Por Bernardo Camara, compartilhado de Projeto Colabora –
Aos 20 e poucos anos de idade, curitibanos deixam a cidade para cultivar árvores e alimentos reproduzindo o funcionamento de ecossistemas naturais e, hoje, levam produto diretamente ao consumidor
A rúcula amava a alface, que amava o repolho, que amava o inhame, que amava o pessegueiro, que amava o pinheiro, que amava toda a agrofloresta. “Aqui não tem competição entre as plantas”, garante o agricultor Felipe Kuhn. “Pelo contrário, todas elas colaboram entre si, em um grande organismo vivo.”
Com apenas 25 anos de idade, o curitibano fala com tanta desenvoltura e paixão sobre seu cultivo que parece ter as raízes fincadas no campo. Mas foi somente em 2017 que ele e a esposa, Isabelle Lecheta, de 27 anos, largaram faculdade e emprego na cidade para plantar floresta e alimentos no município de Tijucas do Sul, no Paraná.
Exaustos da rotina urbana, aos finais de semana os dois já se refugiavam na chácara que o pai de Felipe mantinha a 40 km da capital. Com o tempo, tomaram coragem e mudaram-se de vez para lá. Desde então, eles vêm transformando 10 hectares de pastagem degradada em uma paisagem altamente produtiva e biodiversa.
No sítio Eldorado, pelo menos 30 culturas de hortaliças, grãos e raízes crescem lado a lado com mais de 20 mil árvores frutíferas, araucárias e espécies cuja madeira tem alto valor comercial. Tudo isso sem uma gota de fertilizante, agrotóxico ou mesmo irrigação: ali, é o próprio sistema agroflorestal que se retroalimenta. Permanentemente.
“A gente nunca planta uma coisa só: é um consórcio, que respeita a necessidade de luz e o tempo de vida de cada cultura”, explica Felipe. Se a alface não aguenta o sol bruto, é a rúcula quem vai oferecer uma sombrinha. O inhame também se beneficia com a presença do brócolis. E assim segue a quadrilha. “É como se cada planta criasse uma espécie de placenta para a outra se desenvolver.”
Com tanta diversidade de espécies, há uma troca incessante de informações nutricionais, energéticas e hormonais debaixo da terra. Por cima dela, a poda regular das árvores e do capim plantado entre cada canteiro forma uma grossa camada de matéria orgânica. Mais alimento e proteção para o solo.
“Aqui não se perde nada”, conta o agricultor. “Contrariando a lógica da exploração, a gente retira comida produzindo constantemente recursos para o solo; é essa biologia pulsante que garante a conservação da água, a manutenção dos micronutrientes e um sistema imunológico forte que defende as plantas de pragas e patógenos.”
Ciência e saberes tradicionais
A técnica adotada pelo casal de curitibanos tem nome: agricultura sintrópica. O conceito foi trazido ao Brasil pelo pesquisador suíço Ernst Götsch. É um modo de cultivo que busca reproduzir o funcionamento dos ecossistemas naturais por meio da agrofloresta – a prática traz bases científicas aliadas ao conhecimento de diversos povos tradicionais do Brasil e do mundo.
“Em vez de encher a planta de adubo e insumos para obrigá-la a se desenvolver em um ambiente desequilibrado, a gente tenta dar condições para que ela cresça confortavelmente em um ecossistema harmônico”, ensina Kuhn. “É só olhar para o funcionamento das florestas: o que a gente faz aqui é uma imitação do que a natureza faz há milhões de anos.”
Felipe cursava Engenharia de Produção na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Mas não via sentido em nada do que aprendia nas aulas. Indignado com a degradação ambiental e com as injustiças sociais que via mundo afora, driblava as aulas e enfurnava-se na biblioteca para pesquisar formas de ganhar a vida longe da cidade. Foi assistindo a um vídeo de Ernst, na internet, que ele descobriu sua vocação. Na primeira vez em que ouviu as ideias do suíço, encantou-se imediatamente.
“Eu percebi que era possível viver no campo com bem-estar, com renda e exercendo uma função positiva no mundo”, conta Felipe. Ficou sabendo de um curso de três meses que o cientista daria no Rio de Janeiro: juntou dinheiro e foi beber na fonte da agricultura sintrópica. Ernst ficou tão impressionado com a dedicação do rapaz que o convidou para passar um tempo em sua propriedade no Sul da Bahia – uma agrofloresta de 400 hectares que fez rebrotar 14 nascentes d’água onde antes era terra arrasada.
“Quando voltou dessa experiência, o Felipe veio com tudo, abrindo áreas e trabalhando sem parar”, conta Isabelle, que estava no último mês de gravidez. “A Eloá nasceu praticamente junto com a nossa agrofloresta.”
Contra a corrente
A agricultura sintrópica, assim como as demais práticas agroecológicas, ainda é vista com desconfiança no ambiente institucional e político do país. “Professores e governos sustentam a narrativa de que só é possível produzir com veneno e insumos químicos; quando dizem isso, estão jogando no lixo uma agricultura de 10 mil anos”, diz a ex-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), a agrônoma Irene Maria Cardoso.
Foi o que Felipe sentiu no início de sua jornada rural, quando resolveu bater à porta do Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater). Ele queria saber como certificar seus produtos orgânicos. Contava animado sobre a agrofloresta que estava implementando e, sob certo desdém, foi chamado de jovem sonhador.
“A gente sabe que este é o sistema mais sustentável; ele não está fora do nosso campo de ação estratégica, mas temos limitações de mão de obra”, explica o coordenador estadual de agroecologia do Emater, Paulo Lizarelli. Para dar conta dos 399 municípios do Paraná, diz, o órgão conta com apenas 40 especialistas na área da agroecologia. “Destes, não mais que 15% realmente entendem de agrofloresta.”
Felipe não desanimou. Arrumou dinheiro emprestado da família e conseguiu bancar a certificação orgânica de sua produção – uma exigência de muitos mercados. “Tem que ter uma ideologia muito forte para seguir o caminho da agrofloresta: a pressão do sistema vai sempre te jogar para a produção convencional”, garante o agricultor. “Se eu chego no banco e digo que vou plantar 10 mil hectares de soja, eles oferecem tudo; mas se falo que quero plantar árvore na minha horta, dão risada.”
De sonhadores, Felipe e Isabelle tornaram-se referência no estado do Paraná. Se antes eles batiam à porta do Emater em busca de orientação, agora é o próprio Emater que visita o sítio Eldorado para aprender com a experiência do casal. Os técnicos chegaram acompanhados de profissionais do Centro Paranaense de Referência em Agroecologia (CPRA). E ficaram impressionados com o que viram.
“Eles têm um dos sistemas mais avançados que conhecemos: com apoio de apenas um funcionário e sem maquinários pesados, produzem a curto prazo hortaliças e tubérculos, no médio prazo frutas e no longo prazo castanhas e madeira”, diz o agroecólogo Juan Carlos Araújo, do CPRA, que acompanha a evolução da propriedade. “Tudo isso aumentando a fertilidade do solo e a biodiversidade local.”
O calo da comercialização
Alimento de qualidade nem sempre significa comércio fácil. Quando suas primeiras hortaliças começaram a brotar da terra, Felipe e Isabelle saíram visitando mercados da região para oferecer seus produtos. Contavam empolgados sobre a produção impecável que mantinham no sítio, mas ninguém dava muita bola.
Com o tempo, já com o selo de produção orgânica, conseguiram acessar o Mercado Municipal de Curitiba. Mas a sina dos compradores intermediários não lhes dava sossego: a colheita era iniciada à noite e entregavam tudo de madrugada para que nada murchasse durante o longo caminho até o consumidor final. Ganhavam uma mixaria. E nunca tinham certeza do que seria de fato vendido.
“Um dia pediam 100 brócolis, outro dia pediam apenas 10. Mas nós plantávamos pensando que eles iriam comprar 100 outra vez”, lembra Felipe. “É muito complicado lidar com atravessador. É sempre o agricultor quem sai perdendo. A gente fica refém deles.”
A etapa da comercialização é um dos grandes gargalos da agricultura familiar. Os produtores reclamam que falta infraestrutura, logística e organização para escoar a produção sem afetar sua rotina de trabalho, sem aumentar os custos e com a possibilidade de se planejar a longo prazo. Quase sempre, pequenos agricultores acabam na mão de atravessadores.
Uma iniciativa do CPRA vem conseguindo quebrar essa lógica. Trata-se do projeto Cestas solidárias. Por meio de palestras e campanhas em escolas, empresas, igrejas e associações de bairro, os técnicos do órgão identificam grupos interessados em alimentos orgânicos e fazem a ponte diretamente com produtores. “Se eu escolho o médico que cuida de mim, se eu confio no mecânico que conserta meu carro, por que eu não conheço o agricultor que me alimenta?”, provoca o agrônomo Ivo Melão, coordenador do projeto.
Felipe e Isabelle souberam do Cestas solidárias há cerca de um ano. Aderiram à iniciativa. E, desde então, abandonaram completamente as vendas para comerciantes intermediários. Hoje, colhem toda semana mais de 700 itens da agrofloresta para alimentar cerca de 90 famílias que vivem em Curitiba. As entregas – numa escola e numa empresa – são feitas pela própria Isabelle, que sempre leva junto a filha Eloá, de 3 anos.
“Não é só uma questão de trazer alimentos saudáveis para casa. Ter o contato direto com o agricultor e acompanhar a Isabelle com sua filhinha faz brilhar nossos olhos”, elogia a cliente Camila Niverth, que toda quinta-feira busca sua sacola de alimentos agroecológicos na escola onde os filhos estudam. “A gente nunca teria algo parecido em um supermercado.”
No projeto, os consumidores comprometem-se a pagar antecipadamente um plano mensal: a garantia da renda é fundamental para que os agricultores possam planejar com mais eficácia seu cultivo. “O Cestas solidárias é um exemplo de política pública que deu certo”, afirma Isabelle. “A gente entrega os produtos ao consumidor final e já sabe exatamente o valor que tem para reinvestir na produção.”
Dois extremos no Paraná
Segundo Irene, os consumidores têm um papel importantíssimo para influenciar políticas públicas como essa, que impulsionam a agricultura familiar agroecológica. “Sempre me perguntam: a agroecologia tem capacidade de alimentar o mundo? Claro que sim”, afirma. “Mas é claro, também, que isso depende de condições políticas; é uma luta contra grandes interesses econômicos, então precisamos de um movimento forte na sociedade dizendo qual o caminho desejado.”
No Paraná, a queda de braço segue em disputa. Enquanto lidera as taxas de intoxicação por agrotóxicos no Brasil, o estado também é o primeiro lugar no número de agricultores com produção orgânica certificada, representando 17% do país. Só em Curitiba, as feiras com produtos exclusivamente orgânicos saltaram de 1 para 20 nas últimas duas décadas.
Produção, portanto, não falta. “O consumidor tem que deixar de ser passivo e parar de aceitar qualquer coisa que é oferecida como comida nos supermercados”, provoca Irene. “Ache o caminho da roça! Descubra onde e como esses alimentos são produzidos. A agricultura agroecológica é revolucionária, pois rompe com um sistema que está acabando com nossas terras e com a nossa saúde.”
Felipe e Isabelle já entenderam isso há algum tempo. Desde que trocaram a cidade pelo campo, a qualidade de vida do casal deu um salto inestimável. “Aqui, a gente tem certeza que fome não vai passar”, diz Isabelle. Segundo ela, esse pedaço de terra ainda há de alimentar muitas gerações.
“Quando entra na engrenagem da natureza, você vive numa abundância de comida, de satisfação e de tranquilidade que é maravilhosa”, comenta Felipe. “Só que a humanidade está girando essa engrenagem para o lado contrário, e uma hora isso vai arrebentar.”