A inquisição fortalece Lula

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Por Mino Carta  publicado em Carta Capital – 

O espetáculo encenado em Porto Alegre dia 24 de janeiro contou com uma claque bastante reduzida, enquanto fica evidente que foi o Brasil que perdeu 

Os tribunais do Santo Ofício escolhiam o culpado antes de levá-lo a julgamento, convocado como espetáculo encerrado pela fogueira a iluminar a praça e queimar vivo o herege condenado de antemão.




Foi o que se deu com Joana d’Arc, Giordano Bruno, as feiticeiras de Salem, os autos de fé da Contrarreforma. Condenava-se ao cabo de processos políticos, no quadro da disputa do poder, sob o manto do eterno conflito entre o Bem e o Mal, cujos endereços os inquisidores pretendiam conhecer.

Os tribunais de Curitiba e Porto Alegre repetiram ao longo do processo movido contra Lulao comportamento dos inquisidores de antanho. Qual é a heresia do ex-presidente? Realizar um bom governo, de longe o melhor desde Getúlio Vargas. Dar passos importantes a beneficiarem dezenas de milhões de desvalidos. Praticar uma política externa independente, alheia aos interesses de Tio Sam. Os dois mandatos de Lula caracterizam um período de significativas conquistas e grandes esperanças. Heresias evidentes aos olhos da casa-grande.

O revival brasileiro da Inquisição já começa a espantar o mundo democrático e civilizado, e espantará ainda mais. As regras mais comezinhas do direito foram desrespeitadas das formas mais diversas, a despertar o anátema de juristas de fama mundial. Inútil repetir, no entanto, argumentos irrefutáveis: o estado de exceção admite mais esta para montar o enredo da próxima eleição sem Lula, condenado juntamente com o País, por enquanto encaminhado a viver uma fraude.

Não houve fogueira, mas um sucedâneo, a promessa da prisão de Lula a curto prazo. Não faltou o espetáculo, proporcionado pela transmissão ao vivo. Neste momento, enquanto lido com a minha vetusta Olivetti, ouço as buzinas da alegria burguesota e o eco distante dos fogos. Escassos manifestantes fazem muito barulho, o famigerado MBL conseguia reunir quatro gatos-pingados na Avenida Paulista, enquanto Lula arengava para uma plateia de 50 mil na Praça da República.

Manifestações houve País afora, a larga maioria contra o julgamento gaúcho, o qual, de resto, não causa maiores surpresas: o 3 a zero era mais do que previsível, bem como o evidente arreglo entre os inquisidores para acertar a identidade da sentença, de sorte a emitir apenas os embargos declaratórios e apressar a prisão do ex-presidente. Cuidaram os políticos togados de valorizar o vergonhoso desempenho de Sergio Moro e se aproveitaram do espetáculo televisivo na certeza de virar estátuas de mármore em praça pública. Tomem nota, entretanto: os heróis de hoje serão os vilões de amanhã. E recomendo ler o aviso de Nirlando Beirão na seção QI.

Quem perdeu dia 24 de janeiro de 2018 foi o Brasil. Não faltam motivos de profundo desconforto. O estado de exceção, pior do que qualquer ditadura, prossegue na realização do seu projeto, já em pleno andamento: liquidar de vez com qualquer resquício de Estado de Direito, sujeitar o País às vontades de Tio Sam, entregá-lo ao capital estrangeiro, mantê-lo como exportador de commodities e torná-lo insignificante no plano internacional. A visita de Michel Temer a Davos é amostra peremptória desta insignificância.

Como é do conhecimento até do mundo mineral, a condenação de Lula não se sustenta à luz da lei e da razão, assim como o plano golpista. De todo modo, preso ou não, o ex-presidente conserva toda a sua força eleitoral e, a despeito da perseguição incessante, continua a crescer nas pesquisas. Tempos atrás, ele disse: “Se deixarem, serei presidente, se me prenderem, viro mártir”.

Eis um gênero de inimigo indigesto por demais. De minha parte, continuo a me perguntar: que serão capazes de fazer os golpistas sem candidato para as próximas eleições para dar prosseguimento ao projeto insano? A tentativa de enterrar o presidencialismo para instalar o “parlamentarismo jabuticaba” parece inviável, mesmo porque conta com a resistência de quem não hesitaria em pôr à venda o Brasil e se considera em condições de enfrentar as urnas.

O ano mal começou e o tempo é longo até o pleito. Com a insensatez no poder, o desgoverno que tudo se permite, muito mais viável é o cancelamento da eleição em proveito dos interesses das gangues, fantasiados de conveniências do País. Nas circunstâncias, tudo é possível por parte dos golpistas até agora bem-sucedidos. No país da casa-grande e da senzala, difícil é imaginar a conquista da contemporaneidade sem confronto. Creio que somente um forte abalo social pode livrar o Brasil deste estado de exceção à beira da demência.

Mais uma vez recorro a Eugênio Aragão, este que teria sido um exemplar ministro do STF e que Dilma não nomeou. Aragão entende que as agruras que o povo brasileiro terá de sofrer ao longo de 2018 em consequência das reformas impostas pelo governo ilegítimo, além do mais em meio à crise econômica, podem atiçar a revolta das vítimas da prepotência.

Anoto por ora que, condenado em segunda instância o fundador do Partido dos Trabalhadores, os sindicatos se mostram incapazes de convocar a greve geral.

Está claro ser preciso amedrontar os senhores, sem exclusão da mídia nativa, neste momento em júbilo.

Entrevistado nesta edição especial, Aragão assim interpreta o julgamento de Porto Alegre: “É uma provocação. Em vez de demonstrar respeito à soberania popular, resolveram chamar para a briga a sociedade”. Ou por outra: desafiaram o povo pesadamente ofendido. Desenha-se assim a grande incógnita do ano recém-iniciado, à sombra de uma etapa decisiva do golpe, ao reconhecer em Lula o maior obstáculo à realização do projeto de desmonte do País. A medida extrema foi tomada na conclusão de um enredo que haveria de envergonhar a todos.

Não sei se a espetacularização do julgamento de Porto Alegre convém ao estado de exceção, arrisco-me a crer que, antes, fortalece a liderança de Lula.E mais ainda aconteceria se Sergio Moro, pavão de camisa preta, quiser a transmissão ao vivo da prisão do ex-presidente. Poderia situar-se ali o começo da derrocada golpista. Não chego a supor sangue derramado nas calçadas, inédito nas nossas tradições.

Mas, assim como a casa-grande confia na resignação popular que soube estimular de mil e atrozes maneiras, eu confio na covardia dos donos da casa senhorial, de seus capatazes de chibata em punho e dos bandeirantes caçadores de índios, armados de colubrinas.

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