Por Caio Castor, Fausto Salvadori, Paulo Eduardo Dias, publicado no Portal Ponte Jornalismo –
Vendedor de balas negro ficou preso 28 dias, sem provas, por causa de um ‘lapso’ cometido por um delegado e pela Justiça
Dá para ficar cansado só de olhar. Nos poucos mais de 60 segundos em que um semáforo da Avenida Internacional, no bairro Santo Antônio, em Osasco, na Grande São Paulo, acende a luz vermelha, Rogério Xavier Salles, 32 anos, sai correndo deixando embalagens de Mentos sobre os vidros dos carros parados, conversa rapidamente com os passageiros que aceitam comprar um dos pacotes por R$ 2, entrega os doces, recebe o dinheiro, dá troco e depois volta a correr para recolher a mercadoria não vendida antes de o sinal abrir. Dali a pouco sinal fecha de novo, e recomeça o triatlo de deixar as balas, vender e recolher os produtos, repetido e repetido ao longo de todo o dia.
O emprego no farol foi a alternativa que Rogério encontrou para tirar seu sustento, já que há anos não consegue um emprego com carteira assinada — segundo ele, os empregadores não querem saber de quem tenha tido passagem pela polícia, mesmo que, no caso dele, a última condenação tenha sido por um roubo ocorrido há três anos. Desde então, garante, vem fazendo o que pode para ganhar a vida honestamente. Para o crime, garante, ele não volta. “Já errei, errar é humano, mas persistir é burrice”, diz.
Mas é como se o mundo à volta de Rogério estivesse fazendo de tudo para tentar levá-lo de volta para o crime. Além da dificuldade para conseguir emprego, o vendedor de balas sofre com a desconfiança da polícia e do sistema judiciário. Na semana passada, voltou para as ruas após passar 28 dias preso. Seu crime? Nenhum. Tudo ocorreu por conta do “lapso” de um delegado, aceito por um promotor e um juiz.
Na tarde de 28 de agosto, enquanto corria sem parar pelo farol com suas balas Mentos, Rogério foi surpreendido por dois policiais militares, Evelyn Daniela Bressain da Silva e Thiago Barreto Madureira, da 1ª Companhia do 14º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano. Os PMs mostraram uma sacola contendo 16 eppendorfs (pinos) de cocaína e disseram que pertencia ao vendedor.
Rogério afirma que a sacola não estava com ele. Os policiais não apresentaram qualquer testemunha, além deles próprios, de que teriam apreendido os pinos com o vendedor, quando o levaram para o 8º DP de Osasco. Mas nem precisaram. O delegado Flávio Garbin se contentou com a palavra dos policiais. Nisso, a prisão em flagrante de Rogério seguiu o que ocorre em 74% das detenções por tráfico de drogas , em que bastam o testemunho dos policiais e uma quantidade de drogas de origem não comprovada para levar alguém para a cadeia, conforme um estudo do NEV (Núcleo de Estudos da Violência), da USP (Universidade de São Paulo).
Mesmo inocente, Rogério estaria destinado a ser condenado e ver sua história desaparecer nos corredores do sistema prisional, misturando-se a outras tão parecidas com as suas, se não fosse por um detalhe: a sacola com pinos apresentada pelos policiais não continha qualquer substância ilegal, como atestou um laudo do IC (Instituto de Criminalística), da Polícia Civil, divulgado no mesmo dia em que o vendedor de balas foi preso.
O laudo, porém, acabou ignorado pelo delegado. Garbin registrou no boletim de ocorrência e no relatório final do inquérito policial que a perícia do IC havia dado positivo para cocaína, exatamente o contrário do que estava escrito no documento. No dia seguinte, Rogério foi levado, com as mãos algemadas, para uma audiência de custódia no Fórum de Osasco. Ali, nem o promotor de justiça Rodrigo César Coccaro, nem o juiz Carlos Eduardo D’Elia Salvatori parecem ter feito caso do laudo negativo para drogas que constava dos autos. O vendedor de balas recebeu prisão preventiva (sem prazo) e foi mandado ao CDP (Centro de Detenção Provisória) de Osasco, onde se juntou a outros 1.575 presos espremidos num espaço feito para abrigar 833 pessoas.
Somente três semanas depois, em 11 de setembro, foi que um outro promotor, Daniel Magalhães Albuquerque Silva, resolveu mudar o rumo do processo e pedir a liberdade provisória de Rogério, chamando a atenção, pela primeira vez, para o laudo negativo do IC. No dia 21, depois que a reportagem da Ponte perguntou sobre o caso para a SSP (Secretaria da Segurança Pública), o delegado Garbin corrigiu os documentos onde havia escrito que a perícia tinha detectado cocaína. Foi “um lapso”, alegou nos registros. Por conta do “lapso”, segundo a SSP, Garbin está sendo investigado pela Corregedoria da Polícia Civil.
Já o juiz Carlos Eduardo D’Elia Salvatori se recusou a dar entrevista à Ponte. E o promotor Rodrigo César Coccaro não admitiu qualquer erro. Em entrevista via e-mail à Ponte, por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público Estadual de São Paulo, reafirmou que considerava a prisão de Rogério “a conduta que melhor preservaria os interesses da sociedade”, baseando sua decisão no “histórico do indiciado, que inclui roubo e reincidência específica em tráfico” — de novo, o passado de Rogério usado como justificativa para levá-lo de volta ao mundo de trás das grades. Também pesou, segundo o promotor, o fato de a prisão ter ocorrido em Osasco, onde o tráfico de drogas é um “delito muito frequente”.
Libertado em 25 de setembro, o vendedor de balas voltou ao mesmo farol onde trabalhou nos últimos anos. Em meio aos corres e às balas, passou a carregar também o medo de ser alvo de alguma represália por parte da polícia. “Tenho medo dos policiais voltarem, mas preciso trabalhar”, afirma.
A mãe de Rogério, Maria Inês Xavier, 54 anos, também teme pelo filho. “Com certeza, esses policiais vão ficar perseguindo meu filho. Porque sabe que a gente é pobre, que a gente mora em periferia, eles veem a gente com outros olhos e não é nada disso”, diz.
Nem todo o medo do mundo, porém, deve impedir mãe e filho de lutar por reparação na Justiça, por conta dos 28 dias que o vendedor passou preso por nada. “Não tenho medo de lutar pelos meus filhos. Por eles sou capaz de tudo. Vamos atrás, sim”, garante.