“Algumas pessoas foram contaminadas. E eu disse a ela: ‘Ruth, você tem o laudo do médico que diz que você é do grupo de risco e esse laudo tem validade por mais 20 dias’. Mas não adiantou, ela tinha medo de perder o seu trabalho. Exigiram que ela voltasse. Mas por quê? Eu perguntava e ela respondia: ‘Se eu não voltar, eles vão me mandar embora!’”

Durante uma semana, Nely se segurou para não falar sobre a morte da irmã, a pivô Ruth, campeã mundial de basquete. Mas na manhã desta terça-feira, exatamente uma semana após o enterro, ela resolveu desabafar. Ligou para meu celular e disse que sua Ruth só ficou com Covid porque tinha medo de perder o emprego na Secretaria de Esportes, Juventude e Lazer da cidade de Três Lagoas.

“Todos sabiam que ela fazia parte do grupo de risco: tinha diabetes e pressão alta. Tinha inclusive um laudo médico que a liberava do trabalho em virtude da pandemia. Mas na Sejuvel exigiram que ela voltasse ao trabalho”, conta emocionada Nely Cardoso de Paula, ainda inconformada com a partida da irmã aos 52 anos.




“A última conversa que tive com ela ainda me machuca o coração. Parece que a vejo aqui no quintal de casa, aqui no bairro de Santa Júlia, me dizendo que no trabalho tinha um colega com Covid. E eu falei a ela: ‘Mas por que ele está indo trabalhar?’ E ela me respondeu: ‘Pelo mesmo motivo que eu vou. Ele está com medo de perder o emprego’”.

Nely prossegue: “Algumas pessoas foram contaminadas. E eu disse a ela: ‘Ruth, você tem o laudo do médico que diz que você é do grupo de risco e esse laudo tem validade por mais 20 dias’. Mas não adiantou, ela tinha medo de perder o seu trabalho. Exigiram que ela voltasse. Mas por quê? Eu perguntava e ela respondia: ‘Se eu não voltar, eles vão me mandar embora!’”

“Não me conformo. Era para ela ainda estar viva aqui com a gente. Ela se cuidava direito, não saía de casa, não desobedecia as regras de segurança, não ia para balada como pessoas maldosas acabaram falando. Ela foi contaminada lá dentro do trabalho. E por isso estou revoltada. Fiquei quieta até agora. Mas isso é só um desabafo de irmã. Podem me ameaçar agora, podem até me matar, mas eu fico aliviada de contar a verdade.”

“E quero dizer que ela foi muito bem tratada no hospital, o plano de saúde cobriu tudo. Foi feito tudo dentro do possível para salvá-la. Isso também precisa ficar claro. Outra coisa: a prefeitura não fez nada com relação ao enterro. E esse é outro assunto que foi resolvido pelas amigas de basquete dela. Elas ligaram, se colocaram à frente, fizeram contato direto com a funerária. Pagaram as despesas.”

Aqui entra um parênteses no desabafo de Nely. Ruth era pivô, atleta. Não havia no momento um caixão apropriado. O túmulo também ficou pequeno. E o jazigo custeado pelas amigas do basquete não pôde ser utilizado: ficou pequeno demais. “O próprio pessoal da funerária ficou desesperado. O caixão foi conseguido numa cidade vizinha, mas levariam algumas horas para arrumar o jazigo. E no momento arrumaram um terreno da prefeitura no próprio Cemitério Municipal e ela foi provisoriamente enterrada lá. Daqui a três anos passaremos os ossos para o jazigo. No momento, não penso em exumação. Deixe ela quietinha lá. Já sofremos muito.”

Há um outro assunto que incomoda a família. “Já houve comentários de que vão colocar nome da Ruth em uma praça ou uma rua da cidade, mas nós não vamos permitir. A vida de Ruth foi o esporte, e homenagem só se for em alguma localidade esportiva. O negócio dela é o esporte. É preciso que saibam que estamos tratando de um ser humano que divulgou o nome da cidade, que amava Três Lagoas, que amava o seu trabalho. E que era amada pelo povo da cidade. Não estão tratando com as capivaras que vivem na Lagoa, estão tratando com seres humanos.”

Nely diz também que a cada eleição municipal Ruth ajudava em campanhas de vários candidatos e a promessa sempre era a mesma. “Se ganhasse, o candidato prometia realizar o sonho de minha irmã. Aqui em casa, ela escrevia projetos de esportes para tirar as crianças das ruas da cidade. Mas depois da eleição as promessas eram esquecidas e ela rasgava tudo de tristeza.”

“Quando ela morreu, perguntei na Câmara Municipal se iriam fazer algo por ela. Disseram que ela não poderia ser velada na Câmara, por causa da pandemia. Vão fazer alguma homenagem? Não disseram nada. Enfim, puseram uma assistente social que ficou de me ligar mais tarde… E até hoje estou esperando.”

Os pertences de Ruth foram devolvidos pelos funcionários da Sejuvel. “Troféus, medalhas e fotos.” Conquistas que ela alcançou ao lado de sua turma da Seleção Brasileira de Basquete nos Jogos Pan-Americanos de Havana, na participação na Olimpíada de Barcelona e a medalha de ouro do Mundial da Austrália, em 1994. “À técnica Maria Helena, à Alessandra e demais amigas, a família tem agradecimento eterno.”

Ainda emocionada, Nely, que é empregada doméstica e tem 50 anos, me disse ao se despedir: “Era só isso que eu queria dizer: minha irmã poderia estar viva. Poderia estar aqui comigo!”