Hirayama e Bento

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva novamente ao cinema. E, como o cinema nos leva ao nosso cotidiano, ditado pelo trocadilho bobo com o nome do cineasta citado abaixo, “wimwenders e aprendenders”, vamos ao belo texto.

Vejam o que o cronista tem a falar, com direito a uma singela carta a este que vos tecla.




Beija-flor, 29 de abril de 2024.
Caro Washington, o texto abaixo é uma espécie de resenha de um filme do Wim Wenders. Filme um tanto diferente do que estamos acostumados a ver no mainstream e também fora dele. Não é um filme indie (produções com pouco ou, até mesmo, nenhum envolvimento de grandes estúdios de cinema).

É apenas mais lento do que o habitual, o que tem uma razão: a própria forma de ser e estar no mundo do protagonista é uma lufada de esperança. O protagonista aposta nas coisas boas que estão a seu alcance na vida: trabalhar dignamente, aproveitar o tempo livre, ser solidário etc. etc.

O filme também me fez lembrar de uma pessoa de carne e osso que possui grande afinidade com o protagonista do filme. Trata-se de Bento, eis o nome de pia, faxineiro do prédio onde passei a adolescência. O prédio ainda está de pé, no mesmo bairro do Engenho Novo (Rio), ainda que cercado de grades pintadas de verde, que o torna mais parecido com uma penitenciária do que com qualquer outra coisa. Nem as sirenes faltam.
Enfim, enfim.
Se achar digno de publicação, pode publicar. O Título é: “Hirayama e Bento”.
Um grande abraço,
Cícero.


“Não muito antigamente, algumas mães ameaçavam os filhos que não queriam estudar com a seguinte colocação: “Se você não estudar, você vai acabar sendo lixeiro!”. Isto é, pelo menos da forma que eu entendi, ser gari era uma das profissões mais indignas de todas. Não era bem uma profissão, mas uma punição a todos aqueles que não se esforçaram suficientemente nos estudos.


Havia também em plano restrito uma outra expressão que se referia às domésticas e diaristas: “peniqueira”, “limpadora de cagador”, isto é, limpadora de privadas. Nos dois casos, fica evidente o menosprezo de parte da sociedade a todos aqueles que limpam a sujeira, que mexem com os detritos e excrementos que a própria sociedade produz e que por vezes não se dá nem o trabalho de limpar. Como se não nascéssemos entre urina e fezes; como se nascéssemos sem orifícios.


Bastou assistir uma parte do extraordinário “Dias perfeitos” (Dir. Wim Wenders, 2023. Disponível no Mubi) para que no dia seguinte eu me lembrasse do faxineiro Bento, homem miúdo, moreno, nordestino, quieto mas também muito simpático.


Antes de falar de Bento, entretanto, irei por os leitores um pouco a par do filme de Wim Wenders, cujo protagonista, o senhor Hirayama, não só é um limpador de banheiros públicos, como parece exercer sua função com afinco, organização e comprometimento.

Além disso, é um sujeito que lê livros antes de dormir, que ouve música em toca-fitas, que não tem celular e que ainda tira fotos à maneira antiga em uma velha Olympus: nada de selfies!


Quanto ao último aspecto, quem é que não se lembra? Era preciso levar o rolo de filme para ser revelado em uma loja especial e torcer para que as fotos saíssem. Deus meu, o que nos era corriqueiro quando éramos jovens hoje parece coisas de dez mil anos atrás. Faz parte do avanço das tecnologias engolir o passado.


Diga-se de passagem, eu gosto das tecnologias, das facilidades de hoje. Mas não sou besta, não as aprovo como sendo a panaceia de todos os nossos problemas. Por exemplo, houve um tonto que disse que a IA poderia substituir um professor. Só quem não entende o papel de uma escola na comunidade pode pensar em uma substituição tão inapropriada.


Voltando ao filme, tudo isto que foi dito acima faz do nosso faxineiro Hirayama um sujeito meio chapliniano, aparentemente desconectado das tecnologias do Japão. Só que ele sabe das coisas, não está tão por fora assim.


Tem algo de cômico nesse sujeito tão metódico em sua arte de colecionar fotos do céu encoberto por galhos de árvores.


Agora, voltemos ao Bento. Bento foi o faxineiro mais asseado que eu já vi na vida. Muito quieto, detalhista em seu trabalho, gentil no trato com as pessoas. Na minha juventude eu descia para o playground à tardinha, início da noite, só para ficar conversando com ele. Quer dizer, não era exatamente uma conversa, mas também não era como se falássemos com pedrinhas na boca a língua grunhida dos sertanejos.


Eram tempos estranhos, anos 1980s. No play havia um quarto-e-sala para o porteiro e um minúsculo quarto sem banheiro para o faxineiro. Bento ficava em uma mureta sentadinho feito um passarinho, com sua roupa passada, seu bigode fino, a observar a passagem dos veículos pela rua. A gente conversava na língua dele, na nossa língua, que era composta de muitos silêncios e de alguns cigarros Belmont, sem querer fazer folclore.


Um dia Bento foi embora. Mais adiante voltou para o prédio e se foi outra vez para nunca mais. Ele era um daqueles passarinhos nordestinos que vêm para cá e que voltam para a terra natal sempre que podem, se possível para sempre. Em seu lugar, acho que ficou seu sobrinho, o Benjamin, que também era um sujeito formidável, mas que não era o Bento.


Eu não sei que fim levou essa gente toda – também não irei procurar no Facebook em uma hipotética comunidade de antigos porteiros e faxineiros do Via Venetto, nome do prédio onde morei.


É que na época eu não recolhia as recordações como eu faço agora – a recordação é sem sombra de dúvida um dos motores da minha escrita. Eu procuro as palavras, as limpo; se possível, faço-as brilhar um pouquinho que seja. Dou-me por satisfeito. Recolho-me. Vou-me embora. E de vez em quando sonho. E de vez em quando eu volto. E de vez em quando é dia de faxina.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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