A busca por isolar com sanções a Rússia vem se mostrando problemática, pois ela é um dos maiores exportadores de commodities do mundo.
Por Rodrigo Medeiros, compartilhado de Jornal GGN
Uma matéria da publicação britânica The Economist, da edição de 12 de março, trouxe informações relevantes para a discussão dos efeitos inflacionários que estamos vivendo. Não convém esquecermos que o mundo já vivia, ao longo da pandemia de Covid-19, significativos processos inflacionários, oriundos de problemas nas cadeias oligopolistas e monopolistas de suprimentos globais. A pobreza e a fome avançaram no Brasil. Piorou com a invasão da Ucrânia pela Rússia o que estava ruim antes da pandemia.
A pandemia não terminou, infelizmente, e, de acordo com The Economist, “a invasão da Ucrânia pela Rússia está desencadeando o maior choque de commodities desde 1973 e uma das piores interrupções no fornecimento de trigo desde a Primeira Guerra Mundial”. Os efeitos ainda serão sentidos nas sociedades. Segundo a matéria, “as pessoas comuns ainda não sentiram os efeitos completos do aumento das contas de gasolina, dos estômagos vazios e da instabilidade política”. Consta também na matéria que os índices globais de preços de commodities subiram 26% em relação ao início de 2022. A inflação brasileira, por sua vez, foi a maior para fevereiro desde 2015, acumulando crescimento de 10,54% em doze meses, segundo o IBGE. Portanto, é razoável esperar que os efeitos da crise na Europa agravem as pressões inflacionárias no Brasil.
Leonardo Vieceli, em matéria assinada na Folha de S. Paulo, em 11 de março, apontou que, “a partir de março, a inflação tende a receber novas pressões, com os reflexos econômicos da guerra entre Rússia e Ucrânia”. Pioraram as expectativas dos agentes econômicos para o ano. O jornalista destacou o recente “mega-aumento de combustíveis no Brasil”, uma alta de 18,8% na gasolina, de 16,1% no gás de cozinha e de 24,9% no óleo diesel. Conforme descreveu Vieceli, nos últimos doze meses, “o que mais pesou na inflação, de modo geral, foram os combustíveis, segundo o IBGE”. O índice de difusão da inflação ficou acima de 70% pelo terceiro mês consecutivo, ou seja, a disseminação da inflação é expressiva na economia. Há a expectativa de que o aumento recente dos combustíveis provoque aumentos de preços ao longo de cadeias produtivas oligopolistas e monopolistas de bens e serviços.
A busca por isolar com sanções a Rússia vem se mostrando problemática, pois ela é um dos maiores exportadores de commodities do mundo. Para The Economist, um embargo global completo, imposto pelos EUA, “poderia enviar o preço do petróleo para 200 dólares o barril”. De acordo com a publicação britânica, os efeitos dessa “calamidade das commodities” poderá ser brutal. A economia mundial é muito menos intensiva em energia por unidade do PIB do que na década de 1970. Entretanto, a inflação global, já em 7%, poderá subir mais dois ou três pontos percentuais.
José Luís Fiori, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista à Carta Capital, no dia 25 de fevereiro, destacou que “a Europa não tem como substituir a energia russa no curto nem no médio prazo. Se forem obrigados pelos norte-americanos a cortar seus laços energéticos com a Rússia, terão que enfrentar de imediato racionamento, inflação, perda de competitividade e, muito provavelmente, revoltas sociais de uma população que já foi atingida pesadamente pelos efeitos da pandemia do coronavírus”. Recente anúncio do chanceler Olaf Scholz, em 27 de fevereiro, apontou no sentido de que o governo alemão fará um investimento de 100 bilhões de euros para modernizar as Forças Armadas (Bundeswehr). Scholz, socialdemocrata, acrescentou que serão destinados mais de 2% de seu PIB anualmente para a defesa. De acordo com uma matéria da DW Brasil, de 27 de fevereiro, “melhores equipamentos, equipamentos modernos, mais pessoas, isso custa muito dinheiro”, reconheceu o chanceler, que afirmou que tal compromisso fiscal é condizente com um país do tamanho e da importância da Alemanha na Europa. Rendas e empregos novos serão gerados na indústria alemã a partir das encomendas viabilizadas pelo gasto público federal. Não serão novidades históricas a aplicação do “keynesianismo militar” e o renascimento de nacionalismos na Europa.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi criada em 1949 para conter a ameaça de expansão territorial da área de influência da União Soviética, extinta a partir de 1991. Durante a Guerra Fria, o pacto de Varsóvia, criado em 1955, foi a resposta do campo de influência soviética após a Alemanha Ocidental ter ingressado na Otan. A “doutrina da contenção” imperou então no campo liderado pelos Estados Unidos e, após o colapso soviético, o expansionismo da Otan para o leste europeu trouxe o mundo a esta situação. George Kennan (1904-2005), um dos principais arquitetos da política externa norte-americana na Guerra Fria, alertou contra a expansão da Otan em países do antigo Pacto de Varsóvia. De acordo com Archie Brown, professor emérito da Universidade de Oxford, em entrevista à Exame, em 6 de fevereiro, “a insensibilidade ocidental à preocupação russa sobre uma aliança militar hostil, a Otan, que se aproximava cada vez mais de suas fronteiras representa uma grande parte do pano de fundo das atuais tensões”. A perspectiva de invasão da Ucrânia pela Rússia não se mostrou um blefe.
Para os países que enfrentarão eleições em 2022, The Economist ponderou que, no campo político, os seus líderes terão “que enfrentar eleitores furiosos”. Elevações de preços de alimentos entre 2007 e 2008, afirmou The Economist, levaram a tumultos em 48 países, e já há sinais de pânico e agitação hoje. Nesse sentido, a prioridade da gestão pública responsável deveria ser a garantia da oferta de bens básicos e essenciais à manutenção da vida humana. O desmonte das políticas de estoques públicos reguladores de alimentos interessa ao Brasil? A agricultura, em diversos países, costuma ser encarada como uma questão de segurança nacional. Políticas públicas de estoques reguladores são permanentes em diversos países democráticos ou não. Por que seria diferente no Brasil? Em 2020, no primeiro trimestre, essa discussão deveria ter merecido uma maior atenção dos gestores públicos, pois estava claro que os preços dos alimentos subiriam logo adiante, conforme apontava então a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
A imprensa nos informou mais recentemente, no dia 11 de março, que o governo federal lançou o Plano Nacional de Fertilizantes, que objetiva ampliar a exploração de insumos locais e elevar a produção de fertilizantes em fábricas nacionais para reduzir a dependência externa. Busca-se com o plano, noticiou a imprensa, reduzir as importações dos atuais 85% para cerca de 60% em trinta anos, além de transformar o Brasil em fornecedor global de potássio. Trata-se de um plano executável ou tímido em termos de ambições nacionais?
Pode ser que a invasão da Ucrânia pela Rússia tenha chamado a atenção de muitos para o fato de que no concerto das nações, principalmente durante contestações ou transições de hegemonia, os países precisam construir e preservar as suas reservas estratégicas de recursos e capacidades tecnológicas para enfrentar jogos de pressões e coerções na arena global. A ideia ingênua de uma “paz perpétua” entre diferentes sociedades não passou de uma utopia liberal pouco praticada pelos centros hegemônicos e seus contestadores históricos.
Conseguiremos aprender algo a partir das experiências históricas ou a marcha da insensatez nos conduzirá recorrentemente a um tipo de eterno retorno frustrante? Em um artigo publicado na Folha de S.Paulo, no dia 14 de março, o jornalista Igor Gielow, enviado especial na cobertura da guerra entre Rússia e Ucrânia, recordou que, durante a crise dos mísseis de Cuba em 1962, o presidente Kennedy mandou distribuir para os comandantes das Forças Armadas dos Estados Unidos o livro “Os Canhões de Agosto”, de autoria da historiadora norte-americana Barbara Tuchman. O livro trata da eclosão da Grande Guerra, em 1914, que marcou o fim da Belle Époque.
Pouco antes, por volta de 1910, muitos acreditavam, de acordo com Tuchman, que “na presente interdependência financeira e econômica das nações, a guerra tornara-se não-lucrativa; o vencedor sofria tanto quanto o vencido, de modo que nenhuma nação cometeria a tolice de iniciar uma guerra”. O livro da historiadora foi pulicado pela Biblioteca do Exército no Brasil. Segundo ponderou Igor Gielow, “políticas de alianças rígidas, certezas obsoletas e percepções incorretas fizeram ao fim o mundo desabar no grande conflito, que só teve seu desfecho na ainda mais mortífera Segunda Guerra Mundial, 25 anos depois”. A realidade não se comportou como foi interpretada e imaginada nos planejamentos militares. Parafraseando o general prussiano Clausewitz (1780-1831), a guerra foi a continuação trágica de equívocos político-diplomáticos.
Os principais dirigentes e líderes de vários países estão se mobilizando no tempo presente para buscar formas de mitigar domesticamente o agravamento da crise internacional. O que tem feito o Brasil, que já apresentava uma perspectiva de recessão com elevada subutilização da força de trabalho para 2022, antes da invasão da Ucrânia? A imprensa brasileira vem destacando que existem pressões altistas sobre os preços internos por conta do aumento da cotação do petróleo, dificuldades de suprimentos de fertilizantes e trigo, e queda da demanda por produtos da nossa pauta exportadora. Esse e outros quadros sociais dramáticos demandam debates públicos qualificados em 2022, propostas condizentes com o potencial brasileiro e as nossas necessidades básicas domésticas, tendo em vista o acirramento das tensões na conjuntura internacional.
Rodrigo Medeiros é professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)