Rafael Braga, que trabalhava no centro do Rio, estava próximo à manifestação em junho de 2013 quando foi acusado de fabricar coquetel molotov
Por Raphael Sanz, compartilhado da Revista Fórum
As manifestações de junho de 2013 ocorreram em diversas cidades brasileiras. Enquanto em São Paulo a pauta inicial dos atos girava em torno do transporte público, no Rio de Janeiro os protestos eram contra a realização de grandes eventos, como a Copa das Confederações 2013, a Copa do Mundo 2014 e as Olimpíadas 2016 – os três seriam sediados na cidade maravilhosa. Em 20 de junho daquele ano, uma manifestação puxada pela Frente Independente Popular (FIB) questionava os gastos com os eventos e remoções de comunidades que seriam afetadas por obras.
Rafael Braga não era um militante político. Homem humilde, trabalhava como catador de material reciclável no centro do Rio e morava nas ruas naquele momento. Quando passava próximo de onde ocorria uma manifestação, foi vítima do racismo policial militar e, em seguida, de processos kafkianos.
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Ele foi preso por um crime inexistente: portar Super Candida e Pinho Sol. Na delegacia, os policiais apresentaram garrafas de plástico com alguns pedaços de pano e alegaram que Braga estaria preparando coquetéis molotov.
O antropólogo e sociólogo Isaac Palma Brandão, autor do livro “Desarquivar: a presença do racismo no caso Rafael Braga”, deu uma entrevista para o PonteCast – podcast do site Ponte – em janeiro de 2020, em que explica as alegações da acusação e da defesa.
“Não se trata de um militante acusado injustamente. Era uma pessoa que estava em contexto de manifestação e não tem um histórico de militância. A acusação então alegou que, justamente por não ter esse histórico de militância, ele seria uma pessoa de má índole, que iria para as manifestações apenas para causar o caos. Já a defesa afirmou que ele não estava na manifestação e não tinha por que praticar qualquer violência”, explicou.https://968a108bc058ffbdb37102add9b6b5a5.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-40/html/container.html?n=0
Coquetéis molotov não são feitos de garrafas de plástico, afinal é a quebra da garrafa de vidro espalhando o material inflamável que causa o efeito desse armamento caseiro. Além disso, Pinho Sol e água sanitária não são substâncias inflamáveis, nem mesmo combinadas. Um laudo do esquadrão antibombas da Polícia Civil afirmou à época que eram “ínfimas” as possibilidades de se produzir um coquetel molotov com o que o jovem de então 25 anos portava. E desde então sua vida é marcada por idas e vindas do sistema penitenciário.
Condenado a cerca de cinco anos de prisão ainda em 2013 pela kafkiana acusação de portar Pinho Sol, Braga teve seus recursos negados por diversas vezes, até que em outubro de 2014 conseguiu uma progressão para o regime semiaberto e um emprego em escritório de advocacia; mas essa melhora de condição não durou muito. Após aparecer em uma foto na internet ao lado de uma pichação política, a Justiça determinou que ele voltasse à prisão. Em fevereiro daquele ano foi criado o movimento “Libertem Rafael Braga”, rede de apoio que foi o objeto de pesquisa de Isaac Brandão, ao lado de toda a situação jurídica, política e midiática que se construiu no entorno da imagem dele e como isso teve implicações raciais e políticas muito complexas.
Em dezembro de 2015, Rafael Braga conquistou nova progressão para um regime aberto e foi morar com a mãe na região da Vila Cruzeiro, na capital fluminense. Novamente, durou pouco. No mês seguinte, já em 2016, foi detido por policiais militares, que, segundo a defesa do jovem, o torturaram e até o ameaçaram de estupro, para que ele se declarasse como traficante de drogas.
“Durante os meses de abril, maio e junho de 2016, ocorreu a audiência de instrução, dividida em três sessões. Nesses dias foram ouvidos os PMs que abordaram o Rafael, testemunhas de defesa e o próprio Rafael. Durante os depoimentos, por diversas vezes os PMs entraram em contradição entre si e com o que haviam dito na delegacia no momento da prisão. O DDH pediu durante essas audiências cinco diligências: GPS da tornozeleira (que Rafael tinha de usar durante o regime aberto); nome do engenheiro e da empresa de engenharia os quais, segundo os PMs, recebiam escolta na favela no dia da prisão; imagens da câmera externa da viatura; imagens da câmera interna da viatura; e imagens da câmera da UPP local. O juiz responsável negou todas as diligências e enviou o caso ao Ministério Público, onde o processo se encontrava aguardando as alegações finais de defesa e acusação”, relata em 2017 a página Libertem Rafael Braga, administrada pela rede de apoio à sua causa montada logo que o caso veio a público.
Em 20 de abril de 2017, Rafael Braga foi condenado a 11 anos e três meses de prisão pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro por tráfico de drogas e associação ao tráfico. Como “tráfico” entenda-se algunss gramas de cocaína e maconha encontrados com ele em 12 de janeiro de 2016 na Vila Cruzeiro, um fato que gera enorme discussão, dado o histórico de montagens e armações nessa saga de criminalização do jovem. A defesa acusa os policiais militares de “plantarem” a droga.
“Mandaram eu abrir a mão, botaram o pó na minha mão, e me forçaram a cheirar”, declarou Rafael Braga ao Ponte ainda em 2016.
Manifestação pela libertação de Rafael Braga
Em resposta a essa situação, uma série de protestos foram chamados em algumas capitais pedindo sua libertação. Quatro dias após a condenação, alguns movimentos sociais, em especial setores do movimento negro de São Paulo e grupos que discutem questões relacionadas à segurança pública e ao sistema prisional, organizaram uma manifestação na capital paulista para pedir a libertação imediata de Rafael. O ato foi registrado por este jornalista à época.
“Como podemos ver um avião com centenas de quilos de pasta base não ter dono, e uma porçãozinha pequena de droga como a que implantaram no Rafael Braga fazer o juiz vê-lo como traficante? Só o racismo explica uma coisa dessa. Isso é inaceitável”, desabafou Débora Silva, militante das Mães de Maio – grupo de mães que reivindicam justiça para os casos dos seus filhos assassinados em 2006 por policiais militares em São Paulo, na eclosão do histórico confronto entre o PCC e o estado.
Cerca de 500 manifestantes marcharam naquela noite do vão do Masp até o escritório da Presidência da República em SP – próximo da esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta. A caminhada de poucas quadras levou cerca de duas horas e meia para ser realizada.
Luka Franca, da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, afirmou que a sentença de Rafael Braga foi um “baque gigantesco”. “O movimento já vinha acompanhando o caso do Rafael Braga desde 2013 e, quando sai essa sentença e você olha para toda a história, pode ver o quanto isso é uma perseguição. Ele estava fora da cadeia, com um conselheiro, eles sabiam onde ele estava e montaram uma cilada para o Rafael. E nisso veio o juiz e lhe deu uma sentença de 11 anos sem lembrar que o crime por que ele fora condenado pela primeira vez é um crime inexistente. Ou seja, é uma sequência de absurdos que só tem uma explicação: o sistema racista está nos dizendo aos negros onde é o nosso lugar se estivermos na hora errada no lugar errado ou se estivermos usando a nossa voz para falar alguma coisa que esse sistema não quer que seja dita”, declarou.
Em setembro de 2017, Rafael Braga finalmente saiu da prisão pelo agravamento do seu quadro de saúde. Ele estava com tuberculose. Às 16h30 ele deixava o Sanatório Penal de Bangu II para cumprir pena domiciliar, de volta à Vila Cruzeiro, e cuidar da saúde. “Estou muito feliz e quero agradecer a todo mundo que luta por mim”, declarou para o site Ponte.
Em 22 de novembro de 2018, Rafael Braga finalmente foi absolvido da acusação de associação com o narcotráfico e teve sua pena reduzida para seis anos. Em 2020 ele ainda cumpria a pena em regime domiciliar.