Indicado a 3 Oscars, obra-prima na Netflix é considerada o filme mais surpreendente dos irmãos Coen

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A obsessão de Ethan e Joel Coen pelo lado tétrico do homem, aliada às histórias que se levantam de baixo da terra do coração dos Estados Unidos, brota com vigor espantoso em “A Balada de Buster Scruggs”, antologia de seis contos sobre a América profunda, num tempo em que a luta pela sobrevivência apagava quaisquer laivos de preocupação com delicadezas supérfluas a exemplo de inclusão social, justiça, respeito às diferenças, civilidade.

POR GIANCARLO GALDINO, compartilhado da Revista Bula




Essa decerto é a mais poética das narrativas dos irmãos Coen que tomam o faroeste por palco, e uma das mais notáveis alusões à gênese americana, chegada a sangue, de caçadas, de homens brancos que compram e vendem almas — inclusive a própria — a preço de custo, de índios depauperados e coléricos, de gente sem mais perspectivas que ludibriam-se gostosamente por delirantes quimeras de fortuna, mas o que encontram é ainda mais sofrimento, traição, dores da alma e do corpo, violência, morte. Os seis contos orbitam, em maior ou menor intensidade, em volta desse núcleo, mas há um em especial que beira a perfeição.

Uma mão nodosa abre o livro de capa verde de onde saem as histórias contadas e cantadas pelo personagem a que o título se refere. Buster Scruggs, um homem de branco até o chapéu, em cima de um cavalo também branco e tocando um violão negro, desliza pelos vales anônimos de uma paisagem congelada numa época indeterminada fazendo sua voz gutural de acentuado sotaque caipira reverberar por paredões de rocha que lembram os tróis da mitologia escandinava. Esses companheiros involuntários e carrancudos, porém espirituosos, ouvem a melodia do cavaleiro solitário espalhar-se pelo ar da manhã; ele e Dan, o amigo de quatro patas que serve-lhe de montaria, vem de uma cavalgada de doze horas desde Medicine Hat, vilarejo canadense de muitos salões e nenhuma igreja, muitos homens perversos e nenhum xerife. Aspirando a secura do chão e expelindo a aridez da vida, Scruggs é um dos célebres procurados vivos ou mortos dos cartazes pregados nos balcões dos armazéns e nas cercas das estrebarias, e ele reconhece seus deslizes infralegais, observando-se a condição de que o deixem de tachar misantropo. O Sabiá de San Saba, como gosta de ser chamado, com efeito não é exatamente um sujeito cujo carisma faz-se notar, mas tem seus encantos. Tim Blake Nelson encarna um tipo misterioso, sem relação alguma com os demais malandros junto dos quais se inebria de uísque barato, sem contudo segui-los nos péssimos modos à mesa, para ele razão de escândalo. Depois de ter metido uma bala no crânio do engraçadinho que o cansava com suas pilhérias, Scruggs assume de vez seu lado marginal, vagando pelos confins do mundo enquanto tira de seus poemas musicais um fio de alento. O texto dos diretores investe nessa coda farsesca do homem sem rumo à cata dos pedaços que largara pela vida afora, fixa em paródias muito bem sacadas e recriações dos tipos lendários do cinema americano. E isso dá azo a um maravilhoso problema. 

Como já se disse, o filme se constitui de meia dúzia de tramas independentes. Todavia, a que resume com fidedignidade, pujança artística e uma generosa medida de lirismo o espírito do anti-herói de Nelson e a aura do próprio filme é mesmo “Cânion de Ouro”, sobre um velho garimpeiro que doma sua solidão multímoda repetindo uma cantiga em que fala a uma certa Mamãe Machree. Tal como o Sabiá de San Saba, o velho está muito confortável em sua misantropia, precisando apenas encontrar o ouro que persegue sabe Deus há quanto tempo, que talvez passe só para ele. As locações escolhidas pelos Coen dão ao personagem a decrepitude tanto mais ofensiva com que Tom Waits sabe lidar como poucos. O velho vai machucando o solo com covas de onde apanha a massa argilosa que peneira no riacho; encontra uma e outra pepita, mas julga, acertadamente, que conforme vá subindo, poderá encher a bateia. Quando percebe que já pode sentir o cheiro do ouro, se lança à empreitada de revirar os intestinos do terreno até que surja um buraco muitas vezes maior que ele, e lá, a legitimação de uma existência de feiuras e misérias, que anula o inferno que fora seu destino até ali. O cenário paradisíaco, ainda mais estonteante na fotografia de Bruno Delbonnel, cede lugar a um ambiente claustrofóbico, e ninguém é capaz de se queixar. Nessa mesma sequência duas reviravoltas maltratam o público com sua dureza, ora arrastada, ora frenética, e isso é o bastante para que este fragmento possa ser considerado, sem nenhum favor, um dos momentos mais soberbos do cinema, com direito a uma grande ironia: Waits, apesar de tão cheio das saborosas excentricidades dos Coen, nunca trabalhara com eles até então. 

O argumento está longe de ser original. Em 1952, o consórcio formado por Henry Hathaway (1898-1985), Henry King (1886-1982), Henry Koster (1905-1988), Howard Hawks (1896-1977) e Jean Negulesco (1900-1993) dera à luz “Páginas da Vida”, compilação de cinco histórias curtas de O. Henry (1862-1910), narradas por John Steinbeck (1902-1968), sobre miséria numa metrópole gélida; amizades que não resistem ao inexorável passar do tempo e o que ele faz da vida de cada um; bandidos espertalhões vencidos por um diabrete aparentemente inofensivo; doença, restabelecimento da saúde e morte; e o verdadeiro amor, capaz de superar tudo, até um Natal sem presentes caros. Assim mesmo, “A Balada de Buster Scruggs”, com boas atuações de Harry Melling e Zoe Kazan em lances atrás e à frente da trama protagonizada por um velho e sua teima, é das empreitadas autorais de maior beleza que Hollywood já produziu. E que nunca se esqueça a parte de Tom Waits nisso.

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