Por Diego A. Manrique, publicado em El País –
Digno e teimoso, jamais pediu uma retribuição por ser o artífice daquela música que colocou o Brasil na primeira divisão do mundo
Tendemos a caracterizar os anos sessenta como a década dos Beatles. Mas costumamos esquecer que também foi o período em que uma sinuosa música brasileira seduziu o mundo inteiro. Tocava em diferentes circuitos e geralmente tinha outro público, mas a bossa nova também revolucionou o planeta. E no comando estava João Gilberto.
Ele contou com parceiros de primeiro nível, como o compositor Tom Jobim e o poeta Vinicius de Moraes, mas eles mesmos reconheciam que aquele sujeito esquivo da Bahia havia domesticado o alvoroçado samba com a batida de seu violão, seu conceito harmônico e sua sigilosa maneira de cantar. Mínimos recursos que encaixavam magicamente com a pobreza dos sistemas de amplificação e as técnicas de gravação do Brasil de fins dos anos cinquenta. Foi um deslumbramento compartilhado por seus colegas de geração e ampliado pelos jazzmen norte-americanos que visitavam o Rio de Janeiro ou escutavam seus discos.
E chegou a Garota de Ipanema, gravada em 1963 em Nova York com o saxofonista Stan Getz. O produtor, Creed Taylor, editou a interpretação numa versão recortada que dava protagonismo à esposa de João, Astrud Gilberto. Um sucesso monumental que despertou os receios de João: aqueles gringos não sabiam diferenciar entre uma aficionada e uma profissional. A relação pessoal já não funcionava: em 1965, ele se casou com a cantora Miúcha, irmã de Chico Buarque.
A vida familiar de João foi tormentosa. Na verdade, tudo o que o rodeava era marcado por suspeitas e equívocos. Embora ele detestasse Stan Getz, os dois voltaram a gravar juntos e fizeram músicas belíssimas. Durante uma estada no México, ele registrou boleros, e o que parecia uma concessão acabou sendo um ato de amor. Mas foi cimentada uma imagem perversa de Gilberto: parecia que ele preferia trabalhar fora do Brasil, ainda que insistisse em explicar que no exterior era mais valorizado e que em seu país suas exigências de som não eram atendidas.
João Gilberto voltou finalmente ao Rio em 1979 e lançou Brasil, um disco esmerado feito com discípulos como Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil. Foi talvez sua última declaração estética, antes de se transformar num ermitão que se apresentava pouco e gravava menos. Seu sentido de justiça o levou a mover uma ação contra a EMI, a gravadora que lançou seus primeiros discos (e ganhou a disputa sobre os direitos autorais). Nos últimos tempos, havia rumores de que ele estava sem dinheiro e brigado com os filhos. Digno e teimoso, jamais pediu uma retribuição por ser o artífice daquela música que colocou o Brasil na primeira divisão do mundo.