Ideologia e o direito ao golpe de estado

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Por Fábio de Oliveira Ribeiro, publicado no Jornal GGN – 

O golpe de 1964 foi uma quartelada, uma evidente violação da hierarquia militar. João Goulart era o legítimo comandante em chefe das Forças Armadas e foi deposto por seus subalternos. Como não podiam ou não queriam entrar para a história como golpistas os arquitetos do golpe justificaram suas ações como uma necessidade democrática imposta às Forças Armadas em razão de uma suposta quebra da legalidade desejada ou planejada pelos comunistas.




Algo semelhante ocorreu em 2016. O processo de Impedimento de Dilma Rousseff mediante uma fraude, conduzido por políticos que tinham como objetivo primeiro conquistar o Poder Executivo para continuar a saquear o Brasil e garantir sua impunidade, não foi legítimo. O fato do Judiciário não o ter abortado tampouco o legitima, pois os juízes queriam se vingar da presidenta que havia vetado o aumento que eles desejavam. A fraude do Impedimento é tão evidente que o fundamento jurídico alegado pelos autores do golpe (as pedaladas fiscais) deixaram de ser consideradas irregulares pouco depois do golpe. E o usurpador passou a abusar do expediente sob aplausos da mesma imprensa que crucificou a presidenta petista.

“Um importante expediente utilizado pela ideologia para alcançar legitimidade é a universalização e ‘eternização’ de si mesma. Valores e interesses que são na verdade específicos de uma determinada época ou lugar, são projetados como valores e interesses de toda a humanidade. Supõe-se que, do contrário, a natureza interesseira e setorizada da ideologia revelar-se-ia embaraçosamente ampla demais, o que impediria sua aceitação geral.” (Ideologia, Terry Eagleton, editoras Boitempo e Unesp, São Paulo, 1997, página 60)

O anticomunismo forneceu a moldura para a sustentação do golpe de 1964. A ideologia da ditadura conseguiu ser eficaz por dois motivos: o contexto da guerra fria e a rápida recuperação econômica do Brasil no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 fortaleceram a impressão geral de que a “revolução” atendia os interesses de todos os brasileiros (exceto daqueles que não amavam o país e que, portanto, deveriam ir embora).

O antipetismo é, sem dúvida alguma, a principal arma discursiva utilizada por aqueles que justificam e defendem o golpe de 2016. Todavia, a ideologia do golpe de 2016 não conseguiu sobrepujar a memória recente dos sucessos econômicos e sociais do governo Lula/Dilma. Além disto, o governo Michel Temer aumentou o desemprego e provocou uma depressão econômica em razão do isolamento diplomático e econômico do país (fenômeno que os golpistas não foram capaz de prever, prevenir e combater com eficácia).

Toda ideologia é um sistema de interpretação e de reconstrução do mundo. Ela mascara a natureza perversa do regime político e/ou econômico para que tudo fique como está sem que as relações sociais injustas possam ser percebidas e/ou combatidas. Todavia, quando os fatos se divorciam totalmente das miragens ideológicas elas desmoronam e as mudanças sociais se tornam irresistíveis.

“… a tendência do conservantismo a tomar consciência de si mesmo tera permanecido latente e o ponto de vista conservador não teria ultrapassado o nível da conduta inconsciente. Mas o ataque ideológico de um grupo em ascensão social, o qual representa uma nova época, traz consigo, na realidade, a consciência das atitudes e das idéias que se afirmam unicamente na vida e na ação. Aguilhoada por teorias contrárias, a mentalidade conservadora descobre a sua idéia apenas ex-post-facto. Não é por causalidade que quando todos os grupos progressistas consideram a idéia como precedendo o ato, o conservador Hegel afirma que a idéia de uma realidade histórica só se torna visível posteriormente, quando o mundo já assumiu uma configuração eterna e fixa…” (Ideologia e Utopia – Introdução à sociologia do conhecimento, Karl Mannheim, editora Globo, Porto Alegre, 1956, página 214/215)

Se levarmos em conta esta lição de Karl Mannheim podemos dizer que o sucesso do golpe de 2016 não equivale (nem poderia equivaler) à destruição da ideologia petista. Muito pelo contrário, a única coisa que os golpistas fizeram foi tomar consciência do fracasso de sua própria ideologia em razão do fracasso prematuro do governo Michel Temer. Isto talvez explique a estratégia do PT de não ter se empenhado muito para destruir nas ruas a farsa do Impedimento de Dilma Rousseff. Os ideólogos do partido podem ter imaginado que seria melhor dar corda para Michel Temer se enforcar enforcando consigo toda e qualquer esperança de um duradouro renascimento das forças conservadoras. No processo até mesmo o Judiciário (um poder impermeável à soberania popular) acabou destruindo sua credibilidade.

O isolamento diplomático de Michel Temer e a deterioração econômica do Brasil, fatos que foram notados por veículos de comunicação conservadores (Folha, Estadão, etc…), expõe ainda mais a fragilidade da aventura de 2016. Apesar de atacado ferozmente, o PT não perdeu sua legitimidade dentro e, principalmente, fora do país. O partido de Lula se preparou melhor para absolver o impacto de um golpe de estado do que o PTB de João Goulart, mas os conservadores só puderam perceber isto ex-post-facto.

Resumindo, a ideologia destruída em 2016 não foi o petismo e sim o antipetismo e sua matriz profunda (o direito dos conservadores a dar um golpe de estado sempre que são afastados do poder pelo voto popular). Impossível dizer o que o PT fará com o novo capital político que está adquirindo à medida que o conservadorismo (e sua última praça forte, o Poder Judiciário) se desmancha no ar junto com o governo Temer.

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