JN humanizou um candidato homofóbico. Agora, patético, naturaliza o governo estúpido

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Por Ângela Carrato e Eliara Santana*, publicado em  Viomundo – 

“O Brasil normalizou os absurdos”.

A frase lapidar é de ninguém menos que o ministro do STF Gilmar Mendes e foi dita aos jornalistas da Globo News (que obviamente não gostaram).

Ângela Carrato e Eliara Santana: JN humanizou um candidato homofóbico. Agora, patético, naturaliza o governo estúpido

O que ele, sem titubear, joga na cara do país é que, desde 2015, com a vergonhosa parceria mídia-judiciário, o Brasil tem assistido a uma naturalização de absurdos, um atrás do outro.

Naturalizar, em termos do discurso midiático, significa dar um verniz de normalidade ao turbulento contexto sociopolítico.




Significa construir representações para moldar a percepção das pessoas em relação aos acontecimentos.

Significa homogeneizar as opiniões dos grupos, como sinaliza o linguista francês Patrick Charaudeau.

Essa homogeneização, segundo ele, cria uma opinião pública pronta a aceitar verdades indiscutíveis.

Ou, dito de outra forma, a naturalização do mundo colocada em marcha pelo JN nos faz pensar que as coisas acontecem por que têm de acontecer, portanto, tudo está no lugar certo.

Pelos imaginários sociodiscursivos construídos pela TV, cria-se uma voz coletiva (homogeneizada) que carrega “a verdade”.

Com Luiz Inácio Lula da Silva, o então principal candidato, preso e o combate à grande corrupção (“verdade 1” amplamente difundida) em pleno vigor com a Operação Lava Jato, era necessário viabilizar um nome para fazer frente à “ameaça vermelha” (que “sempre” paira sobre o Brasil).

Uma vez que o candidato ao centro, o preferido pela elite, não emplaca, a adesão ao segundo lugar é quase imediata.

Do ponto de vista da narrativa construída e consolidada pelo Jornal Nacional (que teve adesão de toda a mídia comercial, como já abordado aqui no Viomundo em outros artigos nossos), começa a segunda rodada (a primeira foi um impeachment da presidenta Dilma baseado em pedaladas, algo que nem mais é comentado) desse recente processo de naturalização ou normalização de absurdos com a campanha presidencial de 2018.

Dando nome aos processos, esse é o da HUMANIZAÇÃO DE UM CANDIDATO HOMOFÓBICO.

Como já tratado também aqui em outros artigos, o JN, principal noticiário da Rede Globo, tratou de transformar uma pessoa com credenciais de homofobia, racismo e misoginia em um candidato absolutamente “normal” e participante do campo democrático.

Ao longo das edições diárias do JN, nunca foram abordadas, por exemplo, as declarações de Jair Bolsonaro, seus gestos, a propagação da história mentirosa do Kit Gay.

Assim, retomando alguns movimentos nessa primeira construção, temos:

* O JN desconsiderou as denúncias feitas pela Folha de S. Paulo do uso de WhatsApp pela campanha de Bolsonaro, antes do segundo turno das eleições.

* Nunca retomou ou problematizou a fala dele no julgamento do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, quando o então deputado ressaltou ostensivamente a memória de um torturador.

*Nunca houve uma referência clara ao posicionamento político do candidato — extrema-direita.

Era simplesmente um candidato como qualquer outro (vale lembrar que a imprensa estrangeira fazia essa distinção).

Se a esquerda é lembrada a todo o momento, por que o contrário não ocorre?

* O silenciamento em relação aos aspectos negativos imperou todo o tempo: o Jornal Nacional nunca colocou em pauta o passado misógino, homofóbico e racista do candidato.

Nunca teve repercussão, entre outras pérolas, a fala “prefiro um filho morto a um filho gay”, num país intolerante cuja população LGBT+ sofre absurdamente com a violência.

*Apesar dos indícios, nunca houve menção por parte do JN, durante a campanha, de qualquer investigação ou necessidade de investigar as ligações perigosas de Bolsonaro e dos filhos, diferentemente do que sempre foi feito com o PT e demais integrantes do campo da esquerda.

* No dia das manifestações do #elenão, o Jornal Nacional trouxe uma entrevista de oito minutos com Bolsonaro, no avião que o levava de volta ao Rio na saída do hospital.

Carregada de emoção, a entrevista mostrou um candidato choroso, emocionado e com saudades da filha (a mesma que ele havia chamado de “fraquejada”.

*Outro ponto marcante do silenciamento com viés negativo foi em relação às propostas do então candidato — nunca houve um único debate sério em relação a elas.

*O JN aceitou prontamente as desculpas esfarrapadas de Bolsonaro para o não comparecimento aos debates.

Em 2006, quando Lula não compareceu a um debate no primeiro turno, a cadeira ficou vazia, e a câmera focalizou isso a toda hora.

*O fato de Bolsonaro, deputado há 30 anos, nunca ter aprovado UM projeto jamais foi explorado pelo JN.

Após a eleição de 2018, segue em curso a outra parte: NATURALIZAÇÃO DE UM GOVERNO PATÉTICO.

Mais uma vez, cabe ao JN a missão de normalizar para a opinião pública as bizarrices de um governo estúpido, cujo presidente não se envergonha de se vestir de astronauta para celebrar a independência dos Estados Unidos!

Mas nada disso importa, porque o relevante é firmar no imaginário social a ideia de este é um governo normal num país normal que enfrenta problemas normais.

Porque, como ator estratégico que sempre se posicionou em campo, o JN (Globo) sabe que a destruição do governo Bolsonaro significa a pavimentação do retorno da esquerda ao poder.

E sabe também que, apesar da bizarrice patética, esse governo tem apoio de um baixo clero e de outras forças que têm projeto de poder.

Alguns momentos recentes no contexto político/econômico e o comportamento do JN em relação a eles mostram os caminhos da construção dessa nova narrativa:

1. Economia brasileira está em declínio: o tom da matéria do dia 30/05, quando anunciou-se o PIB do trimestre, foi bastante sóbrio, sem tom alarmista sinalizando o perigo de recessão.

A abordagem sobre economia se restringiu aos três minutos da matéria, sem desdobramentos. O cenário ruim não é explorado, e a modalização ocorre sempre.

As notícias sobre economia se restringem ao enquadramento numérico — há o famoso quadro projetado, noticias bem curtas (não chegam a um minuto), sem voz de especialistas, apenas números secos, como um relatório.

Importante notar que o aspecto ruim da economia não é potencializado, apenas descrito.

A voz de autoridade é a do ministro da Economia, Paulo Guedes, que aparece em momentos estratégicos e sempre dando boas notícias.

A perspectiva cada dia pior da economia brasileira é sempre neutralizada na estrutura da grade do JN: há matérias com viés positivo após uma com viés negativo.

Um exemplo do dia do anúncio do PIB do trimestre, com retração (30/05):

“O ministro da Economia fez questão de afastar medidas mágicas”, sendo a solução, portanto, a implementação das reformas, pois, na fala da repórter, “o sistema de pagamento de aposentadorias está em colapso”.

Seguem mostrando que “o brasileiro está vivendo cada vez mais”.

E o “rombo” estimado para a Previdência é R$ 218,1 bilhões, o que representa 2,9% do PIB.

O que significa dizer que o rombo da Previdência é o responsável pela queda no PIB, com projeções piores a cada ano. Entra Guedes, a voz de autoridade:

“Nós temos de começar pelas coisas mais importantes, o voo da galinha nós já fizemos várias vezes — você faz uma liberaçãozinha aqui, baixa artificialmente os juros para reativar a economia. Aliás, foi assim que o último governo caiu — o último governo caiu exatamente com irresponsabilidade fiscal, com juro baixo, tentando artificialmente estimular a economia. Nós não vamos fazer truques nem mágicas, vamos fazer as reformas sérias, com fundamentos econômicos. E, naturalmente, isso acontecendo, aprovada a reforma da Previdência, o horizonte de investimentos clareia”.

Seguindo no tom de otimismo, a matéria informa que o ministro também estuda liberar o FGTS para o trabalhador, sendo que “a medida tem potencial para injetar até 20 bilhões na economia”.

Mas o estímulo só não resolve — é necessária uma “agenda de reformas”.

2. Vazamento The Intercept: o JN adota a postura de colocar em dúvida os vazamentos trazidos pelo site.

Primeiro, levanta-se a história do suposto hacker; depois, dissemina-se a ideia de crime cometido pelo The Intercept ao usar material “hackeado”.

As mensagens são apresentadas, sem alarde, sempre citando o site, numa tentativa de blindagem a Moro.

Não se estabelece ligação com o governo Bolsonaro.

Na semana em que a revista Veja e o jornal Folha de São Paulo trazem novas denúncias, em parceria com The Intercept, o Jornal Nacional mantém a mesma postura de pretensa imparcialidade, mas numa blindagem explícita a Moro e a Dallagnol, que aparece em longo vídeo, no JN, refutando as acusações.

O afastamento de Moro, por “questões pessoais”, recebe 27 segundos no JN, no dia 8/07, num tom formal, sem alarde ou maior repercussão.

3. Meio ambiente: há várias críticas internacionais (os dirigentes da Alemanha e da França, Merkel e Macron, sobretudo) ao desnorteio da gestão do meio ambiente, mas isso é relegado pelo jornal a último plano.

Não há abordagem contundente. A questão da liberação de agrotóxicos é tocada tangencialmente, sem relevância.

4. Cresce espaço para os assuntos da editoria internacional e diminui espaço para os de política e economia.

O noticiário é pulverizado. Previsão do tempo também ganha espaço, chegando a contar com mais de 3 minutos em algumas edições.

5. O Presidente não fala com imprensa — usa lives.

Isso não é explorado de nenhuma maneira. Nenhum presidente da República agiu dessa forma em relação à imprensa, sem retaliações.

6. Pauta moral contra o conhecimento (os cortes na educação foram apenas um elemento nessa cruzada).

Bolsonaro desconsidera lista tríplice para reitores de três universidades federais, mas isso não merece destaque, como não merece destaque a inação bizarra do ministro da Educação.

No começo de julho, a menção à decisão de tornar o Enem uma prova virtual recebe meros 27 segundos no JN, sem repercussão.

7. Cocaína no avião presidencial.

No dia em que o militar brasileiro foi detido com 39 kg de cocaína, a voz de autoridade trazida para o comentário foi a do vice-presidente, general Mourão.

O texto em off informa que o militar já acompanhara três outros presidentes, incluindo Dilma Rousseff (com imagens em destaque) e diz ainda que “não é a primeira vez que encontram cocaína numa avião da FAB”, ressaltando que isso ocorreu em 1999.

Não há qualquer ligação explícita com Bolsonaro.

Comentaristas da rádio CBN, do Grupo Globo, como Carlos Alberto Sardenberg e Míriam Leitão, nos dias seguintes, foram além, garantindo que “Bolsonaro não tem nada com isso”.

Afirmações que antecederam, inclusive, a abertura do inquérito sobre o assunto.

E o mais grave: o porta-voz da Aeronáutica, em vídeo, afirma taxativamente que o militar que transportou cocaína só foi incorporado às comitivas presidenciais em 2016, portanto, ele nunca fez parte da comitiva que voava com Dilma Rousseff.

8. Guedes é descolado do governo.

O ministro da Economia não parece fazer parte do governo — ele não é um personagem frequente no telejornal.

Aparece quase como uma entidade, em momentos específicos, como a voz de autoridade a anunciar esforços positivos para a retomada do crescimento.

9. Não há um confronto direto com o governo.

Comparativamente ao que observamos em relação a Dilma e a Lula, as críticas à gestão Bolsonaro são a medidas em geral, sem que haja a famosa “voz” do especialista.

Raramente há uma voz externa a confrontar as medidas do governo. Personagens incômodos são “ocultados”.

No dia 24 de maio, por exemplo, matéria reproduzindo reportagem de O Globo mostra que Fabrício Queiroz pagou a despesa no hospital Albert Einstein em dinheiro.

É mencionada apenas a ligação com o gabinete de Flavio Bolsonaro (e nessa referenciação, Flávio é “o deputado”, não o “filho do presidente”, como ocorria/ocorre com Lula — “amigo de Lula”, “filho de Lula”), o esquema da “rachadinha” também é mencionado, mas outras ligações ou especulações não são feitas.

A única voz externa a conferir autoridade é a do advogado de Queiroz.

10. Lula retorna ao JN no enquadramento criminal.

No dia 6 de junho, o ex-presidente Lula volta ao noticiário do JN, mas não pela carta recebida do Papa Francisco ou pelas várias entrevistas concedidas.

Ele volta fazendo parte do noticiário no bloco criminal. Com a mesma imagem — fundo vermelho, com um tubo de esgoto por onde escorre dinheiro, Bonner anuncia:

“Justiça Federal torna réus o ex-presidente Lula e os ex-ministros petistas Antonio Pallocci e Paulo Bernardo e o empresário Marcelo Odebrecht. O Ministério Público afirmou que a Odebrecht prometeu a Lula 64 milhões de reais em troca da ampliação de um empréstimo do BNDES ao governo de Angola. Na época, a empreiteira tinha um contrato com o país africano. Lula agora é réu em sete processos e foi condenado em duas ações”.

Não há menção, no noticiário, à denúncia feita pelo jornal Folha de S. Paulo de que o ex-juiz Sergio Moro havia grampeado os advogados de Lula, muito menos menção à carta enviada pelo Papa Francisco a Lula ou às entrevistas que ele concedeu a vários veículos.

Nova prisão do ex-ministro de Lula, José Dirceu, tem destaque, e o JN recupera a velha imagem usada nas matérias sobre corrupção no PT — o fundo vermelho com um tubo de esgoto por onde escoa dinheiro.

No dia 24 de maio, a notícia de que o também ex-ministro de Lula, Guido Mantega, e o ex-presidente do BNDES, Luciano Coutinho, se tornam réus recebe a mesma imagem. E depois dos vazamentos, Pallocci é novamente requentado.

Atenção: é muito importante perceber que o discurso direto de Bolsonaro não está sendo levado ao público com frequência.

O recurso utilizado pelo JN é o de mostrar a imagem (sempre nos melhores ângulos) e um locutor reproduz o que Bolsonaro disse, geralmente na forma do discurso indireto (quase sempre na voz de Délis Ortiz).

Não há uma reprodução literal. Como o discurso de Bolsonaro — a fala em si — é sempre grotesco, com muitos erros e pouca conexão, é necessário modalizar para não explicitar a bizarrice do presidente.

A aparição de Bolsonaro é absolutamente controlada — poucas falas diretas, aparições sempre positivas.

Pelo que é mostrado pelo JN, não existe nada, no momento atual, que desabone o governo!

Os exemplos de como o JN tenta naturalizar os absurdos de Bolsonaro e de seus ministros são apenas alguns que selecionamos num universo quase inesgotável que o JN tenta naturalizar.

A essa naturalização pode-se somar a tentativa de criminalizar, sem provas, à base apenas de “convicções” e de denúncias sem provas, Lula e seus auxiliares diretos.

Razão pela qual, para os estudiosos do discurso da mídia, não só Bolsonaro é patético, como igualmente patética é a tentativa do JN de naturalizar o que é, sob todos os aspectos, um absurdo.

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

*Eliara Santana é jornalista, doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.

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