Indígenas à base de antidepressivos e remédios contra dor

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Por Joana Suarez, com fotos de Flávio Tavares, compartilhado de Projeto Colabora

Falta de emprego, de comida e de perspectiva de melhoria de vida levam moradores de aldeias à depressão, ao alcoolismo e ao suicídio

A indígena Anelita de Souza sofre com escloredemia, uma doença inflamatória e crônica: aldeias também têm muitos casos de depressão e alcoolismo (Foto: Flávio Tavares)

São João das Missões (MG) – Embora a fome seja uma ameaça permanente, os maiores problemas que os Xakriabá lidam hoje na reserva em termos de saúde são o alcoolismo e a depressão, segundo o médico da reserva Marcelo Caldas. A falta de emprego, de estrutura, e de comida, além das precárias condições de vida, têm levado a quadros depressivos, de paranóias e suicídios. Três pessoas cometeram suicídios no último ano na reserva, mas, nos anos anteriores, o índice já foi maior. As vítimas são principalmente jovens e mulheres.




“As medicações para transtorno de humor, esquizofrenia e depressão são as que a gente mais utiliza aqui; só perdem para analgésicos”, afirmou o médico, que acredita ter em torno de 100 pacientes nas aldeias que ele atende utilizando medicamento controlado.

As medicações para transtorno de humor, esquizofrenia e depressão são as que a gente mais utiliza aqui; só perdem para analgésicos

Marcelo Caldas
Médico na reserva indígena Xakriabá

Caldas é o médico que está há mais tempo na reserva: seis anos. Ele é responsável por três aldeias com cerca de 1.600 pessoas, uma média de 25 atendimentos diários, mas já chega a atender 60 quando as outras quatro equipes estão desfalcadas.  “A população é muito carente, tem muitas pessoas que não tem acesso a nada e nós só conseguimos suprir a saúde primária”, explicou, relatando as dificuldades dos pacientes em obter exames e remédios.

Confira todas as reportagens da Série Especial sobre a Terra Xakriabá

Na aldeia Barra, Anelita Alves de Souza, de 55 anos, toma vários medicamentos. Tem escloredemia, uma doença inflamatória e crônica do tecido conjuntivo. Ela sente muitas dores e gasta todo aposentadoria com remédios que não são fornecidos pelo governo. “Fiquei entre a vida e a morte, perdi a vontade de me alimentar”, lembra.

Anelita fala sem dar pausa, como quem precisa desabafar o sofrimento que tem vivido. Só esquece da própria dor quando pensa na filha com um cisto ósseo, precisando operar para não perder a perna. O genro está desempregado.  As ofertas de trabalho são apenas na prefeitura, escolas e postos de saúde indígenas – unidades essas conquistadas e ocupadas por eles após muita luta.

Casas de indígenas na reserva Xakriabá: restrição territorial e dependência externa (Foto: Flávio Tavares)
Casas de indígenas na reserva Xakriabá: restrição territorial e dependência externa (Foto: Flávio Tavares)

O antropólogo Ruben Caixeta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),  avalia que os Xakriabá foram duplamente afetados, ao longo dos anos: de um lado, tiveram a restrição territorial, impedindo que vivam da pesca, da caça e da agricultura; do outro, tornaram-se dependentes dos bens produzidos pela indústria mas com dificuldades de obtê-los.

“Como eles são de um ambiente rural, afastados dos centros urbanos, sem empregos, a dependência do dinheiro faz com que eles fiquem ainda mais vulneráveis, com pouca renda para conseguir bens materiais básicos”, afirma Caixeta, que tem experiência junto às populações indígenas da Amazônia, onde a  ‘riqueza’ é poder viver sem o ‘dinheiro’, mas apenas da terra.

Se dependesse do governo, morreria um aqui todo dia de fome. E não é porque a gente não trabalha: somos trabalhadores demais, mas aqui não chove, não conseguimos produzir alimentos

Rogério Lopes
Indígena Xakriabá

A pesquisa “Conhecendo a economia Xakriabá”, realizada em 2004 por lideranças indígenas e professores da UFMG,  identificou que metade dos dez produtos agrícolas mais consumidos pela população não são produzidos nas aldeias, mas, comprados fora da reserva. Os alimentos são negociados muitas vezes com atravessadores que vão até os Xakriabá, sempre com dificuldade de transporte.

Assistencialismo contra a fome

Há pelo menos quatro anos, a organização não governamental (ONG) Amigos de Minas leva cerca de 800 cestas básicas para doar em São João das Missões de três em três meses. O motorista indígena Rogério Lopes guia o grupo até às casas mais necessitadas, já que as estradas de chão não têm sinalização. “Se dependesse do governo, morreria um aqui todo dia de fome. E não é porque a gente não trabalha: somos trabalhadores demais, mas aqui não chove, não conseguimos produzir alimentos”, comentou Rogério, lembrando do rio que guarda a riqueza e história dos antepassados.

Indígenas fazem fila para receber daoções da ONG Amigos de Minas: carga dos caminhões nunca dá para todos (Foto: Flavio Tavares/Projeto Colabora)
Indígenas fazem fila para receber daoções da ONG Amigos de Minas: carga dos caminhões nunca dá para todos (Foto: Flavio Tavares/Projeto Colabora)

Já encontramos uma mãe dando água com sal para o filho, outra mulher chorando porque tinha acabado de derrubar no chão a única panela de feijão que tinha antes de a gente chegar

Flávia Barboza
Voluntária da ONG Amigos de Minas

O grupo Amigos de Minas sai de Belo Horizonte em uma sexta e volta domingo. Quando os caminhões com doações chegam na reserva, as famílias fazem fila para pegar e nunca dá para todo mundo. “A cesta dura menos de 1 mês, quando a gente atrasa para vir, eles reclamam. Teve um menino que me pediu leite ao invés de brinquedo de Natal”, contou Margarete Vidote, voluntária da ONG, que sai do interior de São Paulo para se juntar aos mineiros e participar da ação.

Os voluntários que vão repetidas vezes nas aldeias, criam laços, se apegam às histórias e às famílias. “Já encontramos uma mãe dando água com sal para o filho, outra mulher chorando porque tinha acabado de derrubar no chão a única panela de feijão que tinha antes de a gente chegar”, lembra Flávia Barboza, que assim como outros voluntários, sentiam nunca ser suficiente o que levavam para lá.

A ONG e as doações tornaram-se necessárias nas aldeias Xakriabá, virou medida “urgente que já dura anos”. Mas faltam ações que promovam autonomia, que vá além do assistencialismo. “Se tem uma pessoa com fome, mais fácil é dar um prato de comida. Isso é preciso no (momento) imediato, mas o ideal é fortalecer as políticas internas”,  defende o fotógrafo Edgar Kanaykõ, membro do Povo Indígena Xakriabá, que concluiu mestrado em Antropologia este ano na UFMG. Ele é a favor da organização da comunidade com projetos que gerem renda no próprio território.

“A gente tem que promover a luta para que eles conquistem seus direitos. É claro que sem um prato de comida a pessoa nem raciocina, mas não pode ficar só nisso. O problema da água ali é histórico”, argumentou a arqueóloga Alenice Baeta, que trabalha com povos tradicionais em Minas Gerais há 30 anos.

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