Índio, o que deve morrer

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Por Ulisses Capozzoli, jornalista, no Facebook

A mais sábia das minhas três avós expressava suas dúvidas combinando uma frase a uma expressão facial. “Deus queira que não seja assim”, dizia, seguido de uma quase imperceptível contração das maçãs do rosto. Era sua maneira sutil de dizer “claro que vai dar errado”. O governo que toma posse em duas semanas vai intervir na área indígena Raposa Serra do Sol, baseado em um diagnóstico tão simplista quanto uma suposta planura da Terra.




Quando li a notícia já esperada revi a expressão da minha avó como se estivesse ao lado dela. Por que a intervenção em Raposa Serra do Sol, em Roraima, com área de 1,7 milhão de hectares ocupada por cinco povos indígenas, reunindo uma população de 17 mil pessoas, dará errado?

Porque a complexidade dos conflitos instalados ali é muito maior que os recursos mentais do governo que se inicia. Um governo bronco, simplório/simplista, incapaz de articular uma diplomacia elementar nas relações internacionais, o que já acendeu mais de um conflito potencial lesivo aos interesses nacionais.

Esse quadro de penúria mental que reduz o diagnóstico da situação nessa área indígena a uma operação de subtração. Com resultado negativo. Andei por ali mais de uma vez. Conversei com tuxauas (cacique) em Uiramutã, agora sede de um município provocativamente instalado no interior de uma aldeia indígena, falei com fazendeiros, políticos, garimpeiros e gente que jogava conversa fora na varanda de um hotel, então o melhor que havia, numa praça central de Boa Vista, a capital de Roraima.

Cada um tem uma posição, às vezes duas ou três. Os indígenas mesmo estão um tanto divididos, entre católicos e evangélicos, uma praga que por aqui se alastra como cogumelo depois da chuva. Não que os católicos tenham estado sempre livres de suspeita. Na verdade, eles estiveram no início dos problemas por ali com a determinação de conquistar almas para o Paraíso, como se, de fato, fossem uma espécie de colhedores de Deus.

Entre os “brancos” há certa confluência em torno da ideia de que “índios são sinônimo do atraso e por isso devem ser eliminados”. Em Boa Vista é onde se fala, em todo território nacional, com a maior informalidade sobre aniquilação indígena. Algo comparável a uma obra civil: uma ponte, uma hidrelétrica, para ampliar o contato com o mundo exterior. Chocante, para pessoas mais civilizadas. Mas real.

Os problemas por ali começaram ainda com Portugal e foram transferidos para o governo brasileiro, a partir de uma tentativa inglesa de ampliar a área da antiga Guiana Inglesa, agora a República Cooperativa da Guiana, historicamente conhecida como “A Questão do Pirara”, para se referir ao rio desse nome, um dos afluentes do Ireng ou Maú.

Quem se der ao trabalho de consultar um mapa verá que, a Oeste, numa distância de 50 km do Maú, com leito ainda hoje rico em diamantes, há uma localidade com nome sugestivo de “Puxa Faca”. O presidente eleito tem expressado sua determinação de integrar povos indígenas à sociedade nacional com a facilidade enganosa de quem pretende misturar óleo e água, substâncias que, qualquer cozinheiro sabe, se repelem por diferença de densidade.

O presidente eleito, em seu simplorismo de receber representantes de governos numa mesa sem o refinamento elementar de uma toalhinha branca, pratinhos para o visitante amparar as migalhas de pão, propõe que indígenas sejam fazendeiros.

Pois bem, em Raposa Serra do Sol os indígenas são pecuaristas, no sentido de criarem gado e fazem isso há muito tempo. Mas isso não faz deles gente que compartilha de crenças e costumes de “brancos”, essa expressão curiosa que adotamos por aqui dos faroestes de John Wayne.

Somos “café-com-leite” se quisermos ser mais específicos quanto à cor da pele que cobre nossos corpos: uma mistura de europeus, negros trazidos da África e indígenas, dos supostamente 5 milhões que viviam por aqui à época do desembarque de Cabral na Bahia.

O governo considera o território indígena Raposa Serra do Sol um tesouro em recursos minerais. E isso é tudo o que o governo enxerga. A riqueza antropológica, a vida de seres humanos, os povos indígenas não valem coisa alguma, apesar do alerta do Papa Paulo III no começo do século 16. Por ali há nióbio, mineral leve e estratégico para a industrial aeroespacial. Há também urânio, ouro, diamante, zinco, caulim, ametista, cobre, barita, molibdênio e titânio entre outros minerais estratégicos.

Para justificar o desejo de invadir as terras indígenas homologada pelo STF, como fizeram os americanos no século 19, o governo alega que a região “se tornou uma terra de ninguém”. O governo vem insistindo em uma “integração” dos povos indígenas, proposta enfaticamente refutada, depois de pensada e experimentada, pelo insuspeitíssimo marechal Candido Mariano Rondon, uma espécie de pai dos povos indígenas brasileiros.

O homem que criou o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1910, o ancestral da atual Fundação Nacional do Índio (Funai) submetido ao controle de uma advogado e pastora evangélica. É o que basta para um bom entendedor, diria minha terceira avó.

O general Augusto Heleno, nomeado ministro do Gabinete de Segurança Institucional GSI (expressão curiosa essa, “gabinete”, coisa do século 19) tido como “homem forte do futuro governo” e conselheiro de Bolsonaro, o presidente, tem suas considerações em relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol e esse deve ser o foco da decisão de intervir na região.

Como se a intervenção militar no Rio de Janeiro tivesse dado algum resultado positivo e devesse servir de alguma referência.

Imagem: Dança Tapuia – Albert Eckhout (1610-1666)

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