Sequência de ataques em instituições de ensino nos últimos anos transtorna rotina de estudantes, pais e professores
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Mãe ampara filho na vigília na frente da creche onde crianças foram assassinadas: violência muda rotina das escolas de todo o país (Foto: Anderson Coelho / AFP – 06/04/2023)
(Fernanda Ornellas, Júlia Martins, Marcella Ferreira, Matheus Taranto e Taís Codeco) – Os massacres a escolas eram uma realidade distante que os brasileiros acompanhavam pelo noticiário. Não mais. De acordo com levantamento da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mais da metade dos ataques contra escolas estão concentrados nos últimos dois anos. Foram 22 desde 2002, que deixaram 30 mortos, sendo 23 alunos, cinco professores e dois funcionários. O massacre de Blumenau, em Santa Catarina, que resultou na morte de quatro crianças em abril de 2023, alterou a rotina de alunos, professores e diretores de escola em todo o país.
A pouco mais de mil quilômetros dali, a diretora Gabriela Oliveira, de uma escola estadual de Niterói, teve que lidar com alunos levando canivetes nas mochilas. “Houve casos em que crianças levaram canivetes para se proteger, caso algo acontecesse”, contou. Não à toa. Um perfil fake da escola foi criado no Instagram para anunciar um ataque. Ele citava nome de porteiros e funcionários, o que deixou um clima de desespero, ainda que não fosse verdadeiro. “Identificamos que não era real, alguém estava apenas aproveitando o momento de pânico para causar mais pânico. Foi preciso fazer um boletim de ocorrência e fornecer os números de registro policial”, relatou Gabriela.
Nos dias seguintes ao massacre em Santa Catarina, contas de usuários em redes sociais ameaçavam sobre possíveis novos ataques e instauraram o pânico. “Na segunda de manhã, quatro dias depois do ataque em Blumenau, comecei a receber mensagem de responsável dizendo que os filhos tinham visto postagens no TikTok anunciando novos atentados”, conta Rosana Lima, coordenadora de uma escola particular de Niterói, no Rio de Janeiro.
Nessa instituição, o principal alvoroço foi por causa de vídeos de teor conspiratório acessados pelas crianças naquela rede social. Eles apontavam o dia 20 de abril como uma nova data prevista para os massacres. Nessa data, o massacre de Columbine, que deixou 15 mortos e 24 feridos nos EUA, completou 24 anos. “Para mim, era muito óbvio que quem vai fazer esse tipo de coisa não vai anunciar que vai fazer, né? Em todos os outros casos que a gente já teve até hoje, nenhum foi avisado com antecedência”. O raciocínio, no entanto, não impediu o medo dos pais.
O Brasil é uma sociedade que se caracteriza por enormes taxas de violência, mas, nos últimos quatro anos, foram discursos violentos para todos os lados. A gente tem um Congresso que é a favor da violência. A nossa sociedade autoriza assassinato, tortura, e todos os tipos de violência
Marcele Frossard
Cientista social e assessora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
Os boatos atingiram principalmente os responsáveis e crianças pequenas. “Me senti muito preocupada, principalmente em relação à minha filha Isadora, que tem 9 anos e ainda estuda no fundamental”, conta Marcela Maia, que também é mãe de um universitário. A pequena Isadora disse ter medo de alguém ‘do mal’ fazer algo com ela. A criança voltou a fazer xixi na cama quando soube da conspiração sobre um possível ataque em massa. “Como mãe, penso na saúde da cabecinha dela, mas a escola dela me dá bastante segurança.”, completou Marcela.
A educação é um direito das crianças e dos adolescentes garantido pela Convenção sobre os Direitos das Crianças desde 1990, principal tratado internacional de direitos humanos sobre crianças e adolescentes, da Organização das Nações Unidas (ONU). Em conformidade com os dispositivos constitucionais, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que todo menor de idade tem direito à educação, visando o seu pleno desenvolvimento e preparo para o exercício da sua cidadania. Todavia, o cenário que vemos em território nacional está na contramão do que se espera de uma esfera fundamental para a vida em sociedade.
Qual a origem desses atentados, afinal?
Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), entre 2019 e 2022, mais de um milhão de armas de fogo foram registradas. No total, mais de 1.3 milhão de novos armamentos entraram em circulação nesse período, segundo dados colhidos por meio da Lei de Acesso à Informação, analisados pelo Instituto Sou da Paz e Instituto Igarapé. O acesso facilitado atraiu um número significativo de pessoas que buscavam obter licenças para posse e porte de armas, incluindo colecionadores, atiradores desportivos, caçadores e pessoas comuns em busca de autodefesa.
Ao longo do mandato do ex-presidente, a quantidade de CACs (grupo formado por caçadores, atiradores e colecionadores) subiu de 117.467, em 2018, para 813.188, em 2022. Essa presença maior de armas nos ambientes domésticos fez com que as armas pudessem chegar ao ambiente escolar. Ainda em 2019, uma escola foi invadida em São Paulo: cinco alunos e dois funcionários foram mortos a tiros. Um dos assassinos, 17 anos, matou o outro e depois se suicidou. Em novembro de 2022, ataque a tiros em duas escolas em Aracruz, no Espírito Santo, matou três professoras e uma aluna – o atirador, de 16 anos, usou a arma do pai.
“A escola incomoda porque tem muita gente diferente no mesmo lugar; ela é a representação do que há de diversidade. Devemos prestar atenção também à misoginia presente nesses atentados. Mulheres são quase sempre as primeiras vítimas
Marcele Frossard
Cientista social e assessora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
O crescimento do conservadorismo também desempenha um papel importante nesse contexto. Durante o governo Bolsonaro, houve uma polarização social e política acentuada no país, o que contribuiu para o fortalecimento de ideias mais extremistas. Grupos racistas, conservadores e neonazistas encontraram espaço para disseminar suas ideologias em fóruns da internet, muitos dos quais localizados na deep web.
A exposição a essas ideias violentas pode influenciar o comportamento de alguns indivíduos, especialmente os mais suscetíveis e vulneráveis, como crianças e adolescentes. Durante o período de isolamento da COVID-19 isso foi ainda mais acentuado, já que os estudantes foram obrigados a ficar em casa. Isso pode ter levado a um aumento do consumo de conteúdos violentos e à exposição a ambientes virtuais onde ideias extremistas são propagadas.
Para entendermos o cenário de violências cometidas contra as escolas é preciso antes de tudo analisarmos o momento político do país, reforça a cientista social Marcele Frossard, assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e pesquisadora nas áreas de sociologia da educação, sociologia da violência, sociologia da juventude e políticas públicas. “Um aspecto que é muito importante de ser ressaltado tem a ver com o nosso momento político, que é o aumento da direita no país e também o avanço de um discurso violento”, afirma. “O Brasil é uma sociedade que se caracteriza por enormes taxas de violência, mas, nos últimos quatro anos, foram discursos violentos para todos os lados”, prossegue. “A gente tem um Congresso que é a favor da violência. A nossa sociedade autoriza assassinato, tortura, e todos os tipos de violência”, sustenta.
E o que parte da população se pergunta é o porquê dessas violências se concretizarem nas escolas, ambiente que é sinônimo de acesso à educação, à infância e à juventude. Para Marcele Frossard, esse seria o cenário ideal para ataques e massacres de criminosos justamente como uma forma de recado de grupos extremistas para a sociedade em geral. “A escola incomoda porque tem muita gente diferente no mesmo lugar; ela é a representação do que há de diversidade. Devemos prestar atenção também à misoginia presente nesses atentados. Mulheres são quase sempre as primeiras vítimas”, pontua.
Além das mulheres, Marcele aponta também para os negros como alvos. ”Quando não são mulheres, são pessoas que são consideradas inferiores. Existe essa ideia eugenista que está relacionada com o racismo por superioridade”, afirma a cientista social, que reforça a importância de que temas como misoginia e racismo sejam discutidos em ambiente escolar.
Preocupação com novos ataques
Em abril deste ano, após o assassinato a facadas de uma professora dentro de escola na capital paulista no fim de março e do massacre na creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau, uma semana depois, o termo ‘ataque em escolas’ teve um aumento significativo nas pesquisas realizadas na internet. Diante do cenário de preocupação e medo que se instalou no país, o Governo Federal instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial de combate à violência nas escolas.
Coordenado pelo Ministério da Educação, o GT é composto por representantes dos ministérios da Justiça e Segurança Pública; Direitos Humanos e da Cidadania; Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República; Ministério da Saúde; Ministério da Cultura; Ministério do Esporte, além da Secretaria Nacional de Juventude da Presidência da República, com o objetivo de discutir ações de enfrentamento à violência nas escolas.
Entre as ações já anunciadas estão a ampliação de patrulhas escolares, o monitoramento de ameaças e planejamentos na internet de ataques contra escolas, a criação de um disque-denúncia – um canal telefônico específico para relatos de casos suspeitos de ataques a instituições de ensino – e a elaboração de um protocolo de emergência para orientar as escolas públicas e privadas e os profissionais de educação sobre como agir em caso de novos ataques. O Ministério da Justiça e Segurança Pública ficou responsável por realizar um trabalho de inteligência nas redes sociais, com foco nas populares “deep e dark web”, com o objetivo de identificar e monitorar discussões e planejamentos de novos ataques criminosos e outras atividades ilícitas.
Os ataques contra escolas ganham muita repercussão devido ao modus operandi e ao número de vítimas. Entretanto, há outra violência rondando as escolas. No Rio de Janeiro, algumas marcas não são tão facilmente mensuradas como aquelas provocadas pelos tiros durante massacres. É o caso dos impactos na educação das crianças em áreas consideradas de risco, em que costumeiramente ocorrem operações policiais e tiroteios.
Um estudo realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), com base em dados do Instituto Fogo Cruzado, mostrou que 74% das escolas da rede municipal de ensino do Rio foram afetadas por pelo menos um tiroteio com a presença de agentes de segurança em 2019, em nome da chamada “guerra às drogas”. Desde o início do ano letivo de 2023 até abril, operações policiais afetaram 80 mil alunos e 243 escolas do Rio. Dados da Secretaria Municipal de Educação mostram que, nos dois primeiros meses do ano, as escolas acionaram o protocolo de segurança em tiroteios 1.322 vezes.