Em Brasília, mais de 7 mil indígenas de todo o país protestam por demarcação de territórios e pedem proteção contra invasores. Agenda de evento inclui conversas com ministros do STF.
Por Nádia Pontes, compartilhado de DW
Depois de dois anos sem ocupar as ruas de Brasília devido à pandemia, o Acampamento Terra Livre (ATL) traz a capital federal o maior número de participantes em seus 18 anos de história. Ao longo dos dez dias de programação, que termina nesta quinta-feira (14/04), mais de 7 mil indígenas de cerca de 200 povos estiveram no complexo da Fundação Nacional de Artes (Funarte), segundo contagem da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Em ano de eleições presidenciais, a briga pelo território está no centro da discussão. Lideranças pedem andamento nos processos das demarcações, paralisadas desde que Jair Bolsonaro assumiu o governo, em 2019. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), existem atualmente 680 processos, mais de 200 deles, ou seja 35% do total, ainda aguardam regularização.
As atividades do ATL incluem protestos diários nas proximidades do Congresso Nacional, onde o Projeto de Lei 191/2020, que libera mineração e outros grandes empreendimentos em terras indígenas, deve ser votado em regime de urgência nos próximos dias.
“Nós estamos aqui para acabar com a distância entre o Congresso e o povo. Lutamos pela retomada das demarcações principalmente no Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Na Amazônia, apesar de haver um grande número de terras demarcadas, sofremos diariamente com violência e as invasões”, afirmou Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib, numa reunião fechada entre lideranças e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que visitou o acampamento na terça-feira.
Agenda de manifestações
Nesta terça-feira, indígenas se cobriram de lama e sangue cinematográfico para denunciar em frente ao Ministério de Minas e Energia os efeitos do garimpo ilegal em suas terras. Diversas etnias, principalmente na Amazônia, relatam o aumento da extração de ouro e outros metais preciosos por invasores.
“Cansamos de ver nossas crianças sendo sugadas pelas dragas do garimpo ilegal. O governo genocida de Bolsonaro quer legalizar o regime de morte que avança nossos territórios”, escreveu Alessandra Munduruku, representante de um dos povos que mais sofrem com a atividade ilegal no Pará.
No dia anterior, a Hutukara Associação Yanomami havia publicado um relatório detalhando os avanços do garimpo de ouro em suas terras e o sofrimento dos indígenas em consequência da presença dos invasores.
Num dos relatos, os yanomami falam da série de ataques violentos a comunidades, com circulação de drogas, armas e violências contra crianças. Segundo a associação, 273 comunidades são afetadas diretamente pela atividade ilegal na terra indígena, a maior do país, que abriga cerca de 29 mil pessoas. O relatório calcula que, de 2016 a 2020, o garimpo cresceu 3.350% no local.
Segundo Dario Kopenawa, vice-presidente da Hutukara, mais de 40 mil garimpeiros circulam atualmente no território demarcado há 30 anos. Com as invasões, o número de casos de malária entre os indígenas também explodiu, com mais de 1.800 casos registrados em 2020, aponta o estudo.
Diálogo com ministros
A ida em massa de lideranças a Brasília também é tida como importante para expor os problemas nos territórios a representantes do Judiciário. Num encontro com o ministro do Supremo Tribunal Eleitoral (STF) Edson Fachin, mulheres tocaram num tema compreendido como vital para os indígenas: o marco temporal.
Segundo essa tese, indígenas só podem reivindicar áreas que ocupavam oficialmente até 5 de outubro de 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada.
Fachin é relator do caso, cujo julgamento foi iniciado em agosto de 2021 e paralisado na sequência após pedido de vista de Alexandre de Moraes. Fachin já emitiu o seu voto, que foi a favor do direito originário assegurado pela Constituição e, portanto, contra o marco temporal. A previsão é que o julgamento seja retomado em junho.
“Trazemos os relatos de violações que estão ocorrendo dentro dos nossos territórios. Nosso objetivo é sensibilizar as instituições de toda a agenda anti-indígena e importância que essas instituições têm de assegurar nossos direitos garantidos na Constituição Federal”, explica Ivo Macuxi, advogado indígena, em entrevista à DW.
O povo Macuxi é um dos que vive na Raposa Serra do Sol, que figurou um dos julgamentos mais importantes no STF, finalizado em 2009, e que deu origem à tese do marco temporal. Do local, arrozeiros foram retirados após o longo processo, que foi marcado por conflitos violentos.
Para Macuxi, o governo Bolsonaro se nega a dialogar. O Ministério da Justiça chegou a cancelar em cima da hora a participação num evento no ATL. Segundo o advogado, a expectativa é que o encontro com Andre Mendonça, ministro do STF indicado pelo atual presidente, sirva para levar a mensagem dos indígenas ao presidente.
Reencontro com as raízes
Paralelamente à agenda política, o ATL também é visto como lugar de reencontros com as origens. Karina Puri participa pela primeira vez do acampamento e busca encontrar outros representantes de seu povo, dado como extinto.
“Eu cresci ouvindo dos meus pais que os Puri eram um povo que não existia mais. Era mais fácil dizer isso, porque as pessoas podiam tirar suas terras, seus direitos. Meu pais já nasceram ouvindo isso e viveram situações muito precárias”, diz Karina à DW.
Habitantes do Sudeste brasileiro, os Puri foram massacrados pelos colonizadores e começaram a reaparecer há poucas décadas. No caso de Karina, ela se redescobriu indígena após frequentar uma feira no Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde morou por 12 anos e trabalhou como atriz.
“Estamos em processo de ressurgência”, diz Karina, que trabalha com cultura e montou uma organização que busca mais informações sobre a presença indígena na região onde mora atualmente, no Embu das Artes, em São Paulo.
Jornalistas indígenas do alto rio Negro
Rede reúne jovens indígenas para combater fake news na Amazônia. São jovens entre 17 e 37 anos escolhidos pelas suas comunidades para representá-las.
Foto: Tainã Mansani
Levando informação pela Amazônia
O rio Negro tem 1.700 km de extensão e é um das principais vias de deslocamento para muitos indígenas que vivem na região. Na fase mais aguda da pandemia de covid-19, um grupo de comunicadores indígenas da Rede Wayuri viajou semanas enfrentando as corredeiras e cachoeiras do rio Negro e outros rios da região para levar informação e combater, de aldeia em aldeia, notícias falsas sobre a vacinação.Foto: Tainã Mansani
Rede Wayuri
A Rede Wayuri nasceu em 2018 em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. É um projeto da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), assessorado pelo Instituto Socioambiental (ISA). É composto por 17 comunicadores indígenas de oito etnias, das 23 etnias locais. Baré, Baniwa, Desana, Tariana, Tukano, Tuyuka, Wanano e Yanomami são algumas delas.Foto: Tainã Mansani
Jornalistas indígenas
Os jornalistas indígenas da região do rio Negro têm desafiado obstáculos pelo amor à comunicação. São jovens entre 17 e 37 anos escolhidos pelas suas comunidades para representá-las. Em janeiro de 2022, durante a 4ª Oficina de Formação e Comunicação da Rede Wayuri, cerca de 50 jovens indígenas debateram o problemas das fake news.Foto: Tainã Mansani/DW
Uso do Whatsapp
O desafio das fake news se intensificou na pandemia de covid-19. Mesmo com a internet instável, as mensagens por celulares ainda chegam via WhatsApp. Os comunicadores querem reverter o cenário, usando o mesmo recurso para checagem de informações – em plena floresta.Foto: Tainã Mansani
Tecnologia inevitável
Em aldeias e comunidades indígenas de todo o Brasil, o uso de celulares é cada vez mais comum, principalmente entre os jovens. Para muitas lideranças e comunicadores indígenas, a tecnologia é hoje inevitável e pode ser usada para fazer alguma coisa boa, como diz o comunicador Plínio Baniwa. Lideranças indígenas lutam pela inclusão digital.Foto: Tainã Mansani
Cuidado com a língua
Daniela Barbosa, da etnia Yepá Mashã, é membro de Rede Wayuri. Em 2019 fez parte do primeiro grupo aprovado no vestibular indígena da Unicamp. Ela hoje estuda Literatura e gosta de comunicação. Gosta de trabalhar nas redes sociais da Rede Wayuri. “É preciso todo cuidado com a língua portuguesa. Usamos o idioma de maneira leve, para comunicar bem aos parentes da região”, diz.Foto: Tainã Mansani