A intimidade devassada

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MÍDIA

Por Sylvia Debossan Moretzsohn, jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, para o Observatório da Imprensa

Um menino foi encontrado morto em abril deste ano, numa cova aberta verticalmente no meio do mato, numa cidade do noroeste do Rio Grande do Sul. As investigações apontam para um crime premeditado pela madrasta, com a cumplicidade do pai.




Temos aí todos os ingredientes para o escândalo, largamente explorado assim que o caso apareceu. Os suspeitos foram logo presos. Previsivelmente, o interesse foi arrefecendo, mas retornou com força esta semana com a divulgação de cenas íntimas que atestam o conflito doméstico entre o menino, o pai e a madrasta.

A novidade alimentou o noticiário até culminar com a reportagem do Fantástico de domingo (31/8), contrastando cenas de harmonia e violência: primeiro, o “casal apaixonado” na “Praça do Amor”, depois o pai provocando o garoto, que avança com um facão na direção dele, depois imagens do casal feliz intercaladas com discussões com o menino dentro de casa, às vezes com trechos reconstituídos a partir dos áudios – o garoto que pede socorro, que se esconde num armário e protesta, desesperado, para que parem de filmá-lo.

No meio, entrevistas com advogados, os inevitáveis especialistas – no caso, psiquiatras – a explicar como deveria ser a relação do casal com a criança, e o fecho com a avó materna a dizer que não quer nada além de justiça.

Voyeurismo

As cenas domésticas foram gravadas pelo próprio pai, em seu celular, e capturadas pela polícia, que as forneceu à imprensa, que por sua vez as divulgou sem pestanejar. Ninguém desconhece essa linha direta que alimenta o voyeurismo. A fonte – no caso, uma fonte oficial – dá as cartas: detém as informações e as libera a conta-gotas, conforme seus interesses. A imprensa adere alegremente a esse jogo, vendendo a história como uma novela, de modo a criar expectativas para as cenas dos próximos capítulos.

O mais grave, aqui, é que se devassa a intimidade das pessoas e isso, aparentemente, é considerado perfeitamente normal. Talvez porque se considere que essas pessoas não merecem respeito, já que teriam cometido um crime bárbaro. De fato, este costuma ser o comportamento prevalecente entre os jornalistas: ignorar os limites impostos pelo Direito, uma vez convencidos da culpa dos acusados.

Mas, neste caso em particular, desrespeitam até mesmo o menino morto, exposto arbitrariamente em toda a sua angústia e revolta. Retiram-lhe o direito de preservar sua imagem.

Será possível que ninguém pensou nisto?

Intenção e gesto

A esta aberração se junta outra, muito comum quando as investigações se transformam em espetáculo: as conclusões automáticas e precipitadas, por mais absurdas que sejam. “Tu não sabe do que eu sou capaz”, diz a madrasta. “Queria que tu morresse”, devolve o garoto. “Então nós vamos ver quem vai pra baixo da terra primeiro”, responde ela, e isso já é visto como comprovação antecipada do que viria a acontecer.

Mesmo que em seguida a discussão continue assim: “Tu. Tu vai [pra baixo da terra primeiro]”, responde o menino. E a madrasta: “Então tá. Se tu tá dizendo”. (Mas esse trecho, que consta da transcrição publicada no Globo na matéria de 27/8, é suprimido na edição do Fantástico).

É curioso esse processo que faz as pessoas acreditarem na literalidade das palavras, como se qualquer um, no calor da hora, não fosse capaz de rogar pragas ou fazer as mais incríveis ameaças. Como se não houvesse metáforas nem distância entre intenção e gesto.

Pior ainda: quando a madrasta diz que “teu fim vai ser igual ao da tua mãe”, o advogado da avó materna de Bernardo conclui tratar-se de uma evidência de que a mãe do garoto não se suicidou, mas foi assassinada pelo pai, quatro anos atrás.

A seletividade das escolhas

O assassinato de uma criança sempre causa comoção, mas é algo lamentavelmente corriqueiro: quantas são assassinadas por aí sem que nem sequer tomemos conhecimento? Entretanto, de tempos em tempos, seleciona-se um caso, que inevitavelmente provocará impacto, espanto, horror.

Não bastará noticiar, portanto: será preciso dramatizar para se obter o efeito desejado. Nisso não há novidade: é uma técnica conhecida e utilizada desde o nascimento da imprensa.

Resta saber por que alguns casos são selecionados, em detrimento de outros que mal merecem registro, fora os que nem chegam a ser noticiados.

Há alguns anos, num debate com policiais na Fiesp (ver aqui), o repórter Valmir Salaro – que nunca deixa de mencionar o caso Escola Base, e repete o mea culpa por ter acreditado naquela história chocante que depois se revelou falsa mas destruiu a vida dos injustamente acusados – argumentava:

“Se é uma jovem loira, bonita, que fala duas línguas e leva o namorado e o irmão dela para matar os próprios pais [referia-se a Suzane von Richthofen], isso é mais notícia do que em qualquer lugar. Se isso acontecer na periferia, ninguém vai cobrir”.

Além da questão de classe

Porém não é apenas a condição social que dá esse status de notícia a um crime, como o próprio Salaro indica na sequência de sua fala:

“Depois do caso Isabella [Nardoni, a menina que, de acordo com as investigações, foi jogada pela janela pelo pai, depois de uma briga doméstica, em março de 2008] eu cobri um caso em Ribeirão Preto muito mais grave, muito mais grave, e a imprensa não deu o menor destaque. Eu cheguei a fazer uma matéria, na hora em que eu quis fazer a segunda matéria disseram que não interessava mais”.

O caso citado é o do menino Pedrinho, espancado e morto em junho de 2008. O padrasto e a mãe foram condenados pelo crime de tortura.

Em setembro do mesmo ano, também em Ribeirão Preto (SP), dois irmãos foram assassinados, esquartejados e jogados no lixo pelo pai e a madrasta. O caso teve ainda menos repercussão.

São exemplos a demonstrar que não é a gravidade do crime que lhe confere destaque na imprensa. Se as escolhas de pauta são inevitáveis – e os critérios variam mais do que os estudos acadêmicos na área conseguem apreender –, é preciso também escolher a forma de apurar e editar.

As escolhas certas vão na contramão do exibicionismo no caso Boldrini. Fazer jornalismo não é ceder à tentação do espetáculo.

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