Por Cida de Oliveira, para Rede Brasil Atual –
Equipes das subprefeituras já trabalham para diagnosticar o perfil do usuário e as demandas locais para ampliar programa de combate ao crack, que apresenta bons resultados
No Complexo Prates, participantes do programa municipal aprendem jardinagem e são estimulados a criar cooperativas
São Paulo – Ao completar um ano, o programa De Braços Abertos, de combate ao crack na região da Luz, mais conhecida como cracolândia, será ampliado para diversas regiões da cidade. Equipes das subprefeituras, em parceria com diretorias regionais vinculadas a diversos serviços públicos, como assistência social, saúde, educação, trabalho, segurança urbana e direitos humanos, entre outros, já estão identificando o perfil e as necessidades da população usuária de drogas nos pontos mais críticos de cada região.
A ampliação será financiada com recursos do programa Crack, é Possível Vencer, da Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad), que mantém contato permanente com o programa municipal de combate ao crack desde a sua criação, em janeiro de 2014.
“Vamos instalar traillers com equipes de assistência social e saúde em algumas cenas de uso da cidade que estão sendo escolhidas ainda. A ideia é uma aproximação com o usuário para diagnosticar a situação, o tipo de ação necessária, saber que tipo de ‘de braços abertos’ que aquele território precisa”, explica a secretaria municipal de Desenvolvimento e Assistência social, Luciana Temer.
Estruturado em frentes de trabalho de varrição e zeladoria de praças, com remuneração de R$ 15 por dia, atividades de capacitação, três alimentações diárias e vagas em hotéis da região do bairro da Luz, o programaDe Braços Abertos foi implementado depois de meses de diálogo contínuo. Na primeira fase das ações, os antigos moradores dos cerca de 150 barracos que ocupavam as ruas da região foram então cadastrados pela prefeitura, desmontaram suas instalações precárias e passaram a morar em quartos de hotéis nas imediações, recebendo três refeições por dia e a chance em frentes de trabalho.
“O que a prefeitura construiu na Luz, com o modelo dos hotéis, foi construído com os usuários”, diz Luciana. “A gente conversou muito para entender quem eram as pessoas em situação de rua, o que queriam para sair daquela situação, e ter um lugar para dormir e um trabalho foi o que eles queriam. O programa surgiu considerando os hotéis da região, porque eles não queriam sair dali”, explica a secretária.
De acordo com a secretária, ao longo dos meses de operação do programa foram sendo criadas outras oportunidades de trabalho, além da varrição de ruas, a primeira opção oferecida. Atualmente, existe o Fábrica Verde, coordenado pelas Secretarias de Trabalho e Verde, que funciona no Complexo Prates, no Bom Retiro. Ali, onde foram instaladas estufas para a produção de flores, há cursos de capacitação de jardinagem. Além de aprenderem as técnicas do trabalho, ainda são estimulados a se unir em cooperativas.
Foi criado também um programa de zeladoria de praças, pelo qual as subprefeituras contratam essas pessoas para cuidar do jardim desses espaços. E o Autonomia em Foco, um acolhimento em que a pessoa tem seu quarto, com sua chave, e segue outra lógica. “Há dois irmãos que de lá já saíram para um quartinho que eles próprios alugaram, por conta própria. É claro que são poucos, mas esses casos nos animam”, diz Luciana. Àmedida que vão construindo autonomia, as pessoas se desligam do programa.
Êxito
“A mídia faz crer que se trata de um fracasso retumbante. Mas, apesar de enfrentar dificuldades, como mais vagas em hotéis em outras regiões além da cracolândia, para ampliar o atendimento, o programa está funcionando, com bons resultados”, afirma o promotor da área de Direitos Humanos da capital, Arthur Pinto Filho, do Ministério Público Estadual. “Muita gente se recuperou, conseguiu voltar para a família, sua cidade, e abriu lugar para outras pessoas que chegaram. O público que está lá hoje não é o público que estava no início”.
Para Luciana Temer, o êxito do programa está justamente em sua concepção. Em vez de um modelo pronto, fechado, é uma construção permanente e coletiva, com a participação dos usuários de drogas das ruas, em articulação com várias políticas públicas para atender esta população e, sobretudo, voltada à redução de danos. “É uma proposta de política de redução de danos na qual não se exige um comportamento de abstinência imediato do usuário”.
Por conta do perfil do usuário, com necessidades complexas e variadas, é que o programa precisa envolver várias secretarias. “Muita gente já está transformando a vida sem nenhuma internação”, conta Luciana, destacando que foram registradas 41 voltas para a família, com reestruturação de vínculo. “Não temos a ingenuidade de achar que a pessoa vai largar; a droga é um problema da humanidade. O que precisamos é que a pessoa consiga administrar a vida dela”, diz.
Lembrando que o crack é uma droga devastadora, diz que é importante que o usuário vá abandonando o vício paulatinamente – o que está acontecendo. Os dados mostram diminuição de 50% a 70% no consumo de drogas.”Tem gente do programa que encontro que diz que agora só consome no final de semana. Que bom. Se ele conseguir passar o resto da vida dele trabalhando e consumindo de final de semana, não tenho nada a ver com a vida dele enquanto poder público. Ele não é traficante”. E continua: “Interessa que ele resgate a vida dele, que ele não seja dominado pela droga – esse é o principio da redução de danos. Essa é a proposta que a gente acredita e que vem encantando os municípios”.
Um dos grandes desafios, segundo Luciana, é justamente convencer a sociedade dos benefícios trazidos por essa política, não somente para os usuários de drogas, mas para toda a população. “A nossa sociedade é muito conservadora. E quem tem pouca aproximação com o tema acha que a prefeitura está dando dinheiro para ‘noia’ e para traficante. Não é nada disso. Há beneficiários do programa que hoje diminuíram o consumo de droga e o sustentam com parte do dinheiro que ganham trabalhando”.
Uma beneficiária de mais de 60 anos, em entrevista, afirmou estar orgulhosa porque estava trabalhando e podia comprar a droga com o próprio dinheiro. “Isso é redução de danos para ela e para a sociedade”, ressalta a secretária, lembrando que o índice de criminalidade caiu na região da cracolândia (leia destaque abaixo).
Para o promotor Arthur Pinto Filho, o que se disputa, na verdade, são dois modelos muito diferentes de combate às drogas. O da internação compulsória, que em diversos lugares do mundo já mostrou que não resolve o problema, e outro, aceito inclusive pela ONU, que é a redução de danos. “Em São Paulo há disputa política-ideológica sobre esse modelo. No De Braços Abertos nada é compulsório. É tudo tratado de maneira amistosa com os dependentes, que participam de tudo. E a gente vê matérias falando do fracasso daquilo que, na verdade, é um sucesso”, destaca.
Pelo fato de não existir uma solução pronta para a questão, o programa segue a rotina de um tratamento intersecretarial, atendendo as pessoas com a complexidade que cada uma exige. Por isso, é preciso envolver a Secretaria de Trabalho e a Assistência Social para ajudar o sujeito a reatar vínculos com a sociedade. “Como uma pessoa sem documentos pode pensar em qualquer transformação? Como uma pessoa sem dentes vai buscar alguma outra situação de vida?”, indaga a secretária.
Atualmente, há uma nova tendência mundial de enfrentamento às drogas. “A guerra americana, aquilo tudo se mostrou improdutivo. Qual outro caminho? Há 20 anos a Holanda apostou na redução de danos, com resultados muito bons. O usuário não morre mais por causa dos efeitos da heroína, e o índice de furtos e roubos caiu em Amsterdam”, destaca Luciana.
“Hoje tem apoio da sociedade, mas no começo eles ouviram o que a gente escuta aqui. ‘Tá dando dinheiro pra noia, sustentando traficante’. Eles ainda davam a droga pro usuário (metadona). Lá o Ministério da Saúde nos contou que hoje a política tem apoio até das pessoas mais conservadoras porque a cidade melhorou. O sujeito não precisa roubar para usar drogas. Ele tem acesso a drogas. Tudo isso mostra ao Brasil, à política nacional, que esse é um caminho possível”, afirma.
O que anima, conforme ela, é ser este um programa que quebra paradigma ao deixar de prestar atenção na droga para valorizar o usuário, a pessoa. “Essa é a grande inovação que tem imensos desafios e que está tendo grandes vitórias também”.
Desafios
Segundo Arthur Pinto Filho, com o programa mudou também o tipo de tráfico que é realizado na cracolândia. Havia ali o tráfico do usuário, que não é traficante, e sim que compra cinco pedras, fuma duas, vende três. Agora estão chegando de maneira mais sistematizada, em maior quantidade, com ação mais profissionalizada ali na região”, diz. A prefeitura já detectou isso, que foi passado para a segurança pública estadual (polícias civil e militar), que está investigando para pegar o traficante porque é um tráfico mais organizado.
“Estamos muito otimista com tudo, tanto que inúmeras prefeituras do Brasil inteiro já vieram entender como é o programa”, diz Arthur, que já esteve em Natal (RN) e recebeu promotores de Justiça daquele estado que vieram visitar a cracolândia. “O prefeito de lá comprou a ideia, marcou uma reunião para explicar o programa, com ênfase na saúde e na assistência social. É claro que a cracolândia de lá é menor, mas ele está envolvendo várias secretarias.”
Além de Natal e Brasília, Santo André também está fazendo programa semelhante. “Até o Braços Abertos, você sabia o que não podia ser feito: internação compulsória e a pancadaria que a PM tinha feito ali. Mas não se tinha um programa que tivesse dado certo numa perspectiva humanista, e agora temos”, afirma.
Um ano de Braços Abertos
21 beneficiários já em processo de autonomia, trabalhando fora do programa
321 nas frentes de trabalho de varrição de ruas e limpeza de praças
Antes do programa, a Cracolândia recebia diariamente cerca de 1.500 usuários, que faziam uso do crack abertamente, em vários pontos. Hoje são aproximadamente 300 por dia (redução de 80% em 12 meses)
Perfil dos beneficiários
286 são homens e 167 mulheres, sendo seis adolescentes e 30 crianças
290 são do município
63 de outras cidades paulistas
99 de outros estados e um estrangeiro
Estima-se que 70% chegaram a passar pelo sistema prisional
5 têm ensino superior completo
9 ensino superior incompleto
70 completaram o ensino médio
13 não foram alfabetizados
Saúde
Mais de 54 mil atendimentos de saúde aos dependentes químicos
9.668 atendimentos médicos
2.787 atendimentos médicos de rotina
6.881 realizados pelas equipes multidisciplinares
21.145 abordagens no chamado “fluxo”, onde alguns usuários se concentram para consumir drogas
21.246 acompanhamentos dos beneficiários
599 atendimentos odontológicos
2.613 atendimentos de saúde, inclusive mental, sendo 242 voltados exclusivamente para o tratamento da dependência química nas unidades e serviços de saúde da região, como a CAPS do Complexo Prates e o da Sé, ambulatórios e UBS
Trabalho
21 beneficiários estão em processo de autonomia e trabalhando fora do programa 16 deles foram contratados pela empresa Guima Conseco para serviços em equipamentos públicos municipais, com salário mensal de R$ 820, vale refeição de R$ 9,10 por dia, cesta básica no valor de R$ 81,33 e Vale Transporte, tendo aderido ao tratamento de saúde e ao acompanhamento feito pela equipe de assistência social
321 trabalham no serviço de varrição de ruas e limpeza de praças, sendo que 100 participam de cursos de estética e beleza, jardinagem e inclusão digital, entre outros. A remuneração diária é de R$ 15, mais três refeições
18 beneficiários ingressaram em cursos no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec)
75 participam de processo de inserção nas frentes de trabalho e recebem assistência social, psicológica e em saúde, exceto remuneração
Segurança
80% de redução no número de número de roubos de veículo e de 33% no furto a pessoas em relação ao ano anterior (dados da Polícia Militar)
Apoio no combate ao tráfico
6.344 abordagens pela GCM na região, em apoio ao trabalho da Polícia Militar; 319 prisões, das quais 91 com crack, com 2.486 pedras de crack apreendidas. 168 agentes da GCM na região, distribuídos em quatro turnos. 14 viaturas, quatro motocicletas, dois ônibus, uma unidade móvel de videomonitoramento (micro-ônibus do programa federal Crack, é possível vencer). Em 2014, a PM registrou 17 furtos de veículos e 392 furtos a pessoas. Em 2013, foram 34 e 582, respectivamente (queda de 50% e 33%). O número de prisões por tráfico de entorpecentes realizadas pela PM saltou de 96, em 2013, para 176 em 2014, um acréscimo de 83% no número de registros
Requalificação do espaço público
Restabelecimento da iluminação em dez vias, com reposição da fiação
Reforma do Largo Sagrado Coração de Jesus
Construção de academia A Céu Aberto
Construção da Base Comunitária da Polícia Militar, que atua com a GCM Iluminação das calçadas nos arredores do Santuário do Sagrado Coração de Jesus