Por Luiza Franco, publicado em BBC Brasil –
Quando a catedral de Notre-Dame, em Paris, pegou fogo, doações de diversas partes do mundo para a reconstrução somaram 750 milhões de euros (ou cerca de R$ 3,3 bilhões) nos primeiros dez dias após a tragédia.
À época, surgiram nas redes sociais no Brasil as comparações e críticas à situação do Museu Nacional, destruído por um incêndio em setembro de 2018 e que, um ano depois, arrecadou apenas R$ 316 mil para sua recuperação.
“O que se perdeu para a cultura humana, para a humanidade, foi infelizmente muito mais do que se perdeu para a Notre-Dame. Isso é um fato. Queria que não fosse assim, mas é. Tinha material etnográfico que representava tribos distintas. A existência dessas tribos se resumia a um exemplar que estava na nossa coleção. Essas tribos correm o risco de serem riscadas da história como se elas nunca tivesse existido”, diz Alexander Kellner, diretor da instituição, em entrevista à BBC News Brasil.
A discrepância nas doações tem origens financeiras e culturais, que envolvem, segundo Kellner, uma desconfiança generalizada de como os recursos serão aplicados, diante da imagem de corrupção associada ao poder público brasileiro dentro e fora do país.
“Tenho saudade dos tempos em que o Brasil era conhecido por suas praias, Carnaval pujante e excelente time de futebol. Hoje, somos conhecidos internacionalmente pela corrupção. Desde as pessoas mais simples até organizações estão preocupados sobre como esse dinheiro vai ser usado. Temos que encarar isso de frente”, afirma Kellner.
Para reerguer o museu e retomar suas atividades, diz ele, serão necessários recursos do governo federal, além de apoio de outras instituições e doações.
O museu faz parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Kellner espera ter um encontro com representantes do Ministério da Educação nas próximas semanas. “Sem o MEC, não tem o novo Museu Nacional”, conclui o diretor.
O Ministério da Educação liberou, em 2018, R$ 16 milhões para a reconstrução. O Ministério da Ciência e Tecnologia destinou R$ 10 milhões que também serão aplicados na reconstrução do prédio e na compra de equipamentos dos laboratórios de pesquisa da instituição.
Uma emenda coletiva da bancada do Rio na Câmara Federal garantiu R$ 55 milhões para o trabalho de reforma do museu. Com o contingenciamento orçamentário anunciado pelo governo federal, terão um corte de 21,63%, o que representa uma redução de R$ 11,9 milhões.
Kellner diz que não está preocupado com o contingenciamento ainda. “Estou mais preocupado que liberem a primeira parcela porque eu já tenho como empregar essa verba. Isso é o mais importante. Deixa a gente começar a trabalhar, depois vejo como fica o contingenciamento.” Segundo ele, essa liberação está, em tese, prevista para as próximas semanas.
Atualmente, as pessoas que trabalhavam no museu – 90 pesquisadores, 220 técnicos administrativos, cerca de 125 terceirizados e por volta de 500 alunos – estão abrigadas em outras instituições ou, em alguns casos, trabalhando de casa.
O diretor não sabe dizer até quando durará essa situação. A meta é retirar todos os escombros até o fim deste ano. Ainda não há um prazo para reerguer o museu. “Precisamos que o projeto termine. Acreditamos que nos próximos 10 ou 11 meses vamos ter esse projeto com todos os detalhes.”
Veja os principais trechos da conversa de Kellner com a BBC News Brasil.
BBC News Brasil – É possível comparar o que foi perdido com os incêndios da Notre-Dame e do Museu Nacional?
Alexander Kellner – O que se perdeu para a cultura humana, para a humanidade (no Museu Nacional) foi infelizmente muito mais do que o que se perdeu para a Notre-Dame. Isso é um fato. Queria que não fosse assim, mas é. Pelo valor de pesquisa, pelo que esses objetos representavam. Tinha material etnográfico que representava tribos distintas.
A existência dessas tribos se resumia a um exemplar que estava na nossa coleção. Essas tribos correm o risco de serem riscadas da história como se elas nunca tivesse existido. Não tem nenhum artefato físico que comprovaria essa presença. Esse é um exemplo. As múmias do Egito… Fico emocionado só de pensar nisso. Há várias instituições que querem doar material e eu quero ter material etnográfico de todos esses países.
BBC News Brasil – Mas é preciso garantir a segurança deles…
Kellner – O Brasil tem que merecer esse material. Só vamos merecer se reconstruirmos o palácio na melhor forma possível para que as pessoas e para as novas coleções. Não podemos deixar acontecer o que aconteceu. Nesse sentido o museu do Louvre quer participar. Talvez não possam fazer uma doação física, mas talvez façam um empréstimo de cinco, dez anos…
Eu, na qualidade de diretor do museu, não aceito nada que não tenha condições de aceitar. Se eu não puder, se me sentir inseguro, não vou aceitar. Já perdi demais, não vou perder meu nome também.
BBC News Brasil – Quando aconteceu o incêndio da catedral de Notre-Dame houve uma mobilização pela recuperação do patrimônio. Por que isso não aconteceu aqui?
Kellner – Sim, eles chegaram a pedir para as pessoas não mandarem mais. Nós recebemos R$ 316 mil em doações. Somos extremamente gratos por elas. Elas fizeram com que a gente pudesse dar continuidade ao dia-a-dia do nosso trabalho e atuar no resgate das peças dos escombros.
Mas quais são as diferenças aqui? O primeiro motivo é geopolítico. Fica na Europa. Se tivesse uma Notre-Dame aqui, não teria a mesma mobilização. A França… O que eles valorizam cultura é algo que a gente tem que aplaudir de pé. Eles têm uma visão de cultura diferente. Há outros três motivos práticos.
Não existe no empresariado e na sociedade brasileira uma tradição de mecenato para áreas culturais e científicas. Ninguém está acostumado a doar para museus. Não faz parte da nossa cultura. Em segundo lugar, quando a pessoa faz uma doação aqui, ela não ganha nada em troca. Não tem benefício por renúncia fiscal. No Museu de História Natural americano, por exemplo, toda vez que você faz uma doação você pode abater de 60% a 80% do imposto. Pelo que sei, é o que acontece na França, então a pessoa tem um benefício. No final das contas, paga mais, mas ela direciona os recursos para uma causa na qual acredita.
O terceiro motivo é aquela história da corrupção. Tenho saudade dos tempos em que o Brasil era conhecido por suas praias, Carnaval pujante e excelente time de futebol. Hoje, somos conhecidos internacionalmente pela corrupção. Você conseguir vencer isso não é simples. Você tem que ter credibilidade. Desde as pessoas mais simples até organizações estão preocupados sobre como esse dinheiro vai ser usado.
O brasileiro é preocupado com isso. Temos que encarar isso de frente. Isso é um sentimento. Mas não é o caso do projeto de reconstrução do Museu Nacional. Se os alemães confiaram na nossa associação, pode confiar também. Eles são um povo desconfiado. Eu digo a eles que eles são nossa propaganda.
BBC News Brasil – O senhor se reuniu com a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Michelle Müntefering. Como foi essa conversa?
Kellner – A reunião foi ótima. A Alemanha fez uma promessa pública de dar 1 milhão (R$ 4.371.900, em valores de 6 de junho de 2019) de euros para o museu. Eles farão isso de maneira escalonada. Já liberaram 180 mil euros. Esses recursos foram utilizados no resgate. Agora vão liberar as próximas levas.
BBC News Brasil – Mas por que a Alemanha?
Kellner – Quando assumi o museu, fui procurá-los, antes mesmo do incêndio. Eu falo alemão, meus pais são alemães. Quando você fala a língua, transmite um grau de confiabilidade grande.
BBC News Brasil – Como contornar essa desconfiança em relação ao uso que os recursos terão?
Kellner – Para isso criamos a Associação de Amigos do Museu Nacional. O site mostra as doações com toda a transparência. Temos que atualizar, mas estamos lá. Se alguém tiver sugestões de como podemos fazer melhor, de forma mais transparente, somos todos ouvidos. Temos que reconstruir a credibilidade.
A associação é de pessoas ligadas à instituição. Elas fazem horas extras que não são pagas, elas trabalham de graça. Trocamos a cada dois anos para não ficar pesado para elas. Quem a dirige não tem nenhum benefício.
O que aconteceu com o museu foi um absurdo, mas é isso, temos que reconstruir. Não adianta ficar chorando pelos cantos. Agora a gente tem que reconstruir o museu. Para isso precisamos de ajuda, tanto da população, quanto do governo, quanto de instituições internacionais. A gente não dá valor à instituição, não temos o sentimento do que ela realmente representa. É uma das poucas instituições cuja importância transcende as fronteiras do próprio país. Temos material do Egito, da Áustria, da Alemanha, da Grécia, da Itália… É uma coisa fantástica.
BBC News Brasil – Dados da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil) apontam que o bloqueio orçamentário anunciado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro atingirá verbas destinadas à reforma do Museu Nacional. Como isso pode afetar as obras?
Kellner – Quem está nessa negociação é a UFRJ. Participamos marginalmente. Não tenho o poder que as pessoas acham que eu tenho. Fui surpreendido com essa notícia também.
Mas não estou tão preocupado com esse contingenciamento. Estou mais preocupado que liberem a primeira parcela porque eu já tenho como empregar essa verba. Isso é o mais importante. Deixa a gente começar a trabalhar, depois vejo como fica o contingenciamento. Agora, é uma emenda parlamentar impositiva. (Essa palavra) deve significar alguma coisa.
Não existe desculpa para a gente não começar o projeto este ano. Só não vai começar se não liberarem o dinheiro da emenda, o que eu sei que os deputados estão empenhados em fazer.
Mas como o museu é parte da UFRJ, eu não participo dessas conversas, então não sei.
BBC News Brasil – Quanto vai custar para reerguer o museu?
Kellner – Isso vai parecer contraditório, mas é verdade: as coisas estão indo bem. Recebemos R$ 16 milhões do MEC no governo Temer. R$ 10 milhões foram empregados para que o palácio não caísse e para prover um telhado provisório. Isso é fundamental para que a gente continue trabalhando. Essa etapa está praticamente concluída. Agora é que começa o trabalho.
Podemos ir a qualquer lugar do palácio. Antes tinha risco. Agora o palácio é nosso. R$ 5 milhões foram para dois projetos da Unesco: um projeto executivo da parte interna do palácio. Vai ter escada rolante, ar condicionado; além disso, um projeto das novas exposições, que terá ideias gerais, e não um detalhamento, porque isso vai depender da coleção. R$ 1 milhão foi para a universidade contratar uma empresa para fazer projeto de restauração da fachada e dos telhados definitivos.
BBC News Brasil – Mas ao final, quanto vai custar?
Kellner – O projeto vai dizer isso. Tenho uma estimativa de US$ 100 milhões (cerca de R$387 milhões, em valores atuais), sem o acervo.
BBC News Brasil – Há um prazo?
Kellner – Vamos retirar os escombros até o fim do ano. (Quanto a reerguer o palácio) precisamos que o projeto tenha terminado. Acreditamos que nos próximos 10, 11 meses vamos ter esse projeto com todos os detalhes.
BBC News Brasil – O governo Bolsonaro cortou R$ 819 milhões dos R$ 4,1 bilhões de verba não obrigatória da Capes e anunciou o congelamento de bolsas ociosas. Como ficam os alunos do museu, as bolsas estão sendo pagas?
Kellner – Neste momento, sim, que eu saiba não fomos afetados. Mas me preocupa um corte desses, porque tenho alunos se formando e vou precisar de bolsas para os próximos. Agora não estão afetados mas o futuro está ameaçado.
Tenho uma preocupação real com o futuro. O cenário está incerto para todos, não só do museu. Estamos preocupados não só como museu mas como pesquisadores, educadores. O cenário de pós-graduação em geral nos preocupa, mas isso transcende questões do museu.
BBC News Brasil – Mas então não tem uma garantia que o museu possa dar a futuros alunos?
Kellner – Ninguém pode dar garantia.
BBC News Brasil – O senhor já conheceu o ministro da Educação, Abraham Weintraub? Vai se encontrar com o ministro em algum momento?
Kellner – Há uma sinalização de uma reunião. Depois de algumas matérias na imprensa, houve um contato. Começamos a conversar. Isso é importante para a gente. Senão com ele (ministro), com as pessoas com poder de decisão. Sem o MEC, não tem o novo Museu Nacional. Mas não só o MEC, estamos procurando outros também.
BBC News Brasil – O que estaria em pauta? A liberação da emenda e o que mais?
Kellner – A liberação da emenda, pagamentos que estão suspensos, novas iniciativas, temos uma pauta razoável. Nem tudo é dinheiro. Por exemplo, gostaríamos que o ministro viesse nos visitar. É importante que a gente consiga abrir um canal de comunicação com o MEC. O museu não pertence a um grupo de pessoas, a partido político, ele pertence à sociedade brasileira.
BBC News Brasil – Vocês estão trabalhando em outras instituições, em condições longe das ideias. Até quando vai isso?
Kellner – Precisamos fazer alguma coisa. Há a sinalização do MEC para se reunir conosco e estamos ansiosos para apresentar os projetos. Sem o MEC, dificilmente vai se conseguir reconstruir.
BBC News Brasil – O senhor acha adequado que o museu seja parte da UFRJ, ou há outro modelo que poderia ser melhor?
Kellner – Eu, Alex Kellner, nunca achei que sair da universidade é o melhor caminho. Mas não podemos ficar na posição em que estamos no organograma da universidade. Temos que subir [na hierarquia], ser um instituto, um centro. Hoje somos parte do Fórum de Ciência e Cultura. Isso tem tudo a ver com muita coisa negativa que aconteceu no museu.
BBC News Brasil – O que você poderia fazer virando um instituto, por exemplo, e o que não poderia?
Kellner – Aumentaria nosso orçamento e ficaríamos mais perto do processo decisório da universidade. Hoje não estamos representados, estamos muito longe. As decisões passam batido por nós. A nova reitora (a biofísica Denise Pires de Carvalho, nomeada no início de junho pelo presidente Jair Bolsonaro) se comprometeu em nos ajudar a mudar de posição no organograma da universidade.
BBC News Brasil – Que tipo de decisão?
Kellner – Verba, prioridades… Essa discussão dos caminhos da universidade, onde cada um apresenta suas propostas, nessa nós não somos ouvidos. Mas a palavra final tem que ser da universidade. Só que reitores não são ditadores. Eles têm que respeitar o conselho.
BBC News Brasil – Mas por que não virar uma instituição independente?
Kellner – Fiz doutorado no Museu de História Natural Americano, mas meu diploma é da Universidade de Columbia. Hoje, esse museu tem seu próprio programa de graduação e tem uma enorme dificuldade porque não está atrelado a uma universidade. Museus tentam ficar próximos da academia porque vão ter novos pesquisadores, circulação de ideias. Nós, no Museu Nacional, já temos isso. Por que vou perder? Sair da universidade seria um equívoco. A reitoria anterior estava próxima ao museu, o reitor nos ouvia…
BBC News Brasil – Mas mesmo assim não foi o bastante?
Kellner – São questões históricas. Para ser o bastante precisamos mudar de posição no organograma. Temos que sair da posição em que estamos, nos aproximar do núcleo decisório da universidade. A nova reitoria tem esse compromisso firmado.
BBC News Brasil – É a prioridade de vocês?
Kellner – Depois que assumi, comecei a promover uma reforma administrativa, treinei pessoas para casos de incêndio, e aí aconteceu o incêndio seis meses depois. Minha meta é reconstrução do museu. As outras coisas passaram a ser secundárias.
BBC News Brasil – Como as pessoas fora do país reagiram à notícia do incêndio?
Kellner – Ficou ruim para o país, pensaram, “poxa, como é que deixou pegar fogo?”. Recebemos a corte portuguesa, tínhamos os líderes de um país europeu aqui. O Brasil só teve dois imperadores, e eles moraram lá, no palácio onde funciona o museu. Princesa Isabel também nasceu lá e brincava no jardim das princesas, que está sendo restaurado.
BBC News Brasil – A Polícia Federal concluiu que o incêndio foi provocado por uma “gambiarra” no sistema elétrico. Acha que houve problemas além de falta de recursos?
Kellner – Quando eu assumi o Museu Nacional, em fevereiro de 2018, uma das principais preocupações era que a gente eliminasse qualquer situação de risco. Não tenho capacidade técnica para comentar o laudo. Estou convencido de que o fogo realmente começou no auditório, como diz o laudo, pois lá tem muito ar-condicionado. Pegou fogo, então algo estava como não devia estar. Mas como tem investigação em curso, prefiro não comentar muito. O que posso te dizer é que a ligação daquele ar-condicionado é bastante antiga. Mas não tenho conhecimento técnico para te dizer.
BBC News Brasil – Vocês não tinham conhecimento de “gambiarras” no sistema elétrico?
Kellner – Além de não ter, porque se tivesse não teria deixado, a preocupação era tão grande que assim que assumi dei início a um curso de prevenção e primeiras medidas contra uma situação de incêndio. Se tivesse acontecido durante a semana não tínhamos as medidas básicas, com portas contra as chamas. Mas o dinheiro estava vindo, isso é que é o pior, isso me deixa inconformado. Em um ano seria outra história. Mas não posso deixar de registrar a enorme decepção de saber que não tinha água nos hidrantes.