O sangue de repórter que continua a correr em minhas veias me faz encontrar grandes histórias de vida

A um quarteirão de distância de onde moro, um homem vive em uma esquina há cinco meses. O nome dele é Fernando, filho de pai que trabalhava nos sítios da região de Atibaia, onde seus afazeres era cuidar de vaca, cavalo, porco, plantação de milho, de mandioca, de morango e de crisântemo. A mãe cumpria duas jornadas de trabalho por dia, uma ajudando o marido na lida nos sítios e outra dividida entre as tarefas de casa e os cuidados com os dois filhos.




Fernando tem 42 anos, duas barracas (doadas), um esqueleto de cama de madeira e o sonho de conseguir emprego e moradia digna onde possa, um dia, viver com a companheira que ainda há de encontrar.

Morador de rua veterano (Praça de Sé, Vale do Anhangabaú, Parque Dom Pedro, Santana e Estação Armênia), paulista nascido em Osasco e registrado no cartório de Itapevi, Fernando chegou ao bairro acompanhado por sua mala velha contendo uma coberta, uma camisa e uma bermuda. Fez pouso no posto de gasolina, no edifício de consultórios dentários e na calçada perto do supermercado, onde, com ripas de madeira que pegou nas caçambas, construiu o que chama de casinha.

Quando ele viu a esquina perto de casa livre e limpa, pensou: “É aqui mesmo”. Desde então, conta com a generosidade das pessoas que moram em apartamentos, em casas e das senhoras, senhores, moças e moços que passam por ali. O morador da casa cuja calçada ele ocupa toda semana lhe entrega um tíquete para almoçar em uma lanchonete e libera água e energia elétrica. A barraca maior, que serve de quarto e sala de estar, foi doada por um rapaz do bairro e a menor, doada por uma mulher, é depósito para guardar coisas que ele acumulou nesses cinco meses e também onde ele toma banho. Dos prédios da esquina brotaram curiosidade, amizade e generosidade de um grupo de moradores dispostos a ajudar Fernando, seja com um par de tênis ou roupas para as noites de frio.

Fernando carrega do passado marcas difíceis de ser apagadas. A separação dos pais, a mudança com a mãe e o irmão para Barueri e depois Carapicuíba o fizeram conhecer um outro mundo. Como ele mesmo diz, passou a andar com pessoas que não prestavam e a fazer coisas erradas que resultaram em 10 anos de prisão. Ao ser posto em liberdade, Fernando tinha 34 anos, estava sem trabalho e o apoio da mãe e do irmão que não acreditavam que um ser humano podia se recuperar depois de uma década atrás das grades. A angústia o levou a novamente fazer coisas erradas. Acabou preso e cumpriu quatro anos de pena.

Diz ele que na prisão passou a pensar na vida e a ter certeza de não mais viver na casa da mãe. Sua alternativa era morar na rua e nunca mais ficar enjaulado por causa de malfeitos.

Como lembrança do tempo de juventude, o futebol é a melhor que tem. O tempo dos campeonatos das quebradas de Carapicuíba provoca um sorriso no rosto de Fernando, lateral-esquerdo do Rola Bola. O dono do time tinha uma van que levava os craques para o jogo. Na vitória ou na derrota, o pós-futebol era na base do churrasco e da cerveja. As conversas ou a resenha, como se fala hoje, tinham endereço certo, o bar do dono do time.

Fernando é corintiano, fã de Neto, Viola e Marcelinho Carioca, e tem respeito pelo então palmeirense Edmundo. Já foi ao Pacaembu e ao Morumbi ver o Timão jogar. As frequentes e violentas brigas entre organizadas fizeram com que ele se afastasse dos estádios.

No espaço onde vive, Fernando faz uso das latinhas de cerveja e refrigerante que cata no lixo para produzir o que mais gosta: ornamentos feitos com latinhas amassadas. Para exibir sua arte, ocupa o meio-fio e pequena parte do asfalto. Em dia de jogo do Corinthians, por exemplo, desenha o escudo do time do coração, o do adversário e ainda passa o tempo da partida atualizando o placar. A vizinhança gostou tanto dos desenhos que lhe passou a oferecer mais e mais latinhas.

Com orgulho, o artista conta que teve quem parasse o carro para tirar fotos dos desenhos e até quem lhe encomendasse um para saudar a filha que iria nascer.

Na manhã em que fui até a esquina conversar com ele, Fernando estava um pouco abatido e logo foi dizendo que havia acontecido uma coisa chata. Tinha sido ameaçado por uma dupla de policiais militares que faz ronda no bairro. Com a prepotência típica da PM, um deles disse que expulsaria Fernando da esquina caso soubesse de alguma coisa errada que ele tenha feito.

Fernando sabe que todo morador de rua é alvo de tratamento preconceituoso, da velha história de quem não tem emprego nem casa para morar está nesta situação porque é vagabundo, drogado e ladrão.

Durante a conversa que tive com ele no fim da manhã de segunda-feira (31), vi duas bolas de futebol que ele havia ganhado no domingo e a chegada de uma senhora e o filho para entregar um saco plástico e uma caixa de papelão. Quando Fernando abriu os presentes, tirou do saco uma camisa polo de mangas compridas onde se destacava o escudo do seu querido Corinthians, e da caixa surgiu uma pequena e antiga televisão que fez Fernando já se imaginar assistindo a suas novelas favoritas.

Assim é a vida na rua para Fernando, que aos 42 anos alimenta a esperança de tirar seus documentos para poder arrumar trabalho. Ele já atacou de servente de pedreiro, jardineiro, recapeamento de asfalto, office boy, lava-rápido e outros serviços mais.

Vamos ajudá-lo?