Por Luciano Martins Costa, jornalista –
O noticiário sobre a operação policial na favela do Jacarezinho, que causou o maior número de mortes em ações desse tipo no Rio de Janeiro, produz uma avalanche de protestos, que chegam até da ONU, e muitas declarações de apoio que todos sabem de onde vêm.
Mas tudo isso pode ser apenas espuma. Ou, digamos, uma espuma que interessa aos autores da chacina. O jornalismo não deve ser conformista, mas precisa buscar a raiz da indignação.
Todo repórter investigativo tem, ou deveria ter, como principal preocupação, parar no meio da enxurrada de informações, principalmente aquelas produzidas pelas autoridades, e olhar para o lado oposto, para além da fonte.
Parado no meio da correnteza, o que vai ver o jornalista?
Vai ver que a primeira vítima, o agente policial André Leonardo Mello Frias, tombou a poucos metros do veículo blindado que transportava parte da tropa.
Recebeu uma ordem para desbloquear o caminho. Para isso, teria que arrastar um trilho de metal preso a um latão. Tarefa pesada, que exigiria pelo menos mais um homem bastante forte.
O jornalista vai se dar conta de que nenhuma outra das 29 vítimas foi morta naquele lugar.
A maioria morreu a quase três quilômetros dali.
Para não fazer o trabalho de quem ganha com isso, mas apenas aplicando um pouco da Teoria da Complexidade aos fatos conhecidos, basta imaginar que, evidentemente, toda a tropa de 250 policiais foi imediatamente informada de que um colega havia sido morto.
Esse foi o estopim do massacre.
Ainda parado no meio da correnteza de informações e factoides, o jornalista irá pesquisar quem era André Leonardo Mello Frias, e com pouca dificuldade encontrará um homem que entrou para a corporação aos 40 anos, era filho único, tinha um enteado de dez anos e cuidava da mãe doente, da qual era tutor oficial.
Descobrirá também que ele era especialista em armas, tinha enorme dedicação ao trabalho e muito interesse em investigação.
Lá no meio de uma pesquisa que não lhe custará mais do que meia hora, tal repórter vai ficar sabendo que André Leonardo participou da investigação que resultou na apreensão de uma enorme quantidade de armamento pesado no Aeroporto Santos Dumont, em 1o. de junho de 2017.
Eram armas de guerra, modelos AK-47, G3 e AR-10, estavam escondidas em um carregamento de aquecedores de piscina no terminal de cargas da Receita Federal. As armas, contrabandeadas de Miami, se destinavam a milícias cariocas.
Ainda dentro dessa meia hora, o jornalista na contramão dos factoides vai descobrir que, nessa operação de 2017, também estava presente o policial Bruno Guimarães Buhler, amigo de André Leonardo e seu então colega na Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da polícia do Rio.
Buhler, que tinha então 36 anos e um filho pequeno, era considerado um dos melhores atiradores da polícia fluminense.
Como André Leonardo, era um idealista, entusiasta do trabalho policial. Ele foi morto dois meses depois da apreensão das armas destinadas a milicianos no aeroporto Santos Dumont, na mesma favela do Jacarezinho, numa operação de rotina, exatamente como viria a ser vitimado seu amigo: levou um tiro quando saía de um veículo blindado.
Então, dá pra fazer um jornalismo melhor?
Depois dessa paradinha rápida na correnteza dos fatos despejados pela polícia, o repórter vai reler os comunicados oficiais sobre a operação da manhã de 6 de maio de 2021, reproduzidos sem crítica pelas maiores máquinas de informação do País, e vai se dar conta de que não houve uma apreensão de toneladas de cocaína, que as armas apresentadas podem ter tido qualquer origem.
Podem até mesmo ser parte do arsenal de traficantes.
Então, terá diante de si outra hipótese: a de que o monte de cadáveres foi produzido para esconder o corpo de André Leonardo de Mello Frias.
Uma curiosidade: em 2018, depois da morte de Bruno, André Leonardo recebeu na Assembleia do Rio uma menção de louvor e congratulações por sua ação na apreensão das armas, o que lhe deu uma perigosa notoriedade. O autor da moção foi o então deputado Flávio Bolsonaro.