Indícios e evidências apontam  interferência política nos números divulgados pela Prefeitura do Rio de Janeiro para o COVD-19

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Baseado em números nebulosos sobre o Covid-19, o prefeito Crivella quer reabrir o comércio e escolas no Rio de Janeiro. Aqui, a professora Lucia Capanema apresenta a inconsistência dos dados municipais em estudo solicitado pelo Observatório Carioca da Pandemia.

Ao lermos este estudo, fica a dúvida sobre quais são os motivos do prefeito Crivella, sabendo-se que as inconsistências começaram a surgir depois do seu encontro com o presidente Bolsonaro em Brasília, como leremos abaixo.




O certo é que milhares de cariocas estão morrendo e se o comércio e as escolas forem reabertos a tendência é de que os números, escamoteados ou não, aumentarão superlativamente.

 

Abaixo, o texto do estudo realizado pela professora  Lucia Capanema Alvares, PhD em Planejamento Regional, professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense.

 

Por Lúcia Capanema – 

Em 21 de maio de 2020, o prefeito Crivella foi a Brasília para uma conversa com Bolsonaro. Já na saída do encontro, declara que o Rio de Janeiro deveria começar a abertura nos próximos dias. No dia seguinte, uma sexta-feira, o Instituto Pereira Passos (IPP) suspendeu a divulgação diária das planilhas de dados para anunciar, na terça-feira seguinte, 26/05, a adoção de novo método de contagem de óbitos, baseado em enterros em que a COVID-19 foi causa mortis declarada.

Outra mudança relevante no dia 26 não obteve a mesma atenção: a nomeação do Coronel Amêndola para a presidência do Instituto. Já no dia seguinte, o IPP declararia voltar atrás e recomeçar a divulgação dos dados como anteriormente, depois de manter um ‘apagão’ de dados por três dias.

Como se verá adiante, uma série de inconsistências nos dados, como registros repetidos, desaparecimento de casos e mudanças na data do primeiro caso – o que altera a construção das semanas epidemiológicas – vem se juntar a dúvidas quanto ao método e cronologia adotados na atualização de dados pelo IPP. Dúvidas essas nunca esclarecidas.

Adotando-se o conceito de semana epidemiológica (sempre de domingo a sábado) para melhor analisar o comportamento da pandemia e tomando o primeiro dia de notificação de casos (23/02) no Rio de Janeiro, tínhamos até dia 22/05 treze semanas epidemiológicas, sempre em curva ascendente. A primeira semana epidemiológica após as mudanças no IPP revela, pela primeira vez, uma redução nos casos de COVID-19, fato que começa a se repetir daí em diante e passa a justificar o plano de reabertura do governo Crivella.

Uma rápida análise dos dados das semanas seguintes, porém, aponta que boa parte dos dados inseridos nessas semanas foi atribuída a semanas anteriores. Entre os dias 23 e 30 de maio foram acrescentados 8.319 casos, sendo 3.407 atribuídos à semana em tela e 4.912 casos adicionados a semanas anteriores. Entre estes, há um caso notificado em 11/03, configurando um atraso na inserção do dado de 81 dias, e outros quatro, notificados em 13/03 (inseridos com 79 dias de atraso), absolutamente idênticos: quatro homens entre 70 e 79 anos, moradores do bairro Bancários, com primeiros sintomas na véspera, que teriam vindo a óbito, conforme mostra a foto da planilha (Figura 1). Este caso específico aparecia somente uma vez em 22/05 e voltou a aparecer somente uma vez em 08/06.

Figura 1 – quatro casos idênticos notificados no mesmo dia e inseridos entre 22 e 30/05

Fonte: Painel Rio COVID-19 (https://www.rio.rj.gov.br/web/transparencia/coronavirus)

Outras inconsistências adicionam evidências da manipulação de dados pregressos, dificultando o monitoramento da pandemia na cidade. Os dados divulgados em 22/05 apresentavam como primeiro caso no Rio de Janeiro um homem entre 20 e 29 anos, com endereço desconhecido, que teve os primeiros sintomas em 19/02 e notificação em 23/02 e se recuperou; como segundo caso, uma mulher entre 80 e 89 anos, moradora da Tijuca, com notificação em 04/03 e primeiros sintomas em 20/03 (!) que se recuperou. Já em 08/06 o primeiro caso seria de um homem entre 80 e 89 anos, morador de Vila Valqueire, com notificação em 21/02 e primeiros sintomas em 20/02 e recuperado; o segundo caso, seria de uma mulher entre 80 e 89 anos, moradora no Flamengo, com notificação em 04/03 e primeiros sintomas em 20/03 (!) que se recuperou (aparentemente o mesmo caso, com mudança de domicílio).

Em 06/07, desaparecem todos esses casos, sejam três ou quatro, e o primeiro caso passa a ser de um homem entre 40 e 49 anos, morador de Santa Teresa com notificação em 11/03 e primeiros sintomas em 10/03, e que se recuperou, caso este que não existia nas planilhas de 22/05 ou de 08/06.

Voltando à atribuição de casos a semanas pregressas – fato que por si só é plausível devido à demora da chegada de notificações à central de informações, mas que suscita questionamento quanto aos prazos muito alargados para tal tramitação – tem-se que em 22/05 havia 20.142 casos; em 08/06 havia 36.871 casos. A diferença, de 16.729 casos, foi atribuída em 40%, ou 6.664 casos ao período anterior a 22/05, majorando os números totais até aquela data em 33,1% e o restante (60% ou 10.065) ao período em tela, de 22/05 a 08/06.

Também os casos totais anotados em 08/06 até aquela data (36.871) foram posteriormente majorados em 15,8% ou 5.811 casos, apresentando em 06/07 um total de casos até 08/06 de 42.682.

Ou seja, do total de casos em 06/07 que era de 60.568, 25%, ou 5.811 casos foram atribuídos ao período até 08/06 e 75% ou 17.976 foram atribuídos ao período entre 09/06 e 06/07.

Finalmente, desde o ‘apagão’ dos dados do IPP (quando o total de casos era de 20.142) até 06/07 houve um aumento total de casos da ordem de 200,7%, chegando a 60.568 e uma diferença de 40.426. Dessa diferença, 26% ou 10.419 haviam sido atribuídos ao período ‘pré-apagão’ e 74% ou 30.007 haviam sido atribuídos ao período entre 22/05 e 06/07.

Os dados oferecidos pelo Instituto não permitem que se conheça a data de seus lançamentos na base de dados, como seria desejável. Como todos os dados apresentam data de ‘atualização’ igual à data de sua publicação (que ocorre diariamente), não se sabe se um dado foi acrescentado um dia após a notificação ou com meses de atraso, dificultando inclusive a checagem de discrepâncias e caracterizando falta de transparência.

A atribuição de dados a semanas pregressas tem a faculdade de modificar radicalmente a curva, que pode variar da ascendência para a descendência, e precisa ser corroborada pela verificação de detalhes suplementares.

As inconsistências aqui apontadas, de forma preliminar, põem em dúvida a curva descendente que vem sendo apresentada pela Prefeitura como justificativa para a retomada das atividades.

Um rápido exercício estimativo, supondo-se que nenhum dado fosse atribuído a semanas pregressas, portanto congelando as semanas anteriores e levando-se em conta só as notificações da semana em tela, forneceria a continuação da ascendência da curva após o ‘apagão’ pelo menos nas semanas epidemiológicas até 30/05 e 08/06, como se vê na figura 2, hipotética.

Figura 2 – Curva COVID-19 em 08/06, com hipótese de congelamento das semanas anteriores a 22/05.

 Legenda

      (bege)  Semanas epidemiológicas segundo dados divulgados pela Prefeitura até 22/05

        (azul) Semanas epidemiológicas de 30/05 e 08/06 acrescentadas ao gráfico congelado

As várias questões levantadas em relação aos dados publicados legitimaram o envio de requerimento de esclarecimentos pela Câmara Municipal ao Instituto Pereira Passos, a pedido do mandato do vereador Reimont, em que perguntava-se:

  1. Quais as fontes (órgãos) informantes dos dados acrescidos posteriormente à semana epidemiológica vigente, discriminados por data de notificação, data do primeiro sintoma, bairro de residência, sexo, idade e status de óbito/recuperação?
  2. Quando tais dados foram enviados ao sistema SMS/IPP/COR, discriminados por data de envio, data de notificação, data do primeiro sintoma, bairro de residência, sexo, idade e status de óbito/recuperação?
  3. Quando e por qual setor tais dados foram inseridos no sistema gerador do Painel Rio COVID-19, discriminados por data de inserção e setor responsável, segundo data de notificação, data do primeiro sintoma, bairro de residência, sexo, idade e status de óbito/recuperação?

Não havendo a Câmara recebido até aqui nenhuma resposta, paira sobre o Instituto Pereira Passos o espectro da manipulação de dados com fins políticos. O Observatório Carioca da Pandemia divide com a sociedade suas dúvidas e sua apreensão diante do processo de reabertura deflagrado pelo Prefeito Crivella, baseado em dados nebulosos.

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