Inỹ Karajá e os seus vestires plurais

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Debates e estudos sobre decolonialidade ganham cada vez mais espaço no mundo da moda

Por Ana Rafaella Oliveira, compartilhado de Projeto Colabora




Na foto: Aldeia Fontoura -TO – Foto Hawalari Coxini e Rafaella Coxini (2019)

As aldeias do povo Inỹ Karajá estão presentes no território que hoje se estende pelos estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso e Pará, às margens do Rio Araguaia. Essa população de cerca de 4 mil pessoas e que se distribui entre 27 aldeias foi tema de uma exposição digital, coordenada por Indyanelle Marçal, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás (UFG), e de sua orientadora, a professora da mesma universidade, Dra. Rita Morais de Andrade. Ambas fazem parte do Grupo de Pesquisa (CNPq/UFG) Indumenta: dress and textiles studies in Brazil, que promove, apoia e realiza trabalhos e atividades de ensino, pesquisa e extensão universitárias visando a pluralidade das histórias do vestir no Brasil e em Abya Yala.

Intitulada de “Ixitkydkỹ: um olhar sobre os vestires tradicionais das mulheres Inỹ Karajá”, a exposição contou com a curadoria de duas educadoras nativas dessa etnia: Waxiaki Karajá e Tuinaki Koixaru Karajá. Com a palavra ixitkydkỹ, que significa “vestir”, aparecendo em primeiro plano no título, há uma valorização da língua materna dos Inỹ Karajá.

O tema derivou da pesquisa “Os Modos de Vestir das Mulheres Karajá na Contemporaneidade: tradição, re-invenção e visualidade”, desenvolvida pela pesquisadora Indyanelle Marçal. Além da criação da exposição, também foi oferecido um curso gratuito como projeto de extensão na UFG. Nessa experiência foi proposto discutir a relação entre os vestires tradicionais e ocidentais, tendo a participação de professores indígenas, enquanto na exposição o enfoque exclusivo girou em torno dos vestires tradicionais delas. A escolha dessa metodologia de trabalho, inclusive, foi feita em diálogo com as mulheres Inỹ Karajá participantes do projeto.

De acordo com a cosmovisão desse povo, as mulheres representam a memória genealógica, detendo a mitologia e o conhecimento das práticas convencionais da sua cultura. Partindo dessa perspectiva, as pesquisadoras participaram de uma chamada pública, por meio de um edital de fomento às práticas de impacto socioambiental na moda, para conseguir o recurso financeiro que foi aplicado no desenvolvimento da exposição digital e do curso.

Diversos indígenas que colaboraram na pesquisa, produção audiovisual, documentação dos itens expostos, e ainda, na tradução do conteúdo para o inỹrybè, língua materna desse povo, foram remunerados. Além disso, áudios gravados por estudiosos da cultura Inỹ Karajá dialogando sobre as peças foram disponibilizados para que pessoas com algum tipo de deficiência visual também pudessem acessar o conteúdo da exposição.

“Essa questão do site valorizou a minha língua materna ao mostrar que ela é muito rica e que ainda existe, e que a gente ainda a fala. Muitas aldeias do meu povo quase não falam a língua portuguesa, são mais os jovens que falam. Os mais velhos não falam tanto”, explica Tuinaki Koixaru.

Colar mỹrani no acervo do Museu Goiano Professor Zoroastro Artiaga (MUZA), Goiânia -GO - Foto Hawalari Coxini e Rafaella Coxini (2022)
Colar mỹrani no acervo do Museu Goiano Professor Zoroastro Artiaga (MUZA), Goiânia -GO – Foto Hawalari Coxini e Rafaella Coxini (2022)

Decolonialidade na prática

Todo o formato de desenvolvimento da exposição priorizou a participação dessa etnia, uma prática importante para o campo da moda, que vem ampliando os debates sobre decolonialidade. Como explica a professora Rita Morais, “no meio acadêmico, as teorias decoloniais alcançaram as pesquisas em Moda. Descolonizar a formação acadêmica desse campo significa, para o Grupo de Pesquisa Indumenta, aprender e aplicar epistemologias distintas daquelas ancoradas na modernidade ocidental. Os movimentos sociais de lideranças indígenas e negras estão repercutindo como nunca nas universidades brasileiras”.

Falar sobre os modos de vestir das populações indígenas, a partir de suas próprias perspectivas, representa um novo momento para se pensar a moda no país. “Essa exposição, para mim, é um marco na produção acadêmica e científica na história do vestuário no Brasil. A gente conseguiu colocar e escrever sobre objetos junto com pessoas indígenas, e depois devolvemos ao museu dados informados pelos próprios indígenas sobre os objetos. Então, formou-se uma rede de relações virtuosas que impactam positivamente sobre as comunidades envolvidas”, reforça a professora.

E no caso da cultura Inỹ Karajá, há muito para ser conhecido, uma vez que esse povo produz um significativo trabalho artesanal há diversas gerações. Nessa produção se destacam vestimentas, cestarias e as bonecas de cerâmica ritxòkò, que já foram registradas como Patrimônio Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Através dessas bonecas, se identificam mitos, dinâmicas sociais, gêneros e faixas etárias. Então, elas são um item formativo e educativo para as crianças Inỹ Karajá sobre a própria cultura”, conta Indyanelle.

Segundo aponta Indyanelle, são as mulheres mais velhas que produzem as bonecas de cerâmica, e nelas, os vestires femininos dessa etnia são devidamente representados. Por essa razão, para Tuinaki Koixaru, a exposição foi importante para mostrar a um público amplo quais são os itens usados nas aldeias do seu povo. No entanto, isso varia de acordo com a faixa etária, pois há indumentárias específicas para cada ciclo da vida, como por exemplo, se já teve a primeira menstruação ou não, ou ainda, se é solteira ou casada, além das diferenças nos modos de vestir por gênero.

“A gente foi escolhendo os itens que tinham no Museu Goiano Professor Zoroastro Artiaga e dentro desses itens, a gente foi colocando os nomes, para o que serve e como a mulher usa”, informa a curadora. Segundo ela, esse aspecto pedagógico é muito positivo porque possibilita ao público compreender questões muito específicas dessa etnia.

Ainda segundo a curadora, a experiência lhe permitiu também se aprofundar nas histórias de cada item usado tradicionalmente por essas mulheres. Ela explica que na sua cultura, existe essa divisão entre as indumentárias que são usadas somente pelas meninas ou pelos meninos. “Na minha cultura, os cocares são para os homens, mas há apenas um cocar que as mulheres usam chamado de Lòrilòri. Para os homens são cinco cocares, um para cada fase da vida”, relata.

Como uma identidade em transformação, da mesma forma que ocorre em diversas etnias indígenas, a cultura Inỹ Karajá passou por processos de assimilação de novos hábitos e costumes, o que acaba por também influenciar nos seus modos de vestir. Atualmente, seus vestires são plurais, somando aspectos tradicionais e contemporâneos.

“Os vestires plurais seriam em todas as formas, tanto no sentido do que era tradicional e com o tempo deixou de ser usado por diversos motivos, como o que resultou dessa interrelação cultural entre indígenas e não-indígenas. É realmente pensar de maneira panorâmica e abrangente, os seus modos de vestir das mais variadas formas, o que mudou a partir da cultura, que é viva”, contextualiza Indyanelle.

Formato digital favorece difusão de conhecimento tradicional

No espaço digital, é possível participar de atividades educativas como os jogos desenvolvidos com exclusividade para a exposição. Num deles, o público pode imprimir o desenho de mulheres Inỹ Karajá em PDF e vesti-las com as indumentárias específicas para cada um dos seus ciclos de vida. Isso porque essas mulheres se vestem de forma distinta em cada faixa etária e de acordo com as suas funções sociais. A ideia era de que esses materiais também pudessem ser usados didaticamente por professores do ensino básico e médio.

O formato da exposição possibilita a ampliação do acesso a esse conteúdo. Não por acaso, mais de 1.000 visitantes de diversos estados brasileiros e de outros 22 países já acessaram a plataforma digital. “A gente pôde, de alguma forma, mostrar um pouco sobre a nossa cultura. Espero que os leitores tenham gostado também da exposição, porque essa é uma forma de ensinar e aprender”, conclui Tuinaki Koixaru com otimismo.

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