Hitler, Trump, Bolsonaro e a Necrofilia Colonialista Outrocida

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Por mera coincidência, aqui, no Brasil, no dia 8 de janeiro de 2023 – exatamente quando se completa 100 anos da primeira tentativa de golpe de Hitler; 90 anos da queima do Parlamento alemão – milhares de seguidores de Bolsonaro fizeram a história se repetir como tragédia: ocuparam e destruíram o Palácio do Planalto, os prédios da Suprema Corte e do Congresso Nacional

Por Wallace de Moraes, compartilhado de Diplomatic




No dia 8 de novembro de 1923, Adolf Hitler, líder do partido nazista, iniciou suas aventuras golpistas buscando tomar o governo da Baviera (maior estado alemão), partindo da sua capital, Munique. Seu objetivo era tomar a Alemanha inteira e destruir a República de Weimar. Para tanto, utilizou os seus grupos paramilitares, que migraram de todo o país para a conspiração; mas, momentos antes, uma parte do exército e das forças policiais, que o apoiava, o abandonou. Mesmo assim, deram continuidade ao golpe, acreditando que suas ações convenceriam as Forças Armadas, ou pelo menos parte delas, a apoiar o motim.

Não deu certo. Como resultado, vários militantes nazistas foram presos, como o próprio Hitler, e outros mortos. Os governantes da República de Weimar, tidos pela historiografia como conciliadores demais, não hesitaram sobre a prisão de Hitler e de outros líderes nazistas. Essa atitude atrasou a tomada do poder pelo Führer em 10 anos. Hitler foi condenado a 5 anos de prisão. Todavia, as normas jurídicas da Alemanha permitiram que ele saísse com 9 meses do cárcere e voltasse a sua conspiração.

(Imagem: Reprodução Wikimedia)

Justamente, dez anos depois, em 1933, o início da ditadura de Hitler foi precedido pela queima do Reichstag (prédio do Parlamento alemão). Os nazistas atribuíram o incêndio a um militante socialista holandês, Marinus van der Lubbe, e o executaram logo em seguida para não restar dúvidas, nem provas do contrário.

Todavia, anos depois da queda do regime, uma testemunha nazista, em seu depoimento, disse que recebeu ordens para retirar o socialista holandês de uma enfermaria e enviá-lo para o Parlamento na noite do incêndio. Quando lá chegaram, o prédio já estava pegando fogo. A condenação do suposto autor da queima do Parlamento alemão foi, portanto, baseada em uma fake News, plantada justamente para que Hitler suspendesse a constituição de Weimar e instaurasse os campos de concentrações para os comunistas, socialistas, social-democratas e judeus, sob o argumento de defender a ordem e combater o mal. Assim, o “mito” alemão aniquilou fisicamente os seus principais opositores e insanamente impôs o seu racismo.

Já os seguidores de Donald Trump, nos EUA, não aceitaram o resultado das eleições e, no dia 06 de janeiro de 2021, resolveram invadir o Capitólio e impedir a certificação da vitória eleitoral de Joe Biden, presidente eleito pelo voto. Houve enfrentamento com a polícia e tentativa de destruição do congresso americano. Hoje, mais de 900 pessoas estão presas e/ou respondendo a processos em função deste acontecimento.

Por mera coincidência, aqui, no Brasil, no dia 8 de janeiro de 2023 – exatamente quando se completa 100 anos da primeira tentativa de golpe de Hitler; 90 anos da queima do Parlamento alemão; e quase exatos 2 anos da invasão do Capitólio – milhares de seguidores de Bolsonaro fizeram a história se repetir como tragédia: ocuparam e destruíram o Palácio do Planalto, os prédios da Suprema Corte e do Congresso Nacional. Curiosamente, foi a tomada das sedes dos três poderes de um país mais fácil da História da humanidade e sem o uso de nenhum equipamento de guerra, nem armas. Para dar substratos imaginativos de roteiro de novela, o cenário do golpe aconteceu, exatamente, no mesmo lugar onde, uma semana antes, o presidente eleito, Lula da Silva, tinha tomado posse com festa e presença de milhares de populares e de governantes do mundo todo.

Tal como os nazistas fizeram na Alemanha, por mera coincidência, os bolsonaristas alegaram que os responsáveis pela destruição do “Reichstag” brasileiro foram petistas infiltrados. Como de práxis, existem até fotos circulando pela internet para justificar suas teses. O mesmo aconteceu com o caso de Marielle Franco: várias mensagens e fotos diziam que ela teria sido assassinada em função da guerra entre traficantes do Rio de Janeiro, pois ela pertenceria a uma facção, era mulher de chefe do tráfico etc. Até hoje, muitos bolsonaristas acreditam nessa versão, como muitos nazistas acreditaram nas bondades do regime e que o parlamento foi queimado por um socialista.

Por mera coincidência, os movimentos golpistas no Brasil, na Alemanha e nos EUA não tinham uma pauta de reivindicações baseadas em direitos, fossem eles políticos, civis ou sociais. Não reivindicavam aumentos salariais, nem diminuição da jornada de trabalho. Não reivindicavam empregos, nem transportes públicos. Não criticavam a inflação, nem a carestia. Não censuravam o racismo, o patriarcado, as discriminações sociais. Nada disso. Eram movidos apenas pelo medo de um suposto marxismo (na Alemanha), petismo (no Brasil), Liberalismo (nos EUA) e óbvio, em comum, tinham pesadelos diários com o fantasma do comunismo, uma assombração equivalente ao demônio para o cristianismo.

Por mera coincidência, Hitler e Bolsonaro foram militares. Ao fazer parte da força, eles sabem seu linguajar e seus códigos. Donald Trump não foi militar, mas os algoritmos criados pela Cambridge Analytica, na sua campanha, focaram exatamente nesse público. Com efeito, as ideologias de Hitler, Trump e Bolsonaro tinham amplo apoio nos quartéis como expressão mais vil da glorificação do militarismo baseado no belicismo, na supremacia masculina, na obediência; na punição como correção; na disciplina, na hierarquia, nas armas e na guerra contra o inimigo. O militar é treinado para matar, não esqueçamos disso.

A justificativa ideológica de que o oponente deve ser combatido a todo custo é fundamental para o “gado”. Para tanto, utilizaram uma velha tática militar chamada de “guerra psicológica”, segundo a qual deve-se abater a moral da tropa opositora com mensagens e informações que não precisam ter qualquer compromisso com a verdade. Por esse caminho, não existem escrúpulos.

Com base nesses princípios, o nazismo, o trumpismo e o bolsonarismo criaram verdadeiras indústrias de fake News que despejavam propaganda moral e política todos os dias pelas redes sociais, reforçando e/ou exacerbando em suas campanhas eleitorais as premissas do militarismo e os preconceitos igrejistas abalizados na discriminação de corpos LGBTQIAP+, de mulheres independentes e das culturas e religiões de matrizes africanas e indígenas; na idolatria do dinheiro e do Estado; na valorização da força física e do dogma; na campanha armamentista como solução. Tudo em detrimento das descobertas científicas, da contestação intelectual e da pluriversidade. Também rejeitam os princípios dos direitos humanos que, segundo eles, servem apenas para proteger bandidos.

Por mera coincidência, no Brasil e nos EUA, as candidaturas de Bolsonaro e de Trump, foram alimentadas também por duas redes de rádio e televisão. Fox News e Jovem Pan sustentaram ideológica e compulsivamente as verves trumpistas e bolsonaristas, defendendo, inclusive, que as eleições tinham sido fraudadas e descrevendo horrores sobre seus adversários políticos. Assim, preparavam o terreno para aventuras de sublevação e para o reforço daquilo que recebiam nas redes. Flertavam com as ideias fascistas/nazistas, de maneira dissimulada.

Por mera coincidência, tais atitudes nos fazem lembrar da máxima defendida pelo ministro das comunicações de Hitler, Joseph Goebbels, que dizia: “uma mentira dita mil vezes, torna-se verdade”. Desta forma, milhares, quiçá, milhões de fanáticos foram formados no Brasil, nos EUA e na Alemanha, ao ponto de acreditarem que a terra é plana (Brasil e EUA); que a vacina contra a Covid-19 transmite o vírus da AIDS (Brasil); que existiu a raça ariana e que podiam vencer uma guerra contra o mundo todo sozinhos (Alemanha nazista); que a Hillary Clinton, opositora de Trump, era fundadora do Estado islâmico (EUA); e muitas outras aberrações inacreditáveis do ponto de vista científico/lógico.

Se não compreendermos que faz parte do fanatismo negar a ciência, a lógica, a história, os fatos… a realidade, não conseguiremos entender como os “homens de bem”, que se dizem democratas, pedem uma “intervenção militar” (nome pomposo para golpe militar) para retirar um presidente eleito pelo voto para supostamente instaurar uma democracia. Igualmente, é difícil assimilar como nos uniformes dos soldados alemãs estava escrita a consignar “Deus está convosco” e sob ela assassinaram milhões de pessoas. No Brasil e nos EUA, por mera coincidência, em nome de Jesus Cristo, muitos incorporam o lema do “bandido bom, é bandido morto” e consequentemente abraçam a causa do armamento da população.

Por mera coincidência, os três “malvados favoritos” defenderam altos investimentos nas Forças Armadas e em todas as instituições repressivas de Estado, bem como o não pagamento de impostos pelas igrejas. Eles também são contrários aos valores do iluminismo que majoram a ciência em detrimento do dogma. Assim, praticam a defesa do conservadorismo comportamental, ganhando ressonância pela ampla difusão por muitos padres e pastores.

As liberdades para a plena expressão dos amores das comunidades LGBTQIAP+ são tolhidas e encaradas como doença/anormalidade. Seus seguidores encamparam fortemente a pauta da “cura gay” e fizeram uma forte militância em contrário ao aborto. Para tanto, apresentam-se como maiores defensores da vida.

Entretanto, hipocritamente, tal como os nazistas, não se importavam com os campos de concentração que matavam seres-humanos; os bolsonaristas e trumpistas não se preocupam quando um adolescente negro e pobre é assassinado pela polícia, ou simplesmente, perde sua liberdade ao ser presa.

Não se importam quando indígenas morrem de fome e tem seu habitat todo devastado pela mineração e pelo extrativismo predatórios. Em síntese, por mera coincidência, muitas igrejas se transformaram em comitês de campanha eleitoral para os três malvados favoritos.

Os nazistas perseguiram e assassinaram judeus. O trumpismo era obstinado a perseguir latinos e menosprezar/discriminar negros, deixando-os morrer e exaltando de forma genérica os brancos. Trump com sua política rígida de migração, apoiou a separação de pais de suas crianças latinas por meses.

Já Bolsonaro, disse que habitantes de quilombos pesavam em arrobas e se vangloriou em não fazer as demarcações de terras quilombolas e indígenas, citando, inclusive, em vários de seus discursos, que não ajudaria aos yanomamis em particular. Não soube, nem assisti a nenhuma lamentação sua pelas mortes de jovens negros e crianças indígenas nas favelas, periferias e florestas desse país, exteriorizando, assim, os clássicos preconceitos das elites brancas brasileiras.

Por mero acidente, ao analisar as ações de Bolsonaro, Hitler e Trump, lembro do conceito de colonialismo que criou a ideia de raça, segundo o qual, indígenas, africanos, asiáticos e oceânicos são inferiores. Durante séculos, foram considerados como equivalentes a animais. Suas vidas não teriam o mesmo valor que a de um branco rico. Como resultado, foram escravizados e desterritorializados.

É sob essa égide que devemos compreender por que se permite que indígenas morram por inanição, judeus sejam assassinados em campos de concentração e negros sejam caçados nas favelas, periferias e becos. O nome disso é racismo, produto do colonialismo. Por mera coincidência, os “três malvados favoritos” representam movimentos escancaradamente racistas. Mas não só. Suas ideologias propagam a legitimidade e necessidade de uma sociedade hierarquizada, patriarcal branca, cisheteronormativa, capitalista, Estadolátrica, baseada no mérito e na tradição moderna/colonialista e no ódio. Todos esses aspectos podem ser resumidos em um único termo que os unifica: patriotismo.

Por mera coincidência, essas ideias/ações que criam um inimigo comum e compram fanaticamente o ódio e a necessidade de eliminação do outro, do diferente, se enquadram naquilo que chamo por Necrofilia Colonialista Outrocida. Esse conceito busca expressar um desejo pela morte física e/ou psicológica (Necrofilia), principalmente de negros e indígenas (Colonialista), contra comunistas, anarquistas, sem-terras, trabalhadores organizados, membros das comunidades LGBTQIAP+, analfabetos, membros de outras crenças e religiões que não sejam as judaico-cristãs, pobres e de todos que fogem dos padrões de uma sociedade cisheteronormativa, capitalista, Estadolátrica, hierarquizada, disciplinada, obediente, destruidora das nossas florestas e animais (Outrocida).

Por mera coincidência e por tudo que fizeram, os descendentes de indígenas, africanos e judeus podem chamar Hitler, Trump e Bolsonaro por necrofílicos colonialistas outrocidas.

No dia 21 de janeiro de 2023, foram divulgadas as fotos dos yanomamis subnutridos, morrendo de fome e por falta de assistência, em função da tomada das suas terras e da destruição de seu habitat realizada pelos mineradores com a anuência do necro-racista-Estado brasileiro. Uma verdadeira necrofilia colonialista outrocida contra os povos indígenas. Por mera coincidência, as imagens de indígenas subnutridos assemelham-se com as de judeus em campos de concentração e com as de etíopes e vietnamitas, vítimas do colonialismo/imperialismo.

É necessário compreender que os golpistas foram preparados há anos para o 8 de janeiro de 2023. Eles foram “buchas de canhão” de um projeto de poder e hoje os verdadeiros mandantes e beneficiários dos atos estão soltos, um está em Miami; enquanto os “patriotas” estão presos. Talvez, por isso, muitos memes nas redes sociais, os têm chamados por “patriotários”.

A mente de Hitler era golpista, militarista, conservadora, agressiva por natureza. Mas quando tentou o golpe foi corajoso e estava ao lado dos seus minions, sendo preso junto com eles. Todos sabiam que o beneficiário do golpe seria ele. No caso brasileiro e dos EUA, ao que tudo indica, os maiores beneficiários do golpe, diante da possibilidade de não conseguirem êxito, não participaram das ações fisicamente; um foi para fora do país e o outro limitou-se a incitar a ocupação. Ambos largaram seus “minions patriotários” ao mar.

Por fim, cabe retomar a tentativa de golpe de Estado de Hitler na Alemanha, realizada em 1923, para ajudar na nossa reflexão. A República de Weimar não pensou duas vezes em prender o Führer. Mas eles não coibiram a indústria de fake News difundida na Alemanha. Assim, 10 anos depois, em 1933, Adolf Hitler instaurou o regime nazista com todas as perdas humanas que já sabemos.

Todos conhecemos o mais novo Hitler dos trópicos, responsável pela politização das Forças Armadas, principal difusor e beneficiário da ampla difusão de fake News desde 2014, que tanto mal fez à sociedade brasileira. Quantas mortes poderiam ter sido evitadas se não se divulgasse mentiras sobre a pandemia? Marielle Franco e outros estariam mortos se não fosse o Hitler dos trópicos e o seu movimento? Certamente, não.

Os ensinamentos da História são fundamentais para qualquer governante, ainda mais quando se trata de uma relação com fascistas/nazistas. Desta forma, as instituições não podem hesitar em tomar as atitudes necessárias para frear o ódio e o curso de um regime que preconize a aplicação da necrofilia colonialista outrocida.

Se as instituições não o fizerem, a História nos ensina que a segunda chance que os nazistas tiveram para assumir o poder não perdoaram nenhum opositor, levando-os para os campos de concentração. Ignorar a História tem seu alto preço. Por isso, Marx, certa vez, disse que a “História se repete, a primeira como farsa, a segunda como tragédia.” Não existe coincidência na História: ou aprendemos com ela ou somos devorados.

Wallace de Moraes é professor do Departamento de Ciência Política e dos Programas de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) e Filosofia (PPGF), membro do Quilombo do IFCS e líder do Coletivo de Pesquisas Decoloniais e Libertárias (CPDEL), todos da UFRJ. Canal no YouTube. 

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