Memória afetiva de uma conversa de botequim com o autor de Memória Afetiva do Botequim Carioca
Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora
A última vez que conversei com Paulo Thiago foi numa mesa do Bar Luiz, em 2019, quando a notícia do fechamento iminente levou uma legião de cariocas saudosos para o tradicional e centenário bar da não menos tradicional Rua da Carioca. Ficamos ali – ao lado do jornalista Zé Octavio Sebadelhe, parceiro de Paulo Thiago no livro Memória Afetiva do Botequim Carioca – a lembrar dos bares que se foram, de suas histórias e da crise que atormentava o Bar Luiz e outros na cidade, antes ainda da pandemia.
O livro conta um pouco da história do Rio de Janeiro através de seus botequins – alguns nem tão botecos assim, na origem inicial da palavra (que também está no Memória Afetiva). É uma história que passa pelo encontro de Tom Jobim e Vinicius de Moraes na Casa Villarino, ponto de partida da parceria mais famosa da nossa música – se alguém divergir e disser que Roberto e Erasmo Carlos são mais famosos, eu retrucarei lembrando que a parceria da Jovem Guarda foi forjada no Bar Divino, na Tijuca. Mas a memória musical do Rio também passa pela Taberna da Glória, onde Hermínio Bello de Carvalho conheceu Dona Ivone Lara, e pelo ZiCartola, onde o compositor e proprietário recebia os mais bambas entre os bambas do samba carioca.
Café Nice, Casa Pardellas, Lamas, Bar 20, Jangadeiros, Zepellin, Sovaco de Cobra, Capela, Luna Bar, Antonio’s e Real Astoria: há um pouca da história da alma boêmia dessa cidade em cada dos lugares pelos quais o livro passeia. Muitos não existem mais como constatávamos naquela tarde numa mesa no fundo do Bar Luiz. As próprias mudanças no Rio de Janeiro provocaram o fechamento de alguns; a cidade – qualquer cidade, mais ainda uma metrópole – é um ser em movimento, desastrados movimentos muitas vezes.
Jornalista e doutor em Antropologia, Paulo Thiago foi o criador da série Rio Botequim, um guia de 50 bares do Rio de Janeiro, que incluía clássicos e históricos botequins cariocas: Bar Lagoa (1934), Capela (1903), Café Lamas (1874), Casa Paladino (1906), Bar Brasil (1907)Armazém do Senado (1907), Bar do Jóia (1909), Adega Flor de Coimbra (1938), Restaurante 28 (1910), Cosmopolita (1926) – e, naturalmente, o Bar Luiz (1887). O primeiro guia foi lançado em 1998 e as seis primeiras edições foram ternamente editadas por ele.
Era uma conversa de apaixonados pelos botequins que compartilhavam a mesma mesa quase por acaso. Na verdade, eu aproveitei que Paulo e Zé Octávio conheciam bem a proprietária – o Bar Luiz serviu de palco para um dos lançamentos do Memória Afetiva – para conseguir um lugar no salão lotado. Mas não éramos amigos; conhecia Paulo Thiago dos botequins (apesar de ambos jornalistas, não dividimos a mesma redação) e fui apresentado ao seu parceiro naquela tarde.
Mas essa é a função maior dos botequins: proporcionar encontros de quem está por ali para beber, pensar na vida e ver o tempo passar. “O velho bar para se jogar conversa fora, como ponto de encontro, uma espécie de clube social informal, desaparece aos poucos”, escreveu, melancolicamente, Paulo Thiago em algum lugar por ocasião do fechamento do Hipódromo, na Gávea, já durante a pandemia, que levou tantos garbosos restaurantes e botequins cariocas. Ele lembrou, com razão, que, no interior de um bar, “se servem bem mais que produtos e serviços, mediados por uma relação de consumo. Nele se guardam memória e afeto”.
Botequins fazem parte da memória e dos afetos de qualquer alma boêmia. A minha também tem acessos de melancolia, mesmo no balcão do meu bar mais íntimo; muitas vezes, em lugares que perderam seu espírito ou em outros que já nasceram sem a atmosfera necessária para promover encontros, curar feridas, criar amizades. Mas a história da cidade também mostra que muitos bares resistem e também faz parte do movimento urbano proporcionar o surgimento de outros com a mesma alma boêmia, com o mesmo espírito agregador.
O Rio de Janeiro, agora em agosto, perdeu Paulo Thiago, que sobreviverá na memória de sua legião de amigos e dos parceiros de botequim. A cidade perdeu também pedaços de sua história com o fechamento do Bar Luiz, do Restaurante 28, que meu pai tanto gostava, do Hipódromo, do antigo Bar da Dona Maria (Café e Bar Brotinho), na Muda, onde Moacyr Luz e Aldir Blanc costumavam tomar umas. Aldir – para fechar a conta e a coluna – escreveu o prefácio do Memória Afetiva de um Botequim Carioca rememorando os seus encontros afetivos nos bares do livro.