Mais de 60 anos após a inauguração da primeira cisterna, o baiano Manoel Apolônio, 86 anos, fala sobre a retomada do projeto que já construiu milhares de unidades
Por Amelia Gonzalez, compartilhado de Projeto Colabora
Na fot0: No último ano do governo Bolsonaro, a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) só teve recursos para construir 20 cisternas, quando já houve ano em que construiu vinte mil. Foto ASA
Aos 17 anos, o baiano Manoel Apolônio de Carvalho era um dos muitos jovens que havia deixado para trás sua terra natal, no município de Jeremoaba, para tentar ganhar a vida na capital paulista. Estávamos nos anos 1950. Naquela época, o Nordeste ainda vivia totalmente sob o comando dos coronéis, que dramatizavam a sobrevivência no semiárido, dizendo ser impossível a vida em terra tão seca. Dessa forma, mantinham o povo do semiárido refém de carros-pipa que eram trocados por votos.
O jovem Manoel Apolônio conseguiu um bico para construir uma casa em São Paulo, e sua tarefa era ajudar a fazer uma piscina. Lá um dia, enquanto descansava do almoço, o rapaz ficou olhando fixamente para aquele super tanque de água e pensou: “Posso construir uma coisa assim lá em Jeremoaba e guardar a água da chuva”.
Nascia assim a ideia de construir cisternas rurais. Manoel Apolônio, que todos conhecem como Nel, largou o emprego, voltou à sua cidade, expôs sua ideia, foi chamado de louco e desafiou: “Faço a primeira de graça. Se der certo, as outras vou cobrar para fazer”.
Pois a primeira cisterna rural continua lá, mais de sessenta anos depois, em Jeremoaba, na casa do professor Roberto de Carvalho. E Nel conseguiu criar três filhas, todas formadas, com o dinheiro que recebeu construindo cisternas.
Vamos encontrar Nel, hoje aos 85 anos, morando na cidade de Simão Dias, em Sergipe, com sua Antônia. A cidade fica a cerca de duas horas de Jeremoaba, e foi lá onde ele decidiu montar sua casa e criar suas filhas. Lúcido, Nel só se queixa de dor – “Adoeci dos ossos, ando com duas muletinhas” – e tem um desejo muito forte: conversar com o presidente Lula:
“Ele aproveitou a minha invenção, melhorou a vida de muita gente. Queria muito agradecer, dizer que fico contente por ele ter protegido as classes mais desfavorecidas”, disse Nel, por telefone, numa noite de domingo, único dia em que é possível se comunicar com ele, já que o resto do tempo se dedica à sua roça, onde não chega a internet.
Foi no início do século, no primeiro governo Lula, que Nel começou a ser reconhecido pelo seu trabalho. A divulgação veio não só quando Lula tornou política pública a construção de cisternas, atraindo a atenção da mídia para o projeto, como também com apoio da Articulação do Semiárido (ASA). Trata-se de uma organização da sociedade civil que funciona em rede, com mais de três mil outras organizações, com o objetivo de propagar e pôr em prática o projeto político de convivência com o semiárido brasileiro. E que se especializou no projeto das cisternas rurais.
Mesmo com algumas críticas, a ASA sentiu saudades de Lula e Dilma quando assumiu Jair Bolsonaro. Durante os quatro anos do governo, o projeto só não desapareceu inteiramente porque a organização tem expertise, é imbatível nos editais, e foi conseguindo manter.
“A cisterna é a base de uma proposta política que temos de desenvolvimento sustentável para a região, é um elemento para essa proposta. São várias etapas, de produção de alimentos, conservação de água da chuva, de água no solo, recuperação de margens de rios. A ideia é desenvolver a região para que ela não necessite viver daquilo que ela viveu quase eternamente, ou seja, da ajuda de fora”, explica Rafael Santos Neves, coordenador do Programa Um Milhão de Cisternas e do Programa Cisternas nas Escolas da ASA, organização que foi chamada para fazer parte do Grupo de Transição do governo Lula logo depois de sua vitória nas urnas em outubro do ano passado.
Rafael conta que o presidente Lula conseguiu abrir algumas exclusões para o limite de teto de gastos, e recolocou o projeto das Cisternas como política pública. Na PEC do Limite de Gastos há, segundo ele, R$ 500 milhões destinados para as cisternas.
“A retomada desse programa causa muito impacto na economia da região: da agência do Banco do Brasil, que vai repassar o dinheiro, ao comerciante que vende o material, ao pedreiro que é contratado, até o dono do posto de gasolina. Estamos, nesse momento, dialogando com o governo, já que em qualquer edital nós certamente estaremos na ponta por conta da nossa expertise. O que é bom é que as pessoas que estão conversando conosco são servidores públicos de carreira, não são pessoas ‘indicadas’. Os servidores públicos reconhecem nosso papel e sabem que a ASA manteve o projeto vivo”.
O projeto ficou em frangalhos durante o governo de Bolsonaro. Para se ter uma ideia, no ano passado a ASA só teve recursos para construir 20 cisternas, quando já houve ano em que construiu vinte mil. Ao todo, desde que começou, há cerca de trinta anos, já foram construídas 670 mil cisternas através da associação.
“Eu não estou contando, aí, com algumas que podem ter sido construídas por organizações estaduais ligadas à ASA. Acho que posso contar 900 mil. Mas ainda há muito o que fazer”, disse Rafael.
A proposta é capacitar as pessoas a conviverem com o semiárido e, assim, se contrapor ao discurso de combate à seca.
“Não se combate um fenômeno natural. No semiárido chove, sim. Se você consegue guardar a água dos três meses em que chove, é possível ter qualidade de vida nos outros meses. Dessa forma, a cisterna é um pontapé inicial para essa convivência, mas é claro que é preciso tirar a família de uma situação de extrema miséria. Aí entram as políticas de governo, inclusive o Bolsa Família, mas não só. É mentira essa história de que as famílias querem viver dos R$ 600,00 (do Bolsa Família). As pessoas querem uma possibilidade de viver bem.”, disse Rafael.
O sonho de ter um filtro de barro
Fornecer uma cisterna a uma família, seja ela da área rural ou urbana dos estados do semiárido (Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais) não é apenas construir o equipamento, tarefa que demora cerca de dois a quatro dias. O processo envolve a capacitação das famílias, inclusive para que elas se conscientizem de que é preciso usar um filtro de barro.
Ocorre que, acostumadas a beberem água barrenta e suja, quando vêem a água captada pela cisterna, branca e límpida, as pessoas não entendem que ela não é potável. Daí a dificuldade para que o uso de filtro de barro se torne um hábito.
“Fizemos a entrega de uma cisterna a uma senhora, certa vez, e demos a ela o filtro. Um mês depois, quando passamos para saber como estava se adaptando, ela nos disse que deu o filtro para a mãe: ‘O sonho dela era ter um filtro desses’”, conta Rafael.
Aqui vale explicar: as cisternas são blocos feitos de cimento que se ligam à calha da casa. Quando chove, ela recebe a água direto da calha. Na entrada da cisterna há uma rede para evitar que entrem detritos, mas isso não filtra a água, daí a necessidade do filtro de barro.
Em 2004, quando deu sua primeira entrevista para a imprensa, publicada no caderno “Razão Social”, encartado no jornal “O Globo”, Manoel Apolônio contou que com R$ 1 mil conseguia construir a cisterna que, na época, custava ao governo R$ 4 mil. Hoje este valor está em R$ 6 mil, segundo Rafael, por conta da inflação.
Recentemente, uma reportagem publicada no jornal “Folha de São Paulo” denunciou uma organização em Minas Gerais que estaria cobrando um valor às famílias para que elas recebessem as cisternas. A ASA condenou, fez uma nota explicando que a organização não faz parte do seu sistema, e Rafael, mesmo com críticas à organização que fez a cobrança, entende que ela tentou “dar um jeito” para entregar as cisternas com um preço tão defasado.
“Não vi o edital, não sei qual a justificativa do governo de Minas Gerais para ter contratado tal organização. Mas, infelizmente, não duvido que tenha sido um ‘arrumadinho’. Vimos a prática do governo anterior, inclusive no caso das cisternas: quando era um prefeito ou deputado amigo, o recurso era rapidamente liberado”, disse Rafael.
Sobre o caso, a jornalista Eliângela Carvalho, filha de Manoel Apolônio, dona do site Simãodiense, onde mora com a família, repudia a organização que cobrou a cisterna:
“Meu pai construiu muitas cisternas de graça para quem necessitava. Das poucas vezes que ganhou licitação de algum órgão público, sempre lutou para que as famílias, além de receberem a cisterna de boa qualidade, fossem remuneradas para ajudar no processo da construção. Isto gerava benefícios.
Eliângela concorda que o fato de o governo Lula ter tornado política pública a construção de cisternas foi bom para que seu pai tivesse o reconhecimento de seu invento. Mas, ao mesmo tempo, Manoel Apolônio parou de receber porque parou de construí-las.
“Espero que o governo Lula volte ao programa de cisternas com um olhar diferenciado na aplicação das políticas públicas para pôr em prática os direitos de todos, tais como acesso a água de boa qualidade; direito de não ser enganado ou lesado e ao mesmo tempo que sirva de combate ao ciclo vergonhoso da indústria da seca e os males por detrás dela a exemplo: da fome, miséria e angariação de verbas por decretação de calamidades visando somente fins eleitorais”, disse Eliângela.
É o que todos esperamos.