O recente incidente em que, num ato político de Lula junto a Guilherme Boulos, o hino nacional foi cantado tendo sua letra alterada para atender os desejos dos defensores do uso da linguagem neutra acabou por gerar mais um problema desnecessário para o campo popular em seu enfrentamento com as forças neoliberais de extrema direita.
Por Jair de Souza*, compartilhado de Viomundo
E ao dizer que se tratou de um embate desnecessário eu quero enfatizar que se trata de uma temática onde a esquerda popular não tem quase nada a ganhar com a questão, mas muito a perder.
Sábado, 24/08, Campo Limpo, Zona Sul de SP, comício de Boulos com a presença de Lula, o identitarismo deu péssimo: ao cantar o hino nacional, a intérprete usou a forma não binária; em vez da frase “dos filhos deste solo és mãe gentil”, cantou “des filhes”. Foto: Guilherme Correia/Sputnik
É claro que a luta social sempre é travada em todos os âmbitos da existência das sociedades humanas.
Por isso, eu tenho plena consciência de que a maneira como a realidade é retratada também reflete, em boa medida, as formas como as sociedades estão estruturadas.
Assim, que na linguagem corrente de muitos idiomas a generalização costuma ser feita através de formas do masculino é um claro indicio de que, onde isso ocorre, a ideia de supremacia masculina ainda persiste.
Mas, os que se interessam pelo estudo da linguística (e eu devo dizer que me encontro neste grupo) sabem muito bem que as palavras não têm significados petrificados nem eternos.
Isto quer dizer que os termos podem muito bem se dissociarem dos significados com os quais se originaram e passarem a simbolizar coisas bem diferentes, por vezes, até o oposto do que tinham ao surgirem.
É que o que dá significado às palavras não é tanto sua origem etimológica, mas aquilo que o contexto em que são usadas dá a entender.
Só para evidenciar o que está por trás do que tentei expressar no parágrafo anterior, vamos tomar uma expressão ofensiva muito usada entre nós: “filho da puta”.
Quando, por exemplo, estamos dirigindo no trânsito de São Paulo e algum outro motorista nos dá uma fechada, é quase que espontâneo que gritemos ao dito cujo: “Seu filho da puta”. Seguramente, a pessoa à qual dirigimos essas palavras vai perceber de imediato que nossa intenção é ofendê-la.
Porém, vamos imaginar uma outra situação que também costuma ser corriqueira. Encontramos na rua a um amigo a quem muito prezamos e lhe dirigimos a palavra da seguinte maneira: “Puxa, você é mesmo um filho da puta, né? Eu contava com sua presença em minha festa de aniversário e você não apareceu.”
Seguramente, o uso que fizemos da expressão nesta oportunidade, em lugar de ofender, vai transmitir ao destinatário a certeza de que nutrimos por ele um grande afeto.
Tanto assim que apelamos para uma construção de grande peso ofensivo como maneira de ressaltar nossa estima.
Então, é isso mesmo o que eu quero deixar claro: as palavras só adquirem significado a partir do contexto em que estão inseridas.
É por tal motivo que eu considero que é muito mais importante travar a luta real por aquilo que consideramos justo do que darmos ênfase quase que somente à maneira como a expressamos verbalmente.
Ou seja, para mim, vale muito mais travar a luta pela conquista real de um direito do que meramente expressá-lo através da linguagem.
Assim, eu tendo a valorizar mais aos que lutam efetivamente para que em nossa sociedade haja menos discriminação em razão de diferenças de gênero do que os que o fazem quase que exclusivamente atendo-se à linguagem.
Estendo esta minha visão a outras das questões relacionadas com as pautas identitárias.
Por exemplo, muito mais do que aspirar a ver pessoas de pele negra ocupando postos de mando em nossas sociedades, eu prefiro me deparar com gente que defende que os negros, índios, etc. possam ter condições de vida que lhes possibilitem crescer e progredir da mesma maneira que os grupos tidos como não discriminados.
Não me parece para nada satisfatório que se tenha a crença de que por termos negros ocupando altos cargos nos principais aparelhos de força de uma sociedade se conclua que há ali justiça e não discriminação de cunho racista contra os afrodescendentes.
Quanto a isto, vamos recordar que o número um da principal máquina de morte do mundo (Secretário de Defesa e Chefe do Pentágono estadunidense) é Lloyd Austin, cujas pele negra e feições afrodescendentes estão estampadas na cara e não têm como não serem notadas logo à primeira vista.
Contudo, alguém poderia dizer que os negros estadunidenses já alcançaram igualdade de tratamento e gozam de respeito e consideração semelhantes aos dos brancos nos Estados Unidos?
Duvido que apareça alguém que de boa fé sustente que sim.
Portanto, em resumo, creio que é muito mais importante lutar por alcançar as metas que de fato possibilitem a transformação para melhor da vida de todos os que são discriminados e marginalizados nestas sociedades capitalistas em que estamos inseridos.
As expressões linguísticas decorrentes das transformações que almejamos virão na medida em que as lutas reais forem sendo travadas e nossas vitórias forem sendo obtidas.
A linguagem pode retroalimentar a luta pelas transformações da realidade, mas não pode substituí-la, pois é em essência um reflexo da sociedade, e não ao contrário.
*Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.