Histórias do coronavírus: Lorena não gostava de sorrir, mas encantava ao gargalhar

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Por Weudson Ribeiro, compartilhado de Socialista Morena – 

Às vésperas de se formar, minha velha amiga se tornou estatística aos 28 anos, sem ao menos poder se despedir

FOTO: ACERVO PESSOAL

Lorena só queria respirar.




Conhecida pela gargalhada espalhafatosa, a jovem de aparência soturna e olhar distante era antes de tudo uma aquariana. E anarquista. E pagã, que fique claro.

Nascida em 6 de fevereiro de 1992, ela cresceu sem um pai, num casebre sem janelas. Gorda, negra e lésbica, a realidade sempre foi mais difícil do que ela gostava de admitir. Mesmo assim, Lorena foi heroica. Contra todas as expectativas, a menina de andar desajeitado e cabelo trançado cresceu: com o tempo, tornou-se a amazona que fingia ser quando criança.

Lorena sorria pouco. “Se eu pudesse sair de mim apenas por alguns instantes, gostaria de conversar francamente comigo mesma. Qual o sentido em incomodar com intervenções tão pouco relevantes? Seria a garantia do último suspiro antes de sucumbir?”, escreveu, num desabafo em 28 de janeiro de 2017. Lorena era poeta. Ou “lirista”, diria ela. Queria ter publicado seus livros, mas nem sequer concluiu o primeiro, um romance erótico para mulheres.

A maior lição que aprendi com a minha melhor amiga foi que gargalhar é a saída mais honesta para lidar com o que não pode ser remediado. Era assim que ela driblava a depressão um dia após o outro

Em seus sonhos, ela era Andrea D’Brabant, uma arquiduquesa medieval. Com esse nome, Lorena assinava os ensaios escritos sobre a própria vida. Mas, para mim, Lorena será para sempre “Querida”, como eu costumava chamá-la desde que nos conhecemos na escola, em 2004. E eu, o seu “Querido”.

Em 16 anos, a maior lição que aprendi com a minha melhor amiga foi que gargalhar é a saída mais honesta para lidar com o que não pode ser remediado. Era assim que ela driblava a depressão um dia após o outro: rindo de todos que eram como ela e, sobretudo, dos que eram diferentes. Mas Lorena não fazia pouco do sofrimento: era na dor que ela se reconhecia. Num diálogo platônico, publicado em 3 de abril de 2020, ela reflete sobre frustração:

– Não consigo lidar com o quê estou sentindo. E, sozinha, tudo ainda fica mais difícil. Apenas não aceito, porém, que desdenhe da minha suposta fraqueza.

– E não há fraqueza?

– Não em quem me tornei. Sou uma guerreira, uma arquiduquesa, uma rainha e uma deusa!

– E alguém como você se renderia ao seu pior inimigo?

– Jamais!

– Então não se renda a si mesma.

Em 12 de junho, um dia antes de ser intubada por causa de uma pneumonia decorrente da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, Lorena havia pela primeira vez em anos expressado o medo que escondia atrás de uma cortina de misantropia. “Será que melhoro, querido? Tô assustada… Não ria”, disse ela. “Vontade de chorar. Logo agora que as coisas estavam melhorando para mim.”

Um dia antes de ser intubada, Lorena havia pela primeira vez em anos expressado o medo que escondia atrás de uma cortina de misantropia. “Será que melhoro, querido? Tô assustada... Não ria”, disse ela. “Logo agora que as coisas estavam melhorando para mim.”

Faltava pouco para ela se formar em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB) –o feito levara 10 anos para se concretizar. Tinha descolado o primeiro emprego com carteira assinada como designer –conquista que, durante anos na faculdade de jornalismo, parecia distante. Seu cabelo estava mais bonito do que nunca. “Eu comprei um matizador que, com o suor, todo o vermelho cai na cara. Me sinto uma neguinha com excesso de hidratante sob o sol”, escreveu em 1º de junho.

Reclamar de tudo era sua precaução contra o deslumbramento. “Illustrator é coisa de mulher branca com menos de 30 anos. Agora que tô empregada, vivo esse inferno”, resmungou sobre o programa que usava para editar imagens no novo trampo.

Foi a caminho do trabalho, em 3 de junho, que uma dor abdominal que a assombrava havia anos causou-lhe um desmaio. Um cisto no ovário rompeu-se com a queda: era endometriose. Precisou fazer uma cirurgia de emergência. Infectou-se com o coronavírus no hospital, onde recuperava-se da operação.

Semanas antes de ser internada, ela havia expressado temor acerca das reaberturas comerciais em Brasília: “Corona, querido… Queria morrer de outra forma, não como uma camponesa medieval”, escreveu, em 22 de maio.

Aos 28 anos, em 1º de julho de 2020, Lorena deixou para trás o que de melhor pôde oferecer àqueles que se permitiram conhecê-la: para as amigas, a lealdade; à irmã, Larissa, um exemplo a ser seguido; para sua família, um motivo de orgulho; à ex-namorada Palloma e à noiva, Caroline, o eterno carinho.

Vítima num enredo com tantos culpados, minha velha amiga se tornou estatística sem ao menos poder se despedir.

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