Para o economista Guilherme Delgado, o Brasil não sairá do buraco sem mexer nos privilégios do agro
Por Mariana Costa, compartilhado de O Joio do Trigo
A hegemonia do agronegócio no Brasil, nos últimos 20 anos, criou uma “arapuca macroeconômica” com consequências desastrosas e de longo prazo sobre a economia brasileira. E é o que está por trás da inflação descontrolada dos alimentos e do agravamento da crise, na avaliação do economista Guilherme Delgado.
Doutor em Economia pela Unicamp, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) por mais de 30 anos e autor de diversas publicações sobre o tema, Delgado é um crítico feroz do processo que, novamente, fez o Brasil voltar ao destino histórico de país exportador de commodities e minérios às custas da atrofia de outros setores da economia, como indústria e serviços, e a privatização de setores-chave da infraestrutura do país.
Em entrevista ao Joio, o pesquisador alerta: o ciclo de alta das commodities está próximo de se esgotar não apenas sob o ponto de vista econômico, mas principalmente ambiental. Delgado defende que o Brasil não sairá do buraco sem mexer nos privilégios do agronegócio, um tema que considera “interditado” na grande mídia e também entre os presidenciáveis nas eleições deste ano.
Atual diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), o economista defende que o país adote uma transição ecológica a partir de uma nova estrutura fundiária no campo que incentive atividades de menor impacto ambiental não apenas na produção de alimentos, mas de energia limpa também. Uma discussão que avança no mundo e deve pressionar o atual sistema de produção do agronegócio brasileiro, “hoje responsável por 73% das emissões de gases do efeito estufa no país”. Leia a seguir a entrevista com Guilherme Delgado na íntegra.
O que está acontecendo com a inflação dos alimentos no Brasil?
São dois problemas conexos, mas distintos. Existe um problema conjuntural externo e um problema estrutural brasileiro na própria relação do Brasil com o mundo.
Do ponto de vista conjuntural, a chamada volatilidade dos preços agrícolas não é nenhuma novidade, isso sempre houve. Dessa forma, às vezes ocorrem conjunturas ou ciclos de ascensão dos preços externos e, depois, ciclos descencionais. O problema brasileiro é que, há pouco mais de duas décadas, o país ingressou em um chamado movimento de primarização do seu comércio exterior. Esse é o nó da questão. O conjunto do sistema econômico passa a depender de um setor peculiar. É como se toda a economia industrial, toda a economia de serviços, toda a infraestrutura passasse a depender exclusivamente dos saldos comerciais do setor primário.
Nenhum desses setores que mencionei é excedentário do ponto de vista de exportações. Eles são estruturalmente deficitários. E esse déficit aumenta à medida que você vai internacionalizando setores de infraestrutura que não são produtores de commodities. Quando você internacionaliza o sistema elétrico, ele não exporta 1 kw de energia. Mas o país paga royalties, juros, etc. Sistema telefônico, a mesma coisa. Quando você internacionaliza o mercado de terras, os compradores de terras em mercados organizados querem a monetização em moeda estrangeira, e não em real.
Esse movimento de internacionalização, aparentemente gracioso e apresentado como a solução da pátria, é parte do problema.Isso porque você estressa o sistema econômico para que ele gere a qualquer custo, pelo setor primário via exportação de commodities, saldos comerciais que não vão servir ao país, mas vão dar liquidez ao movimento de pagamentos de renda de capital ao capital internacional aqui instalado.
Como esse quadro agrava a inflação dos alimentos?
O sistema econômico está sendo planejado para crescer a ritmos desiguais.Uma parte do sistema que produz commodities tem um estímulo macroeconômico exacerbado. E setores que não produzem commodities ficam atrofiados. Essa dupla balança – uma catapultada, outra atrofiada – leva a que quanto mais eficiente for esse processo de ajuste, entre aspas, das contas externas, maior será a defasagem de crescimento entre o setor produtor de commodities e de não commodities e, portanto, dos produtos para abastecimento interno.
Há um desequilíbrio inerente a esse sistema que, em determinados momentos, aparece com maior força. Não é que essa força se deva à conjuntura, ela reflete um movimento estrutural.
Nos anos de 2020 e 2021 – e tudo indica que 2022 também –, tivemos um crescimento dos preços dos produtos da cesta básica alimentar, que é uma parte importante da chamada cesta básica salarial geral. Foi mais que o dobro da inflação geral, que já foi alta, o que provavelmente se repetirá este ano. Isso não é uma novidade brasileira. Em geral, o sistema submetido a esse estresse macroeconômico contém essas implicações do ponto vista dos produtos da alimentação.
Só para citar um exemplo histórico, entre 1960 e 1964 o índice de preços de produtos agrícolas cresceu muito acima do índice geral de preços. Portanto, ele é pró-inflacionário. Todo o sistema era movido pela valorização cafeeira, a exportação do café a qualquer custo. E tudo mais que não fosse café não era prioridade. Hoje não é mais café, é meia dúzia de commodities, mas as implicações são parecidas.
Como reduzir a pressão inflacionária sobre os alimentos?
Há um desequilíbrio estrutural, e nas fases de aumento dos preços externos de commodities essa situação se agrava. Porém, quando os preços externos caem, isso não resolve o problema. Planejada a gerar saldo a qualquer custo, a política macroeconômica é realinhada através, por exemplo, da desvalorização cambial para tornar competitiva a exportação de commodities. Portanto, do ponto de vista interno, também não tem alívio.
Temos uma arapuca macroeconômica vendida em prosa e verso como a salvação da pátria. Não tem pátria nenhuma, à exceção da pátria financeira. Esse sistema está planejado para prover liquidez, ou seja, ter divisas para pagar os serviços deficitários já que não há excedentes comerciais em outros setores. Temos um desequilíbrio maior que se reflete no abastecimento alimentar, mas em outros setores muito mais gravemente, por exemplo, no setor industrial. A indústria não exporta mais, ela vira importadora. Agora, inventaram de internacionalizar o mercado de terras, que nunca foi uma parte do problema macroeconômico – mas passa a ser também. Esse é o quadro que nós estamos, se não enfrentar o problema estrutural, não resolve.
Muita gente discute a questão do abastecimento, das políticas emergenciais para resolver a pressão inflacionária, mas não quer mexer na equação externa do agro. E essa é a parte essencial do problema. Não podemos resolver pela via primária exportadora não só esse problema dos alimentos, mas também o da competitividade externa da indústria, o problema das relações menos dependentes da economia como um todo e, principalmente, o problema ecológico. Esse sistema é produtor líquido de gases de efeito estufa em escala gigantesca. Hoje não é mais a indústria, nem o comércio, nem os serviços: é o setor rural produtor de commodities, seja na forma legal ou ilegal, que representa 73% das emissões totais de gases do efeito estufa do conjunto da economia e da sociedade brasileira.
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O senhor poderia explicar as origens desse processo?
Nos anos 2000, desde a crise cambial do primeiro governo FHC [Fernando Henrique Cardoso] até a crise externa de 2008, o país realizou um ajuste das contas externas pelo lado de exportações de commodities. Um ajuste conjunturalmente exitoso, entre aspas. Houve uma pressão relativamente pequena sobre os preços macroeconômicos e uma relativa folga no superávit comercial, de forma que o superávit do setor primário fosse suficiente para suprir o déficit dos demais setores e ainda sobrar recursos. Então, aparentemente se havia alcançado o nirvana macroeconômico com o agronegócio. Esse é o grande engano que a própria história econômica recente acabou de demonstrar.
Uma coisa é promover ajustes conjunturais pelo setor primário, isso sempre foi feito. Outra é especializar a economia externa no setor primário. A aparente sensação de sucesso nos primeiros anos levou o sistema a se especializar e a gerar conjunto de incentivos macroeconômicos de caráter cambial, tecnológico, financeiro, fundiário, etc.
Dessa forma, vem a crise de 2008 e há um movimento exacerbado (e isso ninguém comenta) de pressão sobre a balança de serviços – que era deficitária na faixa dos 20 bilhões de dólares/ano, um pouco mais do que isso até aquele momento, passa a ser uma balança deficitária de 50, 60, 80 bilhões de dólares ao ano. Por quê? O movimento de capital e as necessidades de pagamentos pelos seus serviços se exacerba e passa a exigir mais do setor primário. A solução brasileira é continuar o mesmo movimento, ou seja, exportar commodities a qualquer custo.
São vários componentes de política macroeconômica que protegem a margem de lucro do setor de commodities, mas não os outros setores. Neste momento, você tem uma maior dependência do setor industrial em relação às importações e expulsa o setor industrial da pauta de exportações. Esse movimento estrutural de 2008 para frente é equivocado, passado pela grande mídia como um movimento de salvação da pátria. E essa eficiência do setor primário está se dando pela atrofia dos demais setores e pela superestimulação da política macroeconômica, e não pela eficiência privada como eles tentam vender.
A partir de um certo ponto, as vantagens comparativas naturais são erodidas. Precisaria recalibrar o sistema econômico para que dependesse menos da vantagem comparativa natural, que é um argumento muito primário para sustentar um país deste tamanho. Esse debate não foi feito e continua não sendo feito. O assunto está interditado. Falar com a grande mídia sobre uma reforma estrutural que mexa com privilégios do agronegócio é impensável e, portanto, impublicável. É como se os bandidos fossem salvar os mocinhos.
Exportar alimentos é necessariamente ruim?
O agronegócio tem que exportar, e não há nada contra. Mas o que ele não tem é que ser o setor especializado em exportação numa economia deste tamanho, com 220 milhões de brasileiros que precisam comer todo dia. E que tem um conjunto de atividades econômicas que não são apenas primárias e precisam comparecer também no setor externo.
O ciclo de valorização externa das commodities e da aparente eficiência do manejo interno das exportações primárias se extinguiu lá atrás. Só que não nos demos conta, continuamos correndo atrás do esforço de Sísifo. Sobe a montanha com o balde cheio d’água e chega lá não tem água nenhuma, porque o cesto está todo furado.
A partir da crise cambial de 1999, o ciclo de ajuste na balança comercial via exportação de agro e minérios passa a ser o único recurso para o enfrentamento da situação externa. São forçados a mudar a política macroeconômica, o Brasil fica sem recursos, e a crise cambial sem reservas é uma coisa dinamitadora. É na passagem de 1999 para 2000, que é a transição do primeiro para o segundo governo FHC, que começa a se desenhar o pacto do agronegócio da forma como é hoje. Inicialmente era um pacto conjuntural, era explorar os setores com maior capacidade competitiva para tirar a economia do buraco. E isso foi feito com programas de crédito, frota, investimento em infraestrutura portuária, enfim, tudo calibrado no sentido de melhorar a competitividade externa dos serviços. A Embrapa foi cacifada para isso.
Esse era um movimento relativamente repetitivo do nosso sistema econômico. Já tinha acontecido antes, nos anos 1980, período do Delfim Netto. Mesmo o regime militar, quando praticava políticas de incentivo à exportação de commodities, não tirava o pé dos programas estratégicos de substituição de importações. Quando se passa a confiar cegamente no movimento do capital internacional, que é um pouco a tese do primeiro governo FHC, cria-se uma ilusão idolátrica. É como se o capital tivesse preocupação com o ponto de vista de um estado nacional e suas necessidades. A resultante é uma situação deficitária externa em todos os setores.
O segundo governo FHC foi diferente do primeiro, porque teve que fazer um ajuste forçado. Do ajuste macroeconômico forçado à primarização do sistema comercial externo há um certo movimento de regressão da indústria brasileira. E um embarque na tese das privatizações de infraestrutura, privatizar elétrica, telefônica, transporte, etc. Isso passou a ser a salvação da pátria. Esses setores não são commodities, não são exportadores, mas são gerados de pagamentos de dívidas ao exterior.
Uma coisa e outra vão se combinando. Isso leva o governo do PT a acreditar nessa solução mágica como salvação da pátria. De forma que o governo mais pró-agronegócio desse período todo foi o do PT.
A economia do agro e da mineração foram as duas apostas como um boom de exportação externa que resolveria o problema. Não resolveu e nem pode resolver. Mas quem olha o ciclo de 2000 a 2008 acha que não resolveu.
E é aquela história, não vamos mexer num assunto que vai tirar voto. Se falo que vou mexer com o agro, vem a Rede Globo, a revista Veja, vem toda aquela banda de música, “ah, estão querendo acabar com o agro”. Cumpriu uma função conjuntural, mas na medida em que foi transformada em situação estrutural, abriu outras frentes de sérios problemas, inclusive o desabastecimento, além da superexploração dos recursos naturais, gerando um problema ecológico insustentável.
A transição ecológica é uma opção ou uma necessidade?
Essa discussão da política agrícola de transição ecológica é presente na política agrícola da União Europeia há vários anos e depois da pandemia foi muito cacifada. Inclusive nos EUA, que o agro brasileiro tanto imita, já há programas dessa natureza em alguns estados. E nós estamos tateando. O Brasil é um país de luminosidade solar altamente favorável à transição ecológica, o dobro ou mais que os países escandinavos ou da América do Norte, que a adotam há muito tempo. E Portugal está muito mais avançado em transição ecológica do que o Brasil.
A questão ecológica é fundamental. Na produção rural é essencial. Ora, se o agro é autônomo e autossuficiente, gerido a mercado, etc., deixa ele funcionar sozinho, apenas colocando restrições onde há criminalidade ambiental. Que se concedam os incentivos macroeconômicos, que hoje vão todos para o agro, para outras atividades. Pode até ser a transição do agro para uma atividade exportadora, mas que tenha relativa contribuição à economia ecológica.
Sugiro o uso de três indicadores: não está produzindo exacerbadamente gases do efeito estufa, não está dissipando exageradamente a água – um bem que o agro exporta gratuitamente e que faz falta na situação de escassez hídrica que nós vivemos – e as contaminações pelos agrotóxicos.
Seriam critérios mesorregionais para conceder incentivos que teriam ranking de A até E, sendo que A, B e C teriam incentivos; o D, ou seja, no limite, não teria incentivo nenhum. E para os que estão passando desse limite, aplica-se a regra constitucional de desapropriação. Esse seria um modelo de zoneamento agro-hidro ecológico que prepararia as bases de uma transição de uma economia primária exportadora para economia de transição ecológica. Não somente agroecológica, porque no agro se pode produzir energia também.
Vamos olhar para o mundo e não ficar apenas olhando para commodities. É como se só houvesse soja, milho e ração para se explorar, e essa é uma vantagem comparativa, entre outras. Esse padrão de consumo global também está em fase de mudança. E mesmo que não estivesse, temos que ver o conjunto da economia e da sociedade, e não um setor peculiar que, por um determinado momento, foi exitoso.
É como aquele mito “decifra-me ou te devoro”. Ou muda o padrão, ou vai ser devorado. As evidências de contaminação dos gases de efeito estufa e seus efeitos não são de longo prazo, são quase imediatos. E forçarão o sistema econômico global a pressionar cada vez mais o sistema brasileiro. Isso está evidente.