Por Rafael Moro Martins e Leandro Demori, compartilhado de The Intercept Brasil –
Forças Armadas tentam saída à francesa da festa de terror que ajudaram a criar. Digitais dos quartéis estão nos mais de 317 mil mortos da pandemia.
“O ALTO COMANDO DAS FORÇAS ARMADAS manda um recado a Bolsonaro: não cederá ao golpismo e nem irá politizar os quartéis”, avisa a imprensa brasileira num uníssono narrativo que não se ouvia desde os áureos tempos da operação Lava Jato.
Ligue a TV, o rádio, abra seu portal de notícias preferido: você terá a mesma análise de como os generais brasileiros são “gente ponderada”, “alinhada ao que manda a Constituição” e decididamente “refratários à politização das forças que comandam”.
Algo próximo de 100% dos analistas remetem suas falas a vozes sem rosto que nos garantem anonimamente: “ufa, ainda bem que temos os militares para conter as loucuras de Bolsonaro”. Leia aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui. Todas variações enfadonhas do mesmo tema.
Que loucura extrema é essa que Bolsonaro queria fazer e que nossos valerosos militares impediram? Ninguém sabe. Mas o tom laudatório foi recebido com festa pelos militares que desejam ver esta versão, e somente esta, tatuada na opinião pública. Eles conseguiram vender integralmente (em off, claro) a imagem que gostariam que a imprensa levasse ao público. O problema é que essa versão não sobrevive à realidade.
O que, afinal, mudou na relação entre militares e Bolsonaro que tenha provocado tamanha ânsia de legalismo do dia para a noite? Bolsonaro queria uns tuítes a mais? Uma declaração aqui e ali? Esse é o grande salto no abismo que nossos generais se negam a dar? Nem mesmo os 317 mil brasileiros mortos pela covid-19, em boa parte graças a uma negligência dolosa, causaram tamanha repulsa dos militares ao capitão da reserva.
Pelo contrário: até a semana passada, eles, os militares, seguiam no comando da gestão assassina da pandemia, com o general de três estrelas da ativa Eduardo Pazuello no comando do Ministério da Saúde. A debandada tem mais cara de saída à francesa de quem não gostou da festa de terror que ajudou a criar.
Um governo essencialmente militar
Não é possível analisar Bolsonaro sem lembrar do pecado original: este é um governo essencialmente militar. Nenhum partido tem tantos ministérios, estatais, agências reguladoras e secretarias quanto o Partido Militar, que existe na prática mesmo que não tenha registro eleitoral. Se é fato que Bolsonaro se provou um candidato viável para o eleitorado, também é fato que seu governo é uma construção de militares.
A ideia de que os comandantes entregaram seus cargos porque não querem politizar os quartéis é a saída perfeita para os generais que mancharam a reputação do Exército com a gestão sangrenta da pandemia. O problema é que ela é falsa. As Forças Armadas estão politizadas há anos, com um marco temporal evidente nos tuítes do general Villas Bôas ameaçando o STF, lidos e chancelados em segredo antes de serem publicados por boa parte dos militares que, hoje, são o governo. Inclusive pelo agora ex-comandante do Exército, Edson Leal Pujol, que nas últimas 24 horas foi levado ao altar por boa parte da imprensa como o democrata sensato que não quer politizar as armas.
Ora, mas foi Pujol quem autorizou que generais da ativa ocupassem os principais cargos políticos do governo, algo inédito desde a redemocratização. Para ficar somente nos generais de três e quatro estrelas, que são a elite da tropa: Otávio Rêgo Barros (ex-porta-voz da Presidência), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo e agora Casa Civil), Walter Braga Netto (Casa Civil e agora Defesa) e Eduardo Pazuello (ex-Saúde).
Até a segunda, 29 de março, ministro da Defesa, o general da reserva Fernando Azevedo e Silva assinou, nos dois últimos anos, a Ordem do Dia na data em que os militares relembram o golpe que deram em 1964. No texto, além de não chamar o golpe de golpe, Azevedo fez questão de dizer que os tanques nas ruas, o fechamento de jornais, a tortura e o assassinato de brasileiros foram um “marco para a democracia”. No ano passado, ele sobrevoou, com Bolsonaro, uma manifestação em frente ao STF que pedia intervenção militar – eufemismo para golpe de estado.
Seu substituto na pasta, Braga Netto, assumiu editando mais uma Ordem do Dia sobre o golpe de 1964. Segundo o documento dele, os desdobramentos do que ele chama eufemisticamente de “movimento” e que desembocaram numa ditadura que durou 21 anos devem ser “celebrados”. Braga Netto chegou ao governo como general da ativa. Seu antecessor era da reserva. Onde está a ponderação na atitude de ambos a respeito de 1964? É quartel politizado com o que há de pior.
Em outubro de 2017, um ano antes das eleições, uma reportagem do El País já mostrava que Bolsonaro circulava pelos quartéis em campanha aberta pela Presidência. O candidato que “discursava falando em ‘levar o Brasil para a direita’ no ano seguinte” estava ali, em frente às tropas, em um palanque, ao lado do alto oficialato. Como fica patente pela resposta que o Exército enviou ao repórter Gil Alessi: “Com relação à propaganda política feita pelo [então] deputado [Bolsonaro] no evento, o Exército afirmou que ‘não cabe à Instituição julgar atitudes ou manifestações políticas de parlamentares’”.
É vedado por lei fazer manifestação política em prédios públicos. No caso de instalações militares, ainda há códigos das Forças Armadas que punem a prática. Mas, para Bolsonaro, o comando abriu exceção. Isto é: o “mau militar” (assim o ditador Ernesto Geisel se referiu a Bolsonaro) que escapou de ser expulso da corporação por atos de indisciplina e terrorismo e que, no início da carreira política, precisava driblar os comandantes de unidades militares para entregar seus santinhos de candidato a vereador no Rio, passou a ser recebido com tapete vermelho.
No livro “Os militares e a crise brasileira”, o coronel da reserva Marcelo Pimentel escreve: “Brasília, meados de 2020. Entre os 17 generais-de-exército da 304ª [Reunião do Alto Comando do Exército] RACE em 2016, todos hoje na reserva, há um vice-presidente, quatro ministros de estado, um ministro do Superior Tribunal Militar, um embaixador, três presidentes de empresas estatais, um presidente de fundo de pensão estatal, um secretário de segurança pública, três secretários-executivos ou similares e somente dois que não exercem funções de características políticas”. Não há como pensar num Exército mais politizado do que isso.
Aos olhos do público, os militares abandonam Bolsonaro e passam a se vender como a voz da moderação. Falta combinar com os fatos.O antropólogo Piero Leirner, que há 30 anos estuda a caserna e seus habitantes, mapeou o caminho que levou a essa politização. “2012 foi o ano em que se resolveu ‘riscar o fósforo’. Em fevereiro, o Clube Militar lançou um manifesto contra a CNV [Comissão Nacional da Verdade]. Houve uma interferência da Presidência da República para que o manifesto fosse retirado da internet e das paredes de todas as unidades de clubes militares do Brasil. Os clubes são uma entidade que depende das forças, mas são da reserva, portanto, tecnicamente autônomas e civis. Isso provocou uma reação em cadeia. Um segundo manifesto foi feito em favor do primeiro, e hospedado na página da internet dedicada ao Coronel Ustra, ‘A Verdade Sufocada’. Foi assinado massivamente. Fiz a contagem em março de 2018: só de generais foram 130; coronéis, 868. Isso é muito”.
Daí em diante, só piorou. “Em 2014 setores do Estado estavam atacando Dilma sem parar, incluindo-se aí oficiais da ativa que, depois de 25 anos mantendo-se em silêncio extramuros, passaram a abertamente criticar o Governo – entre eles o [hoje vice-presidente] general Mourão, que ainda em 2014 começa a dar palestras falando do PT e do Foro de São Paulo”, conta Leirner em seu livro “O Brasil no espectro de uma guerra híbrida”.
Seis mil militares em cargos políticos
Com a queda de Dilma e a assunção de Michel Temer, os generais voltaram ao Palácio do Planalto. Temer recriou o Gabinete de Segurança Institucional e o entregou a Sergio Etchegoyen, amigo de infância de Villas Bôas. A essa altura, o Alto Comando havia decidido ser a hora de os fardados – que desde sempre se consideram mais aptos que nós, os “paisanos”, a comandar o país – voltarem a dar as ordens.
Todos os olhos se voltaram, então, a Bolsonaro. O mau militar havia granjeado simpatia entre os fardados por suas críticas à Comissão Nacional da Verdade. Generais da reserva (Augusto Heleno, Carlos Alberto dos Santos Cruz) assumiram postos-chave na campanha. O general que ameaçava um golpe (Mourão) foi escolhido como candidato a vice. E a cantilena política seguiu nos quartéis.
Com Bolsonaro eleito, os militares aparelharam o estado e mergulharam numa zona confortável, deixando as críticas na conta do presidente enquanto tomavam a máquina por dentro e em silêncio. Segundo o Tribunal de Contas da União, em junho de 2020 havia mais de 6 mil oficiais em cargos de nomeação política. Mais que o dobro do que havia no governo Temer, já bastante generoso com os fardados.
Outro levantamento, mais recente, apontou 342 militares em “cargos comissionados nas maiores faixas de remuneração da máquina federal, em postos de coordenação, diretoria, secretaria ou de ministro”. Eles também comandam quase um terço das estatais controladas pelo governo federal.
Cada vez que Bolsonaro demite um militar, ouve-se na imprensa as vozes que falam no avanço da ala ideológica sobre a serenidade e o pragmatismo dos militares. Foi assim logo nos primeiros meses, com a saída de Santos Cruz. Foi assim ontem, 29 de março, com Fernando de Azevedo e Silva, agora ex-ministro da Defesa. Foi assim hoje, com a demissão conjunta dos comandantes do Exército, da Aeronáutica e da Marinha.
Faria sentido, não fosse o fato de que, a cada crise em seu governo, Bolsonaro se cerca de cada vez mais militares. Problema com o liberal da Petrobras? Traz um general (Silva e Luna) para resolver. A coordenação política vai mal? Um general (Ramos) acerta as coisas com o Centrão. Nenhum médico está disposto a bancar a cloroquina? Chama o general especializado em logística (Pazuello) que ele faz o serviço.
Haverá um recuo estratégico até o ponto de parecer que os militares não têm mais nada a ver com o desastre do governo Bolsonaro e sua pilha de mortos pela covid-19. Os generais tentam se descolar da tragédia genocida que é a gestão da pandemia, tocada por eles próprios através de Eduardo Pazuello. Mas esse descolamento é calculado, só o suficiente para passarem a imagem de moderados. Largarão as milhares de boquinhas remuneradas e os centros de poder? É claro que não. E, a julgar pela cobertura da imprensa, nem será preciso. A operação de marketing foi um sucesso.
Aos olhos do público, os militares abandonam Bolsonaro, que queria “entrar numa aventura” (deixam subentendido um desejo de golpe militar, sem nunca mencioná-lo com todas as letras). E passam a se vender como a voz da moderação, disposta a uma costura com o “centro” para oferecer uma “terceira via” em 2022, a alternativa aos “extremos equivalentes” representados por Bolsonaro e Lula.
Para este papel já está escalado, há algum tempo, Santos Cruz, o general com mais prestígio público entre os reservistas que serviram a Bolsonaro. Enquanto isso, os militares seguem no governo – inclusive com oficiais da ativa, autorizados a exercer cargos políticos pelo “ponderado” Pujol. E cozinham por fora uma possível chapa com Sergio Moro.
É claro que os militares podem estar insatisfeitos com Bolsonaro, seu estilo fascista demais, sua boca aberta demais, sua incompetência escancarada demais. Mas não o suficiente para deixarem o governo, muito menos para deixarem a política. O trem do Partido Militar vai seguir fumegando. E, como em 1964, sob os vivas da imprensa.
Correção: 30 de março, 20h55.
Uma versão anterior deste texto dizia que o ex-ministro da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva, era general da ativa quando assumiu o cargo. Na verdade, ele já havia passado para a reserva. O texto foi corrigido.