Por Paulo Moreira Leite, Brasil 247 –
No calor de 35 graus de Floresta, naquele pedaço de Pernambuco onde os desertos não param de crescer, um velhinho oferece água em tanques de plástico. Na boleia da carroça puxada por um burrico de pernas bambas e passos hesitantes, o tanque tem capacidade para 200 litros e custa R$ 4. É dinheiro.
Em Floresta, a garganta fica seca em poucos minutos de conversa. O suor empapa a camisa, e o sol deixa a pele esturricada. A água tem um valor difícil de imaginar fora dali. Nesta região de PIB muito baixo, quem ganha o salário mínimo nacional vira arrimo de família. Com R$ 4, é possível almoçar macarrão, arroz, feijão, carne e salada. Numa cidade próxima, encontra-se um quarto de hotel com cama limpa, banho quente e café da manhã por R$ 28. A diferença é a água. Comparada à conta de uma família de cinco pessoas no Brasil Central, o tonel do burrico custa o quádruplo.
A seca nordestina acompanha a política brasileira desde os tempos em que o país era um império escravista. Já naquele tempo, Dom Pedro II pensava numa obra de engenharia capaz de distribuir uma porção dos bilhões de metros cúbicos do Rio São Francisco para a população necessitada. Proposta semelhante foi debatida no governo de Fernando Henrique Cardoso, mas naufragou na guerra entre chefes políticos de Estados com-água – Minas Gerais e Bahia – e sem-água – Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
Em seu primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu levar a ideia de distribuir as águas do São Francisco para a vida real. Tão real que, embora o povo nordestino ainda não tenha recebido uma gota a mais em suas torneiras (pois a primeira etapa dos trabalhos da transposição do São Francisco só ficará pronta no ano eleitoral de 2010), na semana passada o presidente Lula liderou uma comitiva de ministros e assessores para uma visita de três dias a um conjunto de concreto, rocha e manta plástica com mais de 700 quilômetros de extensão. “Aqui a aprovação de Lula passa dos 95%”, diz o deputado baiano João Leão. E lembra a presença da candidata presidencial Dilma Rousseff na caravana, acompanhada pelo também candidatável Ciro Gomes, a quem Lula agradece por ter comprado a briga inicial pela transposição quando era ministro da Integração Regional.
Em função de um nome enganoso, “transposição”, muitos ficaram com a impressão de que se pretendia mudar o Velho Chico de lugar. Não é isso. O rio não sai do lugar – só um pouco da água, algo como 2% de sua vazão. O projeto é construir canais de concreto para ligar as diversas bacias do rio, transportando água aos açudes da região, de onde ela será enviada a depósitos menores, até chegar à casa de quem precisa.
Adversário mais conhecido da transposição, em 2007 o bispo da cidade baiana de Barra, dom Luiz Flavio Cappio, fez uma greve de fome de 23 dias para denunciá-la. Nas missas e nos sermões recentes, dom Cappio silencia sobre a transposição e fala sobre a necessidade de revitalizar as margens e de preservação ambiental, proposta que também faz parte do pacote do governo, num custo à parte de R$ 1,5 bilhão, além do investimento inicial de R$ 4,6 bilhões. O bispo estava fora da cidade na quarta- -feira, quando Lula esteve por lá. A rádio comunitária, que dom Cappio controla, saiu do ar durante a visita, a primeira que um presidente da República fez à cidade.
Há uma discussão palpável sobre transposição e revitalização na cidade. Até o ano passado, as obras garantiam emprego a 120 trabalhadores. Em outubro de 2008, eles foram dispensados e substituídos por soldados do Exército. Inconformadas, as famílias choram empregos perdidos. À espera da chegada de Lula, a dona de casa Maria Aparecida Costa da Silva dizia: “Quero o emprego do meu genro”.
Capaz de envolver interesses profundos, a transposição foi atacada em dois flancos. De um lado, a partir de questões ambientais. De outro, a partir de empreiteiras de olho num investimento de vulto. A briga múltipla foi tão feia que, para garantir o início dos trabalhos, Lula usou as prerrogativas de comandante em chefe das Forças Armadas e convocou o Exército para assumir a primeira fase da construção: a ligação de concreto entre o São Francisco e os canais que chegarão ao interior nordestino.
(Publicado pela Epoca, 15/10/2009)