Ricardo Viveiros fala sobre “rastro de sangue nas estradas, cicatrizes nos corações e mentes dos que sobrevivem à perda de parentes e amigos”
Compartilhado de Vida & Ação
“Todos os dias, como se fora religioso e fizesse uma celebração ao divino, logo bem cedo, ele ia até o quarto do filho ausente e se recostava em sua cama. Olhava pela janela e via as árvores, ouvia os pássaros. Então, como por magia, o filho ausente se materializava. E conversavam, riam, olhavam fotos antigas, choravam.
Depois, nem se despediam. Seria triste. Apenas, ele se levantava, olhava em torno e se via no espelho do banheiro pela porta entreaberta. Observava, a cada dia, o envelhecimento no rosto marcado pelo tempo. E sentia ainda mais a falta do filho ausente. Caso alguém lhe perguntasse sobre aquela espécie de ritual, ele abriria um sorriso ao aclarar que não estava ficando senil. É apenas uma tal de saudade…”
O texto acima, ‘O rito do pai ausente’, postado pelo jornalista Ricardo Viveiros, comoveu vários colegas do grupo ABI Casa do Jornalista recentemente no whatsapp. Era a dor de um pai e avô expressa em poesia, sendo transformada em ação de conscientização para o que muitos ainda chamam de “acidentes”, mas que, na verdade, são crimes que acontecem diariamente nas estradas brasileiras, porém, permanecem impunes ou são ridiculamente punidos como “homicídio culposo” (sem intenção de matar) pela Justiça.
Ricardo Viveiros é pai do ilustrador e cartunista Ricardo Filho, que morreu aos 26 anos, junto com Mariana, na época com apenas 6 meses de idade, vítimas de um acidente de trânsito. O motorista atravessou o sinal vermelho na Rua da Cantareira, no Centro de São Paulo, em altíssima velocidade. O caso ficou impune durante 15 anos e o julgamento ocorreu somente em 2011. O culpado foi condenado a apenas um ano e nove meses, mas respondeu pelos seus crimes em liberdade, pois era réu primário.
Para Ricardo, ficou um misto de dor e impotência contra a impunidade – sentimentos expressos no livro ‘O Poeta e o Passarinho’ (Editora Biruta), em que aborda, de maneira poética, o tema da perda. Ao longo dos últimos 27 anos, o jornalista vem fazendo do seu luto uma luta para sensibilizar as pessoas sobre a importância da educação e de penas mais severas para quem infringe as leis de trânsito no Brasil e tira vidas inocentes. A causa torna-se ainda mais necessária nessa época de fim de ano, em que “acidentes” interrompem as festas e a felicidade de muitas famílias para sempre.
Convidamos o ilustre jornalista Ricardo Viveiros, apresentador do programa “Brasil, mostra a tua cara!” na TV Cultura e articulista da Folha de S. Paulo, para escrever um depoimento à seção SuperAção, do Portal ViDA & Ação, sobre sua história e sua luta. Confira e, se possível, compartilhe com outras famílias que perderam entes queridos nas estradas. (Mas é claro que não precisa ter uma vítima na família para se solidarizar com a causa, que é de todos nós, da sociedade brasileira).
Mortes no trânsito: serão apenas acidentes?
Por Ricardo Viveiros*
Antes era apenas após os “feriadões”, agora é a mesma coisa em qualquer época: as estatísticas fortalecem o noticiário da mídia que informa graves acidentes de trânsito, e muitos com motoristas alcoolizados, sem falar dos que correm além dos limites. A falta de educação, reforçada pela imprudência e sensação de impunidade, rouba muitas vidas e deixa um rastro de sangue nas estradas, cicatrizes nos corações e mentes dos que sobrevivem à perda de parentes e amigos.
Há 27 anos perdi um filho e uma neta em desastre de carro na cidade de São Paulo. Ele, 26 anos, ela seis meses. Ricardo, ilustrador e cartunista, era casado e tinha três filhos. Mariana, que morreu com ele, a caçula. Naquela madrugada de 1996, um lacônico telefonema anunciou: morreu Ricardo Filho, morreu Mariana.
O irresponsável que avançou o semáforo vermelho e os matou fugiu, desapareceu. Enterrei filho e neta juntos, um ato contra a lei da natureza. Longos 15 anos depois, após uma luta sem trégua marcada apenas pela busca de justiça, jamais de vingança ou reparação financeira, o criminoso foi encontrado e julgado. Respondeu em liberdade à condenação de apenas um ano e nove meses.
Jamais aceitei a condição de vítima. Sofri tudo o que era possível, cheguei ao fundo do poço e voltei, sobrevivente, para seguir meu destino. Muitos perguntam-me o porquê de relembrar a tragédia que vitimou a nossa família. A resposta é simples: para não acontecer de novo com outras pessoas.
Infelizmente, essa dura realidade continua cada vez pior. Dados oficiais divulgados regularmente indicam que as mortes de jovens em acidentes de trânsito, nos últimos 10 anos, cresceram consideravelmente. O progressivo agravamento da violência no tráfego das vias públicas levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a proclamar 2011/2020 como a Década de Ação pela Segurança no Trânsito.
O número oficial de mortos no Brasil, vítimas de acidentes de trânsito é brutal. Só na cidade de São Paulo até o fim de agosto deste ano, 32.430 acidentes de trânsito foram catalogados no sistema Infosiga, do governo estadual. Trata-se do maior número já registrado para o período desde ao menos 2019 (antes disso, a base de dados sobre as ocorrências está incompleta). Porém, sabe-se que são contabilizados apenas aqueles que morrem no local do acidente, o que nos permite acreditar em mais vítimas.
Irresponsabilidade dos motoristas não é simples acidente, é crime
Mas cabe mudar a realidade que vivemos neste país: o investimento em educação precisa ser, no mínimo, de 10% do PIB (Produto Interno Bruno), as leis de trânsito precisam ser mais rigorosas, as penas maiores e realmente cumpridas. A irresponsabilidade dos motoristas não deve/pode ser tratada pela lei como simples acidente, quando na verdade é crime.
Cabe à sociedade, em sua legítima defesa, lutar por mais educação e pelo cumprimento de procedimentos que garantam os meios de provar a culpa dos motoristas alcoolizados, dos que dirigem de maneira insana. Também é preciso que as penas sejam mais rigorosas e de fato cumpridas. Por você, por nós, pelo futuro do Brasil.
*Ricardo Viveiros, jornalista e escritor, é autor de vários livros, entre os quais ‘O Poeta e o Passarinho’ (Editora Biruta), no qual aborda, de maneira poética, o tema da perda. Apresenta todas as sextas-feiras, às 23 horas, na TV Cultura, o programa “Brasil, mostra a tua cara!”.
Com informações do Blog Sandra Domingues
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