Impeachment é pauta-bomba para a democracia

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Por Marcelo Semer, Justificando – 

Tentando defender-se da acusação de golpismo por pregar abertamente o impeachment, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que “Quem sofre com a crise quer se livrar dela”.

Tirando de vencido o efeito ilusionista de sugerir que o impeachment pode eliminar a crise econômica, no esteio daquilo que se tem denominado de estelionato eleitoral, o que a frase revela é a fundamentação com a qual se pretende agora expungir a presidenta do cargo: uma certa insatisfação generalizada.




Aqui mesmo neste espaço, já escrevi a respeito da aparência jurídica que a tradição brasileira sempre buscou dar a seus golpes de Estado, na estreita e intrincada combinação entre fardas e becas. A sedução dos casuísmos parece mesmo não ter terminado, não obstante a promessa de estabilidade institucional que o retorno ao Estado de Direito, depois de duas décadas de ditadura, poderia nos sugerir.

Não é preciso muito para concluir que o impeachment não tem nada de jurídico e, aplicado por motivos essencialmente políticos, sobretudo partidários, representa uma ruptura institucional de grande e duradouro impacto. Só o fato de se discutir a pena antes de conhecer-se o crime já é prova inequívoca da ilegitimidade do processo. Afinal, o brado pela deposição da presidenta é anterior à sua posse.

Nada comparável, por exemplo, ao impedimento de Fernando Collor, que culminou de uma investigação criminal em que ele, pessoalmente, acabou envolvido por bens que ilicitamente integraram seu patrimônio. Impeachment foi o resultado de um processo, não o seu detonador.

Mas o perigo desta pena à procura de um crime não se esgota na espoliação da vontade das urnas, o que por si só já seria indigno. Na verdade, é bem possível que os eleitores de Dilma estejam hoje tão ou mais enfurecidos com o começo de seu governo do que aqueles que não a sufragaram, especialmente pela adoção de medidas ortodoxas de arrocho que mais se espelham na política de seu principal adversário.

A questão, todavia, ainda é mais profunda.

A instituição do casuísmo, o impeachment resultante da perda de maioria parlamentar, não é simplesmente uma adequação à brasileira do voto de desconfiança, como sugeriu o articulista Helio Schwarstman na Folha de S. Paulo, no dia que se seguiu ao ultimato que seu jornal deu à presidenta. É a consagração da condição de refém de todos os presidentes que se seguirão.

Se é possível desalojar o presidente por acusações genéricas, incensadas pela crise ou pela perda da maioria, o preço do apoio torna-se ainda mais valioso –e, por consequência, o da corrupção que dele se seguirá.

A Câmara dos Deputados na gestão Eduardo Cunha tem demonstrado o quanto de constrangimento é capaz de impor ao Executivo, por motivos nem sempre confessáveis. Do casuísmo da PEC da Bengala à criação irresponsável de despesas. Difícil crer que o poder ilimitado nas mãos de um parlamento sem compromissos com a administração teria condições de resolver qualquer crise, se não o de aguçá-la.

A disputa esganiçada por nacos de poder historicamente tem marcado as exigências dos partidos aliados ao Executivo, muito mais do que a proximidade de qualquer ideologia, quando não o mero interesse no repasse de emendas, que se revestem de instrumentos para perpetuação das próprias reeleições.

Com a fragmentação partidária resultante da reforma política que jamais se realiza, o personalismo eleitoral e a contínua vassalagem de representantes a interesses econômicos, o custo do governo tende a ser cada vez maior.

A sujeição da pauta salvacionista ao presidente da Câmara, acusado ele mesmo no STF, com depoimentos que apontam uso do cargo para intimidação de testemunhas, demonstra que medidas contra a corrupção é o que menos se busca neste caminho. Basta ver o quanto a oposição, e principalmente o próprio presidente da Câmara, pelejaram contra o fim da promíscua doação empresarial para campanhas eleitorais, ora definida no STF (vencida a incontinência partidária de Gilmar Mendes).

Mas porque a adesão ao projeto impeachment funciona como um eficaz alvejante de reputações, inclusive na mídia, a liderança de Eduardo Cunha não chegou a ser contestada, muito menos sua companhia refutada. O poder de articulação parlamentar se coloca como principal atributo na novíssima ‘república’ que se pretende construir.

Enfim, se em 2013 milhares de pessoas saíram às ruas, de forma espontânea ainda que desorganizada, em inequívoca mostra da fragilidade da representação partidária, 2015 corre o risco de acabar fazendo com que a vontade das urnas seja sepultada pelo resultado desses arranjos e conveniências partidárias que tanto se demonizou. No direito, chamaríamos isso de “reformatio in pejus” –quando o recurso piora a situação de quem se insurgiu contra a decisão anterior.

O impeachment não é apenas golpe. É uma pauta-bomba para a democracia.

Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

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