Injustiça climática tem gênero, cor e CEP

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Pessoas pobres e negras, especialmente as mulheres, são as principais vítimas das mudanças climáticas, apesar de terem sido as que menos contribuíram para o aquecimento global

Por Liana Melo, compartilhado de Projeto Colabora




Na foto: Ativistas protestam na Avenue de la Grande Armee, em Paris pedindo “justiça climática”: crise do clima tem raça, gênero e local de nascimento (Foto: AFP)

Basta olhar para as tempestades no Sul da Bahia, Minas Gerais, Petrópolis (RJ) e Recife (PE) para enxergar que as injustiças climáticas têm gênero, raça e CEP. São sempre as mesmas vítimas. Pessoas vulneráveis às mudanças climáticas por causa das condições impostas pela pobreza. Ou seja, especialmente mulheres pobres e negras, indígenas, quilombolas, pescadores, ribeirinhos e trabalhadores rurais.

“A vulnerabilidade ambiental têm marcadores muito específicos, especialmente em gênero e raça, que fazem com que as pessoas mais impactadas pelas mudanças climáticas sejam mulheres periféricas do Sul Global”, analisa Letícia Lima, autora do livro “Mulheres e (in)justiça climática no Antropoceno – Uma abordagem interseccional”.

Aqueles que sofrerão as consequências da crise climática são, em sua maioria, mulheres, cortadas por eixos variados que lhes dão cor, classe, orientação sexual, etnia, nacionalidade. Quanto mais cruzamentos, mais injustiça

Letícia LimaEscritora e pesquisadora em Direito Ambiental

A lançar mão de uma expressão geopolítica para identificar os responsáveis históricos pela crise climática, a autora aponta para o Norte Global, termo usado para descrever um agrupamento de países desenvolvidos; enquanto na outra ponta, estão os países de baixa renda, identificados como os do Sul Global, e que são as principais vítimas das mudanças climáticas. 

O desespero de uma mãe após o desabamento do lixão de lixão de Koshe, em Adis Abeba, capital da Etiópia. Foto Minasse Wondimu/Anadolu Agençy
O desespero de uma mãe após o desabamento do lixão de lixão de Koshe, em Adis Abeba, capital da Etiópia (Foto: Minasse Wondimu/Anadolu Agençy/AFP)

Escrito no âmbito do Mestrado na PUC-Rio e no Grupo de Pesquisa Direito, Ambiente e Justiça no Antropoceno (Juma), vinculado à Coordenação de Direito Ambiental do Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente da PUC-Rio, o livro lançou mão de uma teoria feminista, a interseccionalidade, para analisar os problemas climáticos além das questões ambientais e sob o viés de gênero.  A conclusão da pesquisadora em Direito Ambiental é que as mulheres são as principais vítimas dos eventos gerados pelas mudanças climáticas, como deslizamentos, enchentes, furações…

“Aqueles que sofrerão as consequências da crise climática são, em sua maioria, mulheres, cortadas por eixos variados que lhes dão cor, classe, orientação sexual, etnia, nacionalidade. Quanto mais cruzamentos, mais injustiça”, analisa Letícia, afirmando que “as mulheres negras são mais impactadas porque elas acabam tendo mais eixos de opressão”.

Ao citar que as mulheres representam o maior percentual de pobres no mundo e desempenham atividades relacionadas diretamente à biodiversidade e à coleta de recursos florestais, Letícia chama atenção no seu livro para o fato de que sem a lente interseccional, os problemas climáticos seriam vistos apenas do ponto de vista ambiental ou, no máximo, social, enquanto os problemas específicos das mulheres não seriam sequer observados.

Os dados estatísticos comprovam a tese. Cerca de 2,4 bilhões de mulheres em idade ativa não têm oportunidades econômicas iguais às dos homens e 178 países mantêm barreiras legais que impedem sua participação econômica plena, segundo o relatório “Mulheres, Empresas e o Direito”, do Banco Mundial (Bird), divulgado no começo de março último. Em 86 países, as mulheres enfrentam alguma forma de restrição ao mercado de trabalho e 95 países não garantem a remuneração igualitária para trabalhos de igual valor. Dois terços dos adultos analfabetos do mundo são mulheres.

Representantes do movimento negro brasileiro protestam na COP26 contra o racismo ambiental. (Foto: Arquivo pessoal)
Representantes do movimento negro brasileiro protestam na COP26 contra o racismo ambiental. (Foto: Arquivo pessoal)

Riscos ambientais assimétricos

A percepção de que os riscos ambientais não são democraticamente compartilhados vem tirando da invisibilidade o movimento pela justiça climática, que vem ganhando tração nos últimos anos à medida que os eventos extremos aumentam de frequência e intensidade.

Três décadas depois da Rio-92, não é mais possível ignorar a dimensão humana, ou desumana, da crise climática e seus impactos. É que a mortalidade causada por enchentes, secas e tempestades foi 15 vezes maior nas regiões mais vulneráveis do que nas menos vulneráveis entre 2010 e 2020, segundo o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), publicado no começo do ano. O aquecimento global deixou de ser uma preocupação meramente ambiental.

Ainda que o “princípio da equidade” tenha entrado pela primeira vez em um documento das Nações Unidas na Rio-92, foi pouco mais de duas décadas depois, em 2015, na COP21, que o termo justiça climática foi textualmente citado no Acordo de Paris. No artigo 7º, o acordo prevê a necessidade de adaptação climática sensível ao gênero.

Ainda que reconheça que o documento assinado na COP21 tenha sido uma das mais sólidas bases para o movimento da justiça climática, Letícia aponta falhas na sua implementação: “É preciso que ocorra transferência de tecnologia e de recursos financeiros do Norte para o Sul Global para que para esses países possam se adaptar e mitigar os impactos da crise climática”.

Uma das faces mais visíveis das mudanças climáticas são os eventos extremos, como mostraram, por exemplo, as chuvas torrenciais registradas nos últimos seis meses no Brasil, o que evidencia a desigualdade na distribuição de ônus e bônus das mudanças climáticas entre comunidades, grupos sociais e países.

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