Trabalhadores baianos recrutados para vinícolas gaúchas detalham o cotidiano em condições análogas à escravidão
Por Iara Vidal, compartilhado da Revista Fórum
Na foto: Créditos: Polícia Rodoviária Federal/Divulgação - Imagens de espaços onde eram mantidos os trabalhadores em Bento Gonçalves (RS)
Alojamento com câmeras para monitorar tudo. Em caso de reclamação, a resposta era a tortura. Esses fatos foram narrados por dois trabalhadores baianos que não quiseram ser identificados e conseguiram fugir do local onde ficava o alojamento localizado em Bento Gonçalves (RS) que são acusadas de submeter trabalhadores nordestinos a trabalho análogo à escravidão. Entre as empresas envolvidas estão Salton e Aurora.
O depoimento dos trabalhadores foi feito à TV Globo da Bahia. Ambos contaram que fugiram após presenciarem agressões físicas, verbais e ameaças. O caso foi descoberto na quarta-feira (22), após uma operação conjunta da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Os dois trabalhadores ouvidos pela emissora relataram que não tinham acesso à toalha, lençol, nem talheres. A comida, que chegava em quentinhas e geralmente estava estragada, era consumida com a mão.
“Até na cadeia a pessoa é tratada melhor do que lá. O que passamos não foi coisa de Deus”, desabafou uma das vítimas.https://d-21198271884259734909.ampproject.net/2302031721000/frame.html
Por causa da falta de estrutura, os dois homens acumularam dívidas com a compra de comidas, talheres e outros itens básicos. As jornadas de trabalho passavam de 15h por dia e muitos deles começaram a colheita nas primeiras horas da manhã e voltavam para o alojamento após 23h. No dia seguinte, o ciclo se repetia.
“Acordavam a gente 4h da manhã, chamando a gente de demônio e presidiário. Nem força para trabalhar a gente tinha”, disse um dos homens na entrevista.
Um dos baianos ficou no local por 10 dias e fugiu com a ajuda da família após adoecer e não ter direito a receber cuidados médicos. Já o segundo ficou no local por 22 dias e precisou dormir na rua antes de conseguir ajuda financeira da família para voltar para a Bahia.
Além das dívidas referentes a alimentação, eles precisaram arcar com a volta para casa sozinhos. Dos R$ 4 mil que seriam pagos pelo trabalho, as vítimas não receberam nem metade: um deles recebeu cerca de R$ 400 pelo trabalho de 10 dias, enquanto o outro não ganhou nada.
Recrutador já está solto
O responsável por recrutar e manter os trabalhadores é o empresário baiano Pedro Augusto de Oliveira Santana, apontado como responsável pela empresa Oliveira & Santana. Ele aliciou mais de 200 trabalhadores da Bahia para trabalhar na safra da uva em Bento Gonçalves (RS) e que foram resgatados em condições análogas à escravidão. Ele foi preso após a PRF resgatar 150 pessoas no alojamento, mas foi solto depois de pagar uma fiança de R$ 40 mil.
Após a repercussão do caso, os dois baianos têm apenas um desejo: que a justiça seja feita. Eles querem ser ressarcidos pelas dívidas que adquiriram por causa das péssimas condições de trabalho e desejam que os responsáveis por enganar os trabalhadores sejam presos.
“A empresa lucrava muito em cima do nosso trabalho. Queremos alguma indenização para pelo menos pagarmos as dívidas que fizemos”, afirmou um dos trabalhadores.
Apesar de já estarem na Bahia com as suas famílias, as vítimas convivem com o trauma do que viverem na vinícola e com o medo de serem procurados pelos suspeitos. “Tenho pesadelos todas as noites”, desabafou um deles.
Ida para escravidão
Os homens são amigos e saíram da Bahia juntos em janeiro de 2023 em busca de uma oportunidade de emprego de dois meses na colheita de uvas em uma vinícola do estado gaúcho. A dupla soube da vaga a partir do familiar de um deles, que mora no estado há anos.
Eles fizeram contato com o responsável pela contratação por telefone e combinaram os detalhes da viagem e do emprego. Segundo eles, o combinado era que teriam alojamento, as três refeições e um salário de cerca de R$ 4 mil pelos dois meses com as passagens de ida e volta pagas pela empresa.
“Chegamos lá com um grupo grande de pessoas. Quando vimos a situação todos quiseram ir embora, mas a gente não tinha dinheiro para voltar. Quando souberam que dei baixa na minha carteira [de trabalho], ele [suspeito] passou com a pistola com o cabo para fora para me intimidar. Apontavam a arma para irmos trabalhar, davam choque no pé. Era trabalho forçado”, contou um deles.
Outro lado
Em nota, a assessoria de imprensa das empresas envolvidas no caso, Salton e Aurora, MCom, afirmou que os trabalhadores em condições análogas à escravidão “não foram resgatados nas vinícolas e nem sofriam com condições análogas à escravidão dentro das mesmas. A situação degradante em que se encontravam foram identificadas na moradia/alojamento da empresa Oliveira & Santana, e não em vinícolas. As vitimas jamais foram colocados em condições como estas dentro das vinícolas”. O texto pede, ainda, a correção de que o trabalhador havia fugido do alojamento e não de uma das vinícolas.
A Revista Fórum mantém a informação, já que as empresas são as responsáveis pelas terceirizadas que elas contratam uma vez que a prestação de serviços integra a cadeia de negócios dessas marcas. Quanto à fuga, a matéria foi corrigida.
*Matéria atualizada às 12h de domingo, 26, para incluir a nota da assessoria de imprensa das vinícolas.
Com informações do G1