Documentos, declarações e ações mostram como a cúpula das Forças Armadas legitimou movimentos golpistas e contribuiu para a escalada da crise política no Brasil
Por Cleber Lourenço, compartilhado de Fórum
A tentativa de golpe que culminou nos ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 revelou o papel estratégico da cúpula das Forças Armadas em legitimar movimentos antidemocráticos. Embora líderes militares como Freire Gomes, Baptista Júnior e Júlio César tenham mantido um discurso público de “neutralidade” e compromisso com a Constituição, os fatos mostram uma realidade distinta: omissões, ações e sinais claros de conivência com golpistas criaram as condições para a escalada da crise.
Declarações como a entrevista concedida em janeiro deste ano pelo presidente do Superior Tribunal Militar (STM) à Agência Pública reforçam esse cenário. Ele afirmou que os acampamentos golpistas, organizados nas portas de quartéis após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições, foram tolerados por orientação dos próprios comandantes militares. Essa revelação desmonta a narrativa de neutralidade e aponta para um alinhamento estratégico do Alto Comando com os movimentos extremistas.
Além disso, a postura do general Tomás Paiva, atual comandante do Exército, em diversos episódios intensifica as críticas à suposta isenção da cúpula militar.
A nota de 11 de novembro: legitimação disfarçada de neutralidade
Assinada pelos comandantes das três forças — Freire Gomes (Exército), Baptista Júnior (Aeronáutica) e Almir Garnier (Marinha) —, a nota de 11 de novembro de 2022 evitou condenar explicitamente os pedidos de golpe ou os acampamentos. Embora seja alardeado aos quatro ventos que o general teria algum compromisso com a Constituição, a ausência de uma crítica direta aos atos antidemocráticos foi amplamente interpretada como um sinal de apoio tácito aos movimentos extremistas.
A mensagem consolidou a percepção de que as Forças Armadas não estavam comprometidas com a defesa do Estado Democrático de Direito, mas sim dispostas a atuar como árbitros do processo político, deixando em aberto a possibilidade de intervenção. Esse posicionamento ambíguo serviu como combustível para os grupos radicais que se fortaleceram em frente aos quartéis.
Freire Gomes e a nomeação de Mauro Cid
Outro exemplo da postura ambígua do Alto Comando foi a nomeação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, para o comando do 1º Batalhão de Ações de Comandos (1º BAC), uma das unidades de elite do Exército. Freire Gomes foi responsável por assinar a portaria que oficializou a indicação de Cid, mesmo diante de seu histórico de alinhamento com o extremismo bolsonarista. Também fica claro que o general sabia que Cid era um dos membros da cúpula da intentona bolsonarista e mesmo assim iria dar o comando de tropas para ele.
Mauro Cid está no centro de investigações que incluem a inserção de dados falsos no sistema de vacinação contra a Covid-19 e o planejamento de ações que desestabilizaram a democracia brasileira. Sua nomeação reforça a tese de que, enquanto defendiam um suposto discurso de legalismo, as lideranças militares estavam premiando figuras alinhadas ao bolsonarismo.
Outro movimento que também sinaliza isso é a revelação, em primeira mão por esta coluna, de que 19 militares que participaram da elaboração da “Carta ao Comandante”, documento golpista que pressionava por uma intervenção militar durante a transição presidencial de 2022, seguem na ativa no Exército. Isso expõe a resistência institucional em lidar com elementos antidemocráticos em suas fileiras.
A manutenção desses militares em posições estratégicas gera questionamentos sobre o compromisso das Forças Armadas com a depuração de seus quadros e a defesa da Constituição. A abertura de inquéritos para investigar a conduta desses oficiais é um passo inicial, mas a ausência de punições concretas levanta dúvidas sobre a disposição da instituição em romper com práticas que enfraquecem a democracia e a confiança pública.
Tomás Paiva e a omissão no Comando Militar do Sudeste
Como comandante militar do Sudeste, Tomás Paiva permitiu que manifestações antidemocráticas se consolidassem nos arredores de sua unidade em São Paulo. Mesmo diante do crescimento dos acampamentos e da clara violação da ordem institucional, ele não tomou nenhuma medida para desmobilizar os manifestantes, reforçando o padrão de inação adotado pela cúpula militar.
Além disso, Paiva fazia parte do Alto Comando do Exército quando a nota de 11 de novembro foi elaborada e publicada, assumindo um papel ativo na estratégia de ambiguidade institucional que legitimou os movimentos golpistas. Sua promoção posterior ao comando do Exército levanta dúvidas sobre a continuidade dessa postura de conivência.
Júlio César e a insistência na nomeação de Mauro Cid
Após substituir Freire Gomes no comando do Exército, o general Júlio César de Arruda protagonizou episódios que aprofundaram a crise. Durante os ataques de 8 de janeiro, ele interferiu para impedir que a Polícia Militar do Distrito Federal prendesse os golpistas acampados no Quartel-General do Exército, permitindo que muitos escapassem.
Além disso, Júlio César insistiu na nomeação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, para o comando do 1º Batalhão de Ações de Comandos (1º BAC), mesmo diante das graves acusações que pesavam contra ele. Essa insistência foi um dos motivos que levaram à sua remoção do cargo, após tensões com o governo federal.
O silêncio do Alto Comando: omissão que fortaleceu o golpismo
Documentos obtidos pela Polícia Federal apontam que o Alto Comando do Exército (ACE) não apenas tinha pleno conhecimento das articulações golpistas, mas também participou de reuniões onde os planos foram apresentados e discutidos. Apesar disso, não houve denúncia às autoridades competentes, o que, segundo o Código Penal Brasileiro, pode configurar crime de prevaricação.
Mensagens trocadas entre oficiais em dezembro de 2022 reforçam o envolvimento e a ciência do ACE sobre as articulações golpistas. Em 21 de dezembro, o Coronel Dougmar Mercês encaminhou uma mensagem destacando a recusa formal do General Freire Gomes e do ACE em aderir ao golpe:
“Manobra definida. Nada acontecerá. O Cmt EB e o ACE não toparam infelizmente. Vida que segue. Mais à frente veremos quem estava certo. Selva!”
O situacionismo e o mito dos heróis e vilões
A atuação das Forças Armadas durante a crise institucional revela o impacto do situacionismo como elemento central de sua conduta. Ao se ajustar às vontades do chefe do Executivo, independentemente de sua orientação política, a instituição falhou em adotar uma postura proativa na defesa da democracia, preferindo uma neutralidade que, na prática, facilitou o avanço de movimentos golpistas.
O corporativismo e o situacionismo criaram um ambiente onde a omissão e o silêncio foram tratados como “legalismo”, enquanto problemas graves são empurrados para debaixo do tapete em nome de preservar a instituição. É preciso abandonar a ilusão de que as Forças Armadas atuaram unicamente como guardiãs da democracia ou como vilãs absolutas.
O que todo o relatório da Polícia Federal mostrou foi, na verdade, uma instituição que oscilou entre a tolerância tácita aos atos antidemocráticos e a preservação de seus próprios interesses, sem assumir um compromisso pleno com os valores constitucionais.
Se o país quiser superar essa fragilidade, é necessário enfrentar tanto o situacionismo quanto a busca por narrativas simplistas. A democracia não se sustenta com heróis de ocasião, mas com instituições fortes, transparentes e verdadeiramente comprometidas com a Constituição, independentemente das circunstâncias ou pressões do momento.