Jair de Souza: Lula, a democracia relativa, os meios de comunicação capitalistas e a luta de classes

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Lula, a democracia relativa e a luta de classes

Por Jair de Souza*, compartilhado de Viomundo




29 de maio de 2023, Brasília (DF): encontro dos presidentes Lula, do Brasil, e Nicolás Maduro, da Venezuela, para uma reunião bilateral, no Palácio do Planalto. Foto: Ricardo Stuckert/PR

Estão causando furor entre os representantes da mídia corporativa (proprietários e serviçais) as recentes declarações sobre a democracia feitas por Lula durante uma entrevista dada à Rádio Guaíba, de Porto Alegre.

Ao se referir à Venezuela e dizer que a democracia é uma questão relativa, Lula transgrediu os limites que os controladores dos meios de comunicação capitalistas traçaram com o objetivo de isolar o regime venezuelano e impedir sua sobrevivência.

Com isso, estão colocando em prática um plano semelhante ao que já vêm aplicando contra Cuba há mais de 70 anos.

Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer que, do ponto de vista de quem defende os postulados do grande capital sediado nos centros imperialistas do planeta, assim como para os que lhes são associados nos países periféricos, o significado que as forças chavistas vem atribuindo à democracia na Venezuela realmente representa um mau exemplo e, por isso, deveria ser extirpado o mais rapidamente possível.

Aqui no Brasil, os comunicadores a serviço dos órgãos alinhados aos interesses das classes dominantes estão furiosos por Lula não ter se referido expressamente ao governo venezuelano como antidemocrático.

Citam como exemplo patente de arbitrariedade, entre outras coisas, o fato de a líder procapitalismo da Venezuela, Maria Corina Machado, ter sido declarada inelegível. Esta é a alegação mais recente que essa gente está levantando para reforçar suas desqualificações contra o regime venezuelano.

No entanto, depois de ter apoiado todo o processo lavajatista que redundou na chegada do bolsonarismo ao comando do Estado, essa mesma mídia acabou por dar-se conta de que, sob o comando de Bolsonaro, os objetivos estratégicos das classes que representa corriam sérios riscos.

Embora as diretrizes econômicas de viés neoliberal adotadas pelo ministro Paulo Guedes estivessem sempre em total sintonia com as aspirações dos setores hegemônicos dessas classes dominantes cuja vozeria é expressada por nossa mídia corporativa, a inabilidade política, a incapacidade cognitiva e a notória imprudência do ex-capitão representavam um fator de instabilidade que representava uma ameaça para a continuidade do processo de apropriação em seu benefício exclusivo da riqueza produzida pelo trabalho coletivo de nosso povo.

Por isso, a decretação da inelegibilidade de Bolsonaro foi compreendida e aceita por quase todos os órgãos procapitalistas.

Até este momento, não se observou nenhuma condenação séria ao julgamento que determinou a proibição de o ex-presidente miliciano voltar a participar em pleitos eleitorais pelos próximos oito anos por causa de sua conduta indevida durante a reunião em que convocou embaixadores estrangeiros para criticar nosso sistema eleitoral.

Porém, se fôssemos comparar as razões aludidas para a condenação de Bolsonaro com as que se aplicaram no caso de Maria Corina Machado na Venezuela, chegaríamos à inevitável conclusão de que, lá, os crimes cometidos foram ainda mais graves e as justificativas para a aplicação da inelegibilidade foram muito bem fundamentadas.

Maria Corina Machado estava umbilicalmente vinculada ao governo fantoche de Juan Guaidó, aquele que os Estados Unidos e os demais países imperialistas criaram para tentar derrotar o presidente que o povo venezuelano tinha escolhido nas urnas.

Mas, esse fato não seria nada em vista dos outros crimes que foram perpetrados por aqueles que o imple


Basta lembrar que quase todos os recursos do Estado venezuelano que estavam depositados em bancos da Inglaterra foram confiscados (roubados) e transferidos para o controle da quadrilha de Juan Guaidó e Maria Corina Machado.

Além disso, a grande empresa distribuidora de derivados de petróleo que a Venezuela mantinha nos Estados Unidos (CITGO) para possibilitar a distribuição de seus produtos nos Estados Unidos foi confiscada e entregue à gangue controlada por Juan Guaidó e Maria Corina Machado.

Em consequência do roubo de recursos vitais para o funcionamento do aparelho de Estado na Venezuela durante o período da pandemia de COVID-19, todo o povo venezuelano padeceu com mais intensidade os graves efeitos que essa nova enfermidade acarretou.

Enquanto as maiorias humildes sofriam os rigores causados pelo coronavírus, Juan Guaidó, Maria Corina Machado e seus associados dilapidavam os recursos públicos para a arquitetação de seu plano de comandar a nação a despeito de não terem sido os escolhidos para esse fim.

Se Maria Corina Machado tivesse se envolvido em projeto semelhante nos Estados Unidos, na Inglaterra, ou em qualquer dos outros países do bloco imperialista, ela muito provavelmente não teria sido declarada inelegível. Ela simplesmente teria sido condenada à morte por alta traição à pátria.

Vamos recordar o que está acontecendo com Julian Assange tão somente por ele ter revelado ao mundo as provas dos crimes de guerra praticados pelas forças invasoras dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão.

Porém, as linhas editoriais de nossos meios de comunicação controlados pelo grande capital nunca puseram os Estados Unidos em suas manchetes como sendo um país evidentemente antidemocrático.

E por que não?

Exatamente por aquilo a que Lula fez referência na já mencionada entrevista: a democracia é sempre uma questão relativa.

Não existe a tal democracia absoluta, aquela democracia que serve igualmente para todo mundo, para todos os setores da sociedade. A democracia é, sempre foi e sempre será, dependente da correlação de forças existentes em cada país onde esteja sendo praticada ou escamoteada.

Em um artigo que publiquei em agosto de 2022 (leia aqui), procurei mostrar como havia visões e percepções muito diferenciadas entre aqueles que estavam empenhados na luta para a derrota do governo bolsonarista que por então infernizava nosso país.

Todos nós enfatizávamos nosso desejo de defender a democracia e a necessidade de derrotar o bolsonarismo. Mas, conforme tentei deixar evidente naquele texto, nem todos nutríamos o mesmo entendimento do que seria essa democracia pela qual dizíamos estar batalhando.

Havia grupos de pessoas cuja oposição à gestão bolsonarista se devia a que o comportamento desordenado e intempestivo de seu comandante afetava negativamente a previsibilidade que o mercado requer para que seus negócios possam ser viabilizados com perspectivas de futuro.

Em outras palavras, um bom número de empresários estava descontente com o bolsonarismo porque com ele seus negócios não contavam com as garantias necessárias para assegurar boa lucratividade aos investimentos que fossem feitos.

Sim, para esses empresários a principal importância da democracia é criar condições para que eles possam investir sem correr risco nenhum.

Parece contraditório o que acabei de dizer? Sim, mas é exatamente isto o que quis expressar.

Em outras palavras, éramos e somos os que vemos validade na democracia desde que ela sirva para ajudar-nos a eliminar as desigualdades e possibilite que um maior nível de justiça social seja alcançado.

Para os que assim pensamos, a democracia não é uma formalidade. Não existe igualdade de direitos entre um bilionário e um mendigo, por mais que se diga que todos são iguais perante a lei.

Não existe justiça e meritocracia quando os filhos de pobres precisam disputar espaços com os oriundos de famílias acaudaladas.

Como um jovem que teve de começar a trabalhar quando ainda era criança vai poder disputar uma vaga para algum cargo administrativo de prestígio com aqueles que sempre receberam tudo o necessário para sua devida preparação?

Para que as leis possam ser justas e terem aplicabilidade geral é preciso que haja igualdade de condições entre os que vão estar submetidos aos dispositivos legais.

É claro que as classes dominantes e todos aqueles que defendem suas posições não gostam da visão de democracia que acabei de expor.

Para nós, para que haja democracia de verdade, essa democracia precisa amparar aqueles que partiram de condições precarizadas.

Nenhum regime pode ser democrático num sentido que reflita os interesses das maiorias se não levar em consideração que os mais fragilizados precisam ser amparados para que possam ser tratados em pé de igualdade com os detentores de privilégios advindos de sua situação econômica.

É por isso que as classes dominantes e seus bajuladores só podem aceitar a democracia desde que ela não afete sua realidade concreta, essa realidade que lhes garante que continuarão a usufruir das riquezas que as maiorias produzem.

Não foi à toa que toda essa gente se sentiu ultrajada com a concepção de relatividade que Lula aplicou à democracia.

A democracia nunca eliminou a luta de classes, inclusive na hora de sua própria interpretação.

*Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

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