Fazia sol no começo da tarde de sexta-feira, 2 de setembro, na Quinta da Boa Vista e funcionários abriam à visitação os jardins e a fachada do Palácio de São Cristóvão, onde 200 anos atrás, a futura imperatriz Leopoldina e o ministro José Bonifácio comandaram a reunião do Conselho de Estado que decidiu pela separação definitiva entre Brasil e Portugal – ali, a princesa, nomeada regente pelo marido em viagem, assinou o Decreto de Independência, separando os dois países. Na mesma noite, mensageiros foram despachados levando as cartas de Leopoldina e Bonifácio, relatando o ultimato das Cortes Portuguesas para que Dom Pedro voltasse a Lisboa e para que o Brasil fosse submetido às vontades de Portugal, que chegaram às mãos do futuro imperador às margens do Ipiranga, no dia 7 de setembro de 1822.
Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Jardins e fachada do Palácio de São Cristóvão, onde foi assinado o Decreto de Independência do Brasil em 1822, abertos à visitação: esperança de superação de um período de trevas (Foto: Oscar Valporto)
A restauração da fachada e do jardim – inaugurada para marcar os 200 anos da Independência – é uma mínima reparação pelas violências que a data de inauguração do Brasil vem sofrendo desde 2018, quando, exatamente na noite do dia 2 de setembro, um incêndio destruiu o Museu Nacional, abrigado no Palácio de São Cristóvão desde 1892. O fogo destruiu 80% do acervo: mais de 200 anos de coleções de arqueologia, geologia, botânica, paleontologia e zoologia se perderam. Um novo Museu Nacional está sendo organizado, com novas coleções e o que sobrou do antigo acervo – financiado, em grande parte, por recursos privados. Se tudo correr bem, o museu deve voltar, a partir de 2027, a ocupar o Palácio de São Cristóvão: os alicerces da antiga construção resistiram ao fogo.
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Erguido em 1803 por um traficante de escravos, o Paço de São Cristóvão, como era inicialmente chamado, foi doado, junto com a Quinta da Boa Vista, a Dom João VI, após a corte portuguesa desembarcar no Rio de Janeiro: Dom Pedro passou ali a adolescência; ali, ele e a mulher tiveram seus filhos; a imperatriz Leopoldina morreu no já então Palácio Imperial em 1826. Pedro II nasceu e morou lá a vida inteira até ser destituído em 1889: o imperador patrocinou a grande reforma – sob o comando do arquiteto francês Auguste Glaziou, responsável também pelo tratamento paisagístico do Passeio Público e do Campo de Santana – que deu à Quinta da Boa Vista a face que tem hoje.
Na sexta, exatos 200 anos depois do decreto da Independência, o parque passa por obras promovidas pela Prefeitura do Rio. A Quinta da Boa Vista está precisando: os jardins estão com grama rala, a água dos lagos está suja, o aspecto ainda é de abandono. Nada que impeça os cariocas de aproveitarem: há crianças soltando pipa; grupos de jovens passeando, famílias fazendo piquenique no parque de 155 mil metros quadrados. Nos jardins do Palácio de São Cristóvão, onde sobreviveu a estátua da imperatriz Leopoldina com os filhos Maria Izabel e Pedro, o Museu Nacional exibe as esculturas que estavam no alto do prédio e resistiram à tragédia do fogo.
O Bicentenário da Independência vem sendo vítima de maus tratos pelo governo que promove patriotadas, mas é pouco patriótico. A pandemia colocou em segundo plano as poucas ações para festejar a inauguração do Brasil – que já eram modestas se comparadas aos do Centenário. Em 1922, 40 chefes de estado vieram ao Brasil para os festejos que tomaram enorme área do Centro do Rio, aproveitando o criminoso desmonte do histórico Morro do Castelo. Custou caro, mas quatro edificações atravessaram o século: o Museu Histórico Nacional e o Petit Trianon, sede da Academia Brasileira de Letras, por exemplo, foram erguidos como pavilhões da Exposição do Centenário.
Para esculhambar de vez as comemorações da Independência, o inquilino do Planalto, no ano passado, promoveu manifestações de caráter fascista, com faixas pedindo o fechamento do Congresso e do STF, ofendeu ministros do Supremo, ameaçou a democracia. No bicentenário, promete repetir a dose: já tentou promover uma parada militar na Praia de Copacabana, queria botar tratores e caminhões ao lado dos tanques no Eixo Monumental de Brasília; devemos esperar bravatas, mentiras e ódio no seu discurso de 7 de Setembro. Jair Bolsonaro diz amar o Brasil, mas detesta brasileiros e, principalmente, brasileiras.
Sob Bolsonaro, celebrações e símbolos nacionais foram sequestrados pelos seguidores do presidente – gente demofóbica, racista, sexista e preconceituosa. A história escrita pelos homens enalteceu, por muito tempo, o grito de Pedro e a sabedoria de Bonifácio – o “patriarca da Independência” – mas ignorou o papel decisivo da imperatriz Leopoldina. O atual governo é composto de gente que nada aprendeu sobre a trajetória do Brasil antes e depois da Independência e repete conceitos rasos e tolices históricas.
Mas faz sol no Rio de Janeiro e o céu azul do fim do inverno traz a esperança que o Brasil conseguirá superar esse tempo de trevas: vai raiar a liberdade e também a fraternidade e a igualdade. Independência e vida. Teremos de volta o Museu Nacional como símbolo da força da ciência e o Palácio de São Cristóvão como patrimônio histórico. E, quem sabe, poderemos celebrar – em paz e reconciliados com a história – os 200 anos da Independência no dia 2 de Julho de 2023, quando os baianos fazem sua festa cívica, com suas heroicas Maria Quitéria e Joana Angélica, para comemorar a expulsão das forças de Portugal.