História de uma ocorrência: o dia em que o povo da escola olhou para cima

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E a coluna  “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, volta às aulas.  Desta vez, o autor fala de um misterioso personagem que emite um alerta fundamental para os dias que se seguem e que leva todos a olharem para cima.

Por Cícero César




“Tem alguém na caixa d´água”, diz alguém da Sala da Diretoria.

“Não é o homem da limpeza?”, pergunta outra voz, agora da Secretaria. “A limpeza da caixa não estava marcada para hoje?”

“Não”, outra voz responde não se sabe de onde, “não está marcada para a semana que vem?”

“Olhaalá o cacalendádário, ooolha o cacalendádário!”  diz o dirigente de turno. “Mas quemquem foi quem didisse que titinha… um homem lá em cima… na cacaixa dadad´água?”

“Vai ver que é trote”, diz uma voz indistinguível, “essa juventude está perdida!”

“Não foi trote coisa nenhuma”, diz uma voz que já teve cordas vocais melhores, “foi a Yolanda, a amiga da escola, quem viu. Foi ela quem nos avisou”

“E sese estiver dededelirando?” questiona o dirigente de turno, que  não é nenhum pouco gagá, mas muito gagago. “Ela não não estatatava de dididieta?”

“Nem todo mundo que está de dieta delira. Eu, por exemplo, passei a vida inteira de dieta, mas não delirei. No máximo, tive uns sonhos esquisitos, sonhava com salsicha feita de papelão, essas coisas, mas estou curada”, argumenta uma voz com que não se deve brincar, devido às constantes alterações de humor.

“Chama a polícia!”

“Chama a Samu!”

“Chama o ladrão!”

“Aproveita que tem gente lá em cima e pede pro Homem Aranha tirar aquela pipa da antena. Às vezes, as pessoas só precisam de uma oportunidade.”

Enquanto se discutia a decisão mais acertada a se tomar, conforme determina uma gestão democrática, com direito à réplica e à tréplica e veredicto pela direção, que só chegaria mais tarde, após a reunião do Conselho Fiscal e do Conselho Regional e da Guarda Nacional, tinha se espalhado a notícia.

Ou melhor, a coisa tinha se transformado em boataria das boas.

Presumivelmente, o pessoal da cozinha sentiu falta de alguma coisa, umas bananas, uns peitos de frango. Os alunos que, enquanto pedem para ir ao banheiro ou para beber água, aproveitam para fazer a ronda escolar no pátio e arredores repassaram a notícia (!), que viralizou mais rapidamente do que a história do novo relacionamento de pop singer. 

A notícia, ainda que truncada, chegou finalmente aos professores que estavam em sala de aula, de costas para a turma, escrevendo a lição no quadro-negro. 

Alguns, precavidos, fecharam as portas e as janelas; outros passaram o zíper na bolsa e correram para os celulares em busca de “breaking news” mais atualizadas; outros, mais religiosos, rezaram três Ave Marias ou suplicaram por um “livramento”; alguns outros, poucos,  aproveitariam a oportunidade para discutir alguns temas transversais propostos pelos PCNs.

Foi então que se ouviu um grito lancinante, digno de animal ferido ou de Maria Betânia quando canta/interpreta “Carcará”:

– FORA, BOLSONARO!

Senti imediatamente uma enorme simpatia pelo maníaco da caixa d´água, afinal, sei que a gente é um pouco o que a gente fala, que a palavra faz o homem.

Só não fui ao terraço conversar pessoalmente com ele, porque, é do conhecimento de todos, sofro de vertigens.

Encaro tiro, porrada e bomba, com certa reserva, mas encaro. Entretanto, tenho dificuldades de subir em uma escada para trocar uma lâmpada – vai ver que foi por isso que Deus me fez tão alto.

Os soldados do fogo foram lá em cima e resgataram o herói solitário, que contra eles esbravejava, soltando fogo pelas ventas, dizendo que o momento político nacional conclamava pela união de todos os servidores públicos. 

A repórter do RJTV, que tinha que entrevistá-lo ao vivo, que estava morrendo de medo, foi obrigada a passar o microfone para o entrevistado, que disse em alto e bom som:

“O povo não é bobo! Abaixo a Rede Globo. Brizola tem razão! Quero ver marcar no calendário!”

Senti, confesso, uma coisa muito forte, que fez descer uma lágrima. Ele falava por nós.

Devem tê-lo levado para a perícia, onde o perito, provavelmente, ficaria na dúvida se o caso dele era para internação, para se voltar à roça ou para aposentadoria compulsória. “Só interna, porque ele ainda tem muito tempo de contribuição”, diria a voz interna que comanda a caneta do perito?

Na sua saída, houve um momento de silêncio. Alguém puxou um “Ouviram do Ipiranga”, mas não vingou. O doce herói passou por mim e me olhou nos olhos, como se me dissesse, “Vai que é tua, comprido”, e, se desvencilhando por um momento, me colou ao peito um adesivo preto onde se lia: “Fora Bolsonaro.”

 O cara era um profeta.

Depois de um tempo, a  rotina da escola se normalizou. Eu, estranhamente, passei a trocar lâmpadas de casa, a frequentar cursos de alpinismo, a gostar de bananas e de peito de frango. Estava me preparando para ir até a caixa d´água e gritar para os telhados e antenas, para as pipas e para os pombos, para quem quisesse e não quisesse ouvir:

– FORA, BOLSONARO!

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