Segata: Quando formos pensar na construção de políticas públicas de saúde é preciso levar em conta essas singularidades que cada região, que cada grupo mais ou menos cultural e socialmente definido tem do que é saúde e doença. Por exemplo, como é que vamos pensar numa política pública abrangente de saúde numa cidade como Porto Alegre se temos comunidades que não são abastecidas por água e que não podem sequer lavar as mãos para atender as medidas mais básicas de saúde, como é o caso de uma boa higienização das mãos. Álcool gel, máscaras ou até mesmo sabonetes são itens de luxo em várias cestas básicas. Precisamos pensar em políticas públicas que atendam, de uma forma mais orgânica, essas diversas experiências de saúde e de doença.
As pandemias revelam o quanto, às vezes, é muito fácil ficarmos suscetíveis a um processo de colonização de pensamento e de modelos globais de saúde, que, quase sempre, são modelos de países do norte, que não enxergam os diferentes tipos de vulnerabilidade que temos em países como o Brasil. São políticas globais de saúde que não enxergam as particularidades sociais, culturais e históricas que certos países têm. É neste sentido que precisamos ficar atentos a políticas que venham de baixo para cima, que venham do chão e tenham a participação efetiva das pessoas na sua elaboração e não só as pessoas responderam a elas passivamente porque elas vêm prontas de cima pra baixo.
Mais uma vez fica claro que precisamos pensar em políticas que sejam negociadas, constituídas e trabalhadas a partir também de experiências singulares, de experiências comunitárias, e que não façam simplesmente um processo de homogeneização sobre o que é saúde, do que é cuidado e do que é risco.
Sul21: Na sua avaliação, o que essa pandemia do novo coronavírus tem a ver com o modo como estamos nos relacionando com o meio ambiente e com os animais?
Jean Segata: Para mim essa pandemia é mais um sintoma de algo que é muito maior e que se chama capitalismo. Essa é a verdadeira enfermidade que tem adoecido todos nós, que tem corroído nossos corpos e que se corporifica em relações de trabalho cada vez mais precarizadas, colocando a vida das pessoas cada vez mais no limite. Além disso, ela se manifesta em formas de exploração de ambientes e de animais cada vez mais comoditizadas e transformadas em partes de um processo industrial de larga escala que não está assumindo suas responsabilidades pelo que está acontecendo no planeta.
Eu cresci no interior de Santa Catarina e me lembro muito bem de como a paisagem foi se tornando suína. Lembro do que aconteceu muito vividamente. Eu vivia em um sítio com meus pais e gostava de pescar em um ribeirãozinho que passava pela propriedade de meu pai. Tínhamos uma integração com aquele ambiente que foi mudando muito rapidamente. Em pouco tempo, começaram a se espalhar as granjas de porcos terceirizadas para alimentar frigoríficos de uma grande corporação que se instalou lá por perto. Essas granjas de porcos começaram a produzir cheiros e os cheiros e os dejetos começaram a atrair moscas. Em pouco tempo, passei a ver a minha mãe muito incomodada com o fato de que as moscas invadiam a nossa casa. A gente não podia mais tomar um café da tarde como costumávamos fazer tranquilamente, porque as moscas insistiam em pousar sobre os alimentos.
Eu era um garoto. Isso ocorreu nos anos noventa. Lembro do meu pai instalando telas de proteção nas janelas da casa toda para evitar a entrada de tantas moscas. Lembro também que as minhas pescarias no ribeirão foram cessando cada vez mais porque ele foi se tornando uma espécie de esgoto de resíduos de porco e estrume de porco. Na época, essas granjas não eram tão bem controladas na emissão de resíduos. Aos poucos, os peixes foram morrendo todos e a água que era limpa foi se tornando turva. Passei minha adolescência convivendo com cheiro de merda de porco. O ambiente que existia foi transformado em outra paisagem, uma paisagem suína que responde por essas criações intensivas, onde os animais quase sempre são imunodeprimidos. Eles precisam tomar muito antibiótico porque eles têm uma vida muito curta e pertencem a uma linhagem que é muito próxima, possuindo uma imunidade muito frágil. Muito facilmente eles podem se contaminar com algum patógeno e desenvolver uma doença capaz de matar o rebanho inteiro.
Estou falando de resíduos que não eram simplesmente merda de porco, mas também resíduos de antibióticos que não eram processados nem digeridos por esses animais e que acabavam indo para os ribeirões ou evaporavam com o calor e depois caíam com a chuva sobre nossas cabeças. Estou falando também de estrume de porco que secava e virava parte do pó que a gente respirava nos dias mais quentes e, provavelmente, entraram para os nossos corpos dessa forma.
Há um pesquisador chamado Rob Wallace, que tem falado muito sobre o quanto nos últimos 25 ou 30 anos muitas dessas pandemias, como H1N1, gripe suína, SARS ou gripe aviária, tiveram origem em regiões onde mais se intensificou a criação de animais, como é o caso das grandes corporações da indústria norte-americana de suínos, com as suas granjas instaladas no México. Foi de lá que saiu a gripe suína. O sul da China é quase sempre acusado de ser um lugar de onde emergem vírus, patógenos e a próxima pandemia. Isso cria muitas vezes situações estigmatizantes em relação ao povo chinês. Fala-se de vírus chinês e essas populações acabam sendo alvo de xenofobia e estigmatização. Mas esquece-se de falar mais precisamente da localização da origem dos problemas. Esses vírus estão saindo principalmente dos arredores ou de dentro das indústrias de frango e de patos que se instalaram nestas regiões do sul da China.
Precisamos começar a responsabilizar essas grandes corporações que estão destruindo ambientes e mudando significativamente paisagens que reúnem diversas espécies, criando um desequilíbrio ambiental sem precedentes. Também precisamos ficar atentos ao papel da engenharia genética nestes processos. O capitalismo começou a se tornar destrutivo quando converteu o que a gente chamava de natureza em matéria prima e mercadoria. Agora temos um problema que é intensificado pela engenharia genética. Não se trata mais só de converter um animal ou uma planta em uma matéria-prima e mercadoria. A engenharia genética tem ajudado a otimizar essa natureza. Se, antes, você simplesmente convertia um frango em mercadoria, agora você produz um frango que não é mais um frango. É um pedaço de carne criado em 27 dias, facilitado por tecnologias genéticas. Você não tem mais um milho que você colhe, mas um milho que vai nascer em qualquer época do ano e em qualquer clima, porque você suplanta os mecanismos naturais de adaptação climática. Nós não temos pensado sobre as conseqüências dessa “otimização” da natureza.
O capitalismo é uma doença que se manifesta em nossos corpos. Ele se corporifica no motorista de Uber que precisa trabalhar 15 horas por dia pra poder pagar o MEI , no entregador de aplicativo que tem que pedalar quilômetros por dia, em um trânsito super-hostil, porque ele ganha cinco reais por entrega, quando ganha isso. Precisamos prestar atenção em quanto essas paisagens doentias, sejam elas do mundo do trabalho ou da natureza. Se olharmos bem o que vivemos neste período de isolamento, a gente vê que viveu um isolamento de classe média alta branca de centros urbanos. Pobres e negros são considerados trabalho essencial, mão-de-obra essencial e, por isso, não tem o direito de preservar sua saúde e precisam expor os seus corpos para sustentar a manutenção de outros corpos. Então, o que temos é uma profunda relação de desigualdade com outros humanos, com animais não humanos e com o ambiente. Tudo isso está ligado a uma doença que a gente conhece há muito mais tempo e o nome dela é capitalismo.
Sul21: Muito tem se falado sobre um suposto “novo normal” no pós-pandemia. Em que medida, na sua opinião, podemos falar da perspectiva de vivermos uma espécie de nova normalidade em um período pós-pandemia? O que significa essa formulação exatamente?
Jean Segata: Eu tenho um certo arrepio em relação a isso. “Novo normal” talvez seja uma maneira de dizer que esses processos cada vez mais destrutivos da vida serão naturalizados. Talvez esse “novo normal” seja uma maneira de dizer que daqui em diante essa necropolítica que estamos vivendo será naturalizada, como os mais de 140 mil mortos que já temos no Brasil. Talvez as pessoas aceitem pensar que esse é um custo necessário para a vida de outros. Esse, para mim, é o grande pesadelo que está por trás dessa idéia de novo normal. As pessoas que enunciam isso não enxergam nestas mortes histórias de vidas, histórias de famílias, trajetórias, sonhos e desejo de viver. Elas enxergam um número apenas, uma perda necessária, um custo necessário, que muitas vezes é intangível, para que a vida dos outros continue existindo.
Tenho um certo pavor de pensar que isso seja o novo normal. Tenho um certo pavor também de pensar outras coisas, como a normalização desse modelo home office no qual estamos trabalhando hoje. Eu me sinto um privilegiado. Estou dando as minhas aulas na universidade a partir da minha casa, participo das reuniões aqui da minha casa e as minhas filhas podem ter aulas online. Mas eu sei que isso está longe de ser, não vou dizer nem a média, mas a realidade da maioria das pessoas. É uma minoria que tem condições de fazer isso e precisamos não normalizar esse tipo de situação. A gente precisa destacar que isso coloca em relevo o sistema extremamente desigual no qual vivemos.
A antropóloga Teresa Caldeira escreveu muito sobre a emergência dos condomínios privados nos anos oitenta. Ela tem um livro muito interessante chamado “Cidade de Muros” , no qual desenvolve o argumento de que esses condomínios privados correspondiam a certos privilégios em termos de lazer e de segurança, e, à medida que essas fortalezas foram crescendo nas beiras das grandes cidades, o espaço público foi se tornando cada vez mais hostil. Os equipamentos públicos de lazer foram ficando cada vez mais depredados ou inexistentes, as praças públicas foram ficando depredadas, esquecidas ou simplesmente tomadas por empreendimentos imobiliários. A rua foi ficando hostil. Me preocupa o quanto essa “homeofficezação” das relações de trabalho, da escola e da universidade não pode se normalizar e fazer com que a rua se torne mais hostil ainda, virando uma paisagem tipo Mad Max, lembrando o filme que surgiu nos anos oitenta. Virando uma espécie de território sem lei, a rua como o lugar só para quem precisa sair de casa para trabalhar. Quem puder, vai trabalhar dentro de casa, no conforto do seu lar.
E nem podemos falar de conforto, exatamente, porque essa “homeofficezação” também é outra precarização. Eu não sei o quanto as grandes corporações não vão começar a tirar vantagem disso. Devem estar pensando: por que vamos um alugar um prédio inteiro de escritórios no Moinhos de Vento ou na Avenida Paulista se podemos manter essas pessoas em casa e poupar esse dinheiro. Podem dar um subsídio para a internet ou nem isso, porque se elas não quiserem outros vão querer trabalhar. Elas que arquem com os custos de seu próprio trabalho, com internet, com a organização das agendas, talvez com a destruição de relações familiares.
Sul21: Quais situações exatamente podem levar a essa destruição de relações familiares e pessoais?
Jean Segata: Eu tenho filhas pequenas e as crianças querem brincar, querem correr dentro de casa. É a nossa casa, o nosso espaço privado. Eu, particularmente, tento me isolar para fazer as minhas atividades, de modo a deixar que elas toquem sua vida normal, com suas brincadeiras e seu espaço lúdico. Mas sabemos que nem todo mundo pode ter esse espaço privado dentro de casa. A maioria não tem. E o que vão ter que fazer? Acabam pedindo para que os filhos façam silêncio ou, talvez, os colocam dentro de um quarto, limitando o espaço privado e as nossas liberdades individuais cada vez mais. O espaço que antes era privado virou um espaço público de trabalho. Na minha câmera aqui aparece quem está andando dentro de casa, a minha estante, a minha vida privada. A vida privada foi engolida pelo universo do trabalho, pelas relações de trabalho.
Já vivemos um trabalho que é quase onipresente. Respondemos email fora do horário de trabalho, o celular fica vibrando no nosso bolso, avisando de alguma reunião. Essas reuniões de home office tomam o nosso tempo, algumas vezes, para além dos limites da jornada de trabalho. Temos sobreposições de tempo e um adoecimento do nosso tempo e espaço privados. Me preocupa que esse seja o novo normal. Me preocupa que o novo normal seja converter o planeta em uma grande granja de porcos, que a gente transforme a nossa paisagem em uma grande lavoura de soja transgênica, ou que transformemos as pessoas pobres e negras em meros corpos cada vez mais expostos a situações contaminantes e hostis. Me preocupa ainda o quanto a gente pode adoecer com essas relações que embaralham vida privada e profissional, tempo privado e tempo profissional, que tudo isso seja misturado e convertido em horas de produção. Me preocupa o quanto esse capitalismo, que já é uma doença crônica, torne-se uma enfermidade cada vez mais aguda e que leve vidas embora cada vez mais, sejam vidas humanas, sejam vidas de animais ou a vida em geral deste planeta que nunca foi tão destruída.