José Carlos Dias por José Carlos Dias: do advogado criminalista à luta contra Bolsonaro

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Opera Mundi reproduz abaixo a nota introdutória de José Carlos Dias ao livro “Democracia e Liberdade”, reportagem biográfica sobre sua trajetória, escrita pelos jornalistas Ricardo Carvalho e Otávio Dias

Por José Carlos Dias, compartilhado de Ópera Mundi




O processo de elaboração deste livro de memórias, que talvez seja melhor descrito como uma reportagem biográfica, começou há mais de sete anos, no começo de 2018, quando comecei a pensar seriamente em me aposentar. Não foi uma decisão fácil, todos os que me conhecem sabem da minha paixão pela advocacia criminal. Durante mais de cinquenta anos bati ponto no escritório do Edifício Itália, no centro de São Paulo, sempre motivado a receber, ouvir e encontrar a melhor maneira de ajudar as pessoas que me procuravam por ter a liberdade ameaçada.

Pensar a melhor estratégia de defesa, pesquisar a jurisprudência, escrever um recurso, falar em audiências e júris, tudo isso era parte do meu dia a dia. E, claro, o convívio sempre prazeroso com meus colegas de escritório e de profissão. No entanto, uma hora teria de pendurar as chuteiras e, quando estava me aproximando dos 80 anos, completados em abril de 2019, cheguei à conclusão de que era chegado o momento de ter mais tempo livre para curtir a família, os amigos, a fazenda e fazer longas viagens com minha mulher, Regina.

Com a perspectiva de ter maior disponibilidade para outros projetos, surgiu a ideia de fazer um balanço da minha trajetória como advogado criminal e militante dos direitos humanos. Foi então que pedi ajuda a Ricardo Carvalho, querido amigo de longa data, jornalista dos bons, autor do livro O Cardeal da Resistência: as muitas vidas de Dom Paulo Evaristo Arns. Ter o biógrafo de um dos brasileiros que mais admiro como meu biógrafo é uma honra e uma imensa alegria.

Era um prazer receber Ricardo semanalmente em casa para responder às suas infindáveis perguntas. Sua risada ecoava pela casa e todos ríamos juntos. O jornalista mergulhou nos arquivos do escritório, juntos abrimos gavetas, reviramos processos, cartas, artigos de jornal, percorremos álbuns de fotografias. Em longas conversas, fomos recordando os momentos da minha vida, que se misturam com os acontecimentos do Brasil desde 1960, quando entrei na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, até os dias atuais.

Formei-me em direito em 1963 e fui diplomado em 1964, no mesmo ano do golpe militar que deu início a duas décadas de prisões arbitrárias, desaparecimentos, torturas e mortes praticadas por agentes do regime. Sobretudo após o Ato Institucional nº5 (AI-5, 1968), quando a repressão e a violência de Estado se instalaram definitivamente no país, minha advocacia ganhou novo rumo. Defendi mais de quinhentos presos e perseguidos políticos, o que me transformou profundamente como ser humano e como advogado criminal.

Até hoje me emociono quando encontro antigos clientes ou seus familiares, com suas memórias de dor e histórias de superação. Horrorizado com as ilegalidades que eram praticadas dia e noite pelo Estado brasileiro, aceitei o convite de Dom Paulo Evaristo Arns para compor, a partir de 1972, a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, onde um grupo de cidadãos e cidadãs se dedicou por anos a revelar à sociedade brasileira, e a denunciar ao mundo, aquilo que muitos se negavam a ver: os crimes bárbaros cometidos nos porões da ditadura.

Considero que presidir aquela comissão de 1979 a 1981, sucedendo o professor Dalmo de Abreu Dallari, terá sido o trabalho mais importante da minha vida. Mas, se sofri com o sofrimento de clientes e amigos, vivi a alegria de poder contribuir com o processo de reconstrução da democracia em nosso país. Entre 1983 e 1986, participei do primeiro governo paulista democrático pós-ditadura, que vivia seus últimos momentos, sob a liderança firme e generosa do governador André Franco Montoro.

Com seu total apoio, implementamos na Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo uma política pioneira de humanização dos presídios. Lembro-me também de participar dos comícios das Diretas Já, ao lado de grandes políticos como Ulysses Guimarães, Mário Covas, FHC, Montoro, Lula e Brizola, entre tantos outros, com meus filhos e filhas, maravilhados com a festa da democracia que já se anunciava, embora a volta das eleições presidenciais ainda tenha demorado alguns anos.

Entre 1999 e 2000, tive nova oportunidade de servir ao Brasil, como ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso. Foram apenas nove meses no cargo, uma gestação, quando iniciamos um processo de fortalecimento da Polícia Federal, de combate à impunidade e de reformas do sistema de justiça e outras mudanças depois continuadas e aprofundadas por meus sucessores, entre eles os saudosos José Gregori e Márcio Thomaz Bastos. De volta à advocacia, após o governo FHC, tive mais 18 anos de intenso trabalho e acompanhei importantes evoluções do direito criminal brasileiro.

Não posso deixar de lembrar também a honra de ter integrado a Comissão Nacional da Verdade (CNV), a convite da presidente Dilma Rousseff, que, entre 2012 e 2014, fez um importante trabalho de investigação dos crimes da ditadura, a fim de garantir o direito à memória, ao reconhecimento das vítimas e à verdade histórica. Não tivemos, no entanto, a cooperação das Forças Armadas, pois a negativa dos militares de abrir seus arquivos, apesar de nossos insistentes pedidos, muito prejudicou o trabalho da CNV.

A maior parte das recomendações feitas pela CNV – presentes no relatório apresentado em 2014, onde consta uma lista de 377 pessoas que violaram os direitos humanos durante a ditadura e o pedido de responsabilização criminal, civil e administrativa de 196 pessoas que permaneciam vivas no momento da conclusão do relatório – não foi seguida pelos governos que tivemos desde então, ou pelo Judiciário. Protegidos pela Lei de Anistia (1979), que julgo que deveria ser revista, os responsáveis pelos sequestros, desaparecimentos, torturas e assassinatos nunca foram julgados nem punidos. Esta impunidade é um estímulo àqueles que se locupletaram durante os governos militares e que permanecem poderosos, aos que os apoiam e às tentativas golpistas.

Quando começamos, Ricardo e eu, nos primeiros meses de 2018, este trabalho de resgate e coleta de dados, eu lhe disse que já estava perto da casa dos 80 anos e, portanto, precisávamos correr, pois tinha contra mim o tempo e a memória. Não podia imaginar que quem sairia de cena seria o Ricardão. E que, no meio do caminho, teríamos uma pandemia e a desastrosa passagem de Jair Bolsonaro pela Presidência da República.

Em outubro de 2018, a sociedade brasileira, fazendo por ignorar as atrocidades cometidas durante o regime militar (1964-1985), elegeu um presidente fascista, saudosista da ditadura e admirador de torturadores. Durante o governo Bolsonaro (2019-2022), houve um ataque sistemático, liderado pelo próprio chefe de Estado e por seus asseclas, ao Estado Democrático de Direito, às instituições democráticas e à democracia.

A vitória de Bolsonaro adiou meu plano de aposentadoria. Instigados pelo sempre incansável Paulo Sérgio Pinheiro, duas dezenas de antigos companheiros da resistência à ditadura e pelos direitos humanos fundaram, em fevereiro de 2019, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns. Entre eles, a nossa centenária presidente de honra Margarida Genevois, cujas palavras carinhosas na contracapa deste livro agradeço de todo coração. Infelizmente, Dalmo de Abreu Dallari e José Gregori faleceram, respectivamente, em 2022 e 2023, deixando saudades.

Alameda Editorial
Democracia e liberdade – A trajetória de José Carlos Dias na defesa dos direitos humanos, de Ricardo Carvalho e Otávio Dias

Contamos também, desde o início, com a contribuição de vários apoiadores. Todos arregaçamos as mangas para impedir que o governo de extrema direita que se alojou no Palácio do Planalto desfizesse a maior conquista de nossas vidas: o retorno da democracia pela qual tanto lutamos. Em agosto de 2019, diante da impossibilidade de Paulo Sérgio continuar à frente da Comissão, devido a exercer importante cargo na Organização das Nações Unidas em Genebra, fui aclamado presidente pelos demais membros, o que muito me orgulhou. Exerci a função por quatro longos e difíceis anos.

Em março de 2020, a pandemia de covid-19 chegou ao Brasil e, ao encontrar um governo negacionista e criminoso, o vírus iniciou sua devastação no país, atingindo a todos, mas sobretudo aos brasileiros mais pobres, mais expostos e fragilizados, como a população negra das periferias de nossas cidades e as comunidades indígenas cercadas por garimpeiros, madeireiros e grileiros, sob o beneplácito do chefe da nação. Mesmo isolados cada um em suas casas, os membros da Comissão Arns continuaram seu trabalho, em reuniões semanais online que frequentemente duravam algumas horas. Não desanimamos e continuamos a lançar mão de todos os instrumentos à nossa disposição para dificultar ao máximo o projeto do então presidente da República de reinstaurar o totalitarismo no Brasil.

No final de 2019, entramos com uma ação no Tribunal Penal Internacional em que acusamos Bolsonaro de crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio dos povos indígenas. Os crimes contra os povos originários só se agravaram durante a pandemia, quando foram expostos à contaminação pela invasão de suas terras, sem que o governo federal tomasse providências para protegê-los e prover assistência médica. A ação segue em análise pelo TPI e tenho a esperança de que o ex-presidente não ficará impune diante da justiça internacional.

Meu compromisso de vida, como advogado e como cidadão, permanece com a busca da justiça e a defesa incondicional dos direitos humanos. Dele não abrirei mão e continuarei lutando enquanto tiver forças. Ainda há muito a ser feito e esta é a luta da qual nos ocupamos hoje na Comissão Arns. Entre os focos de nossa atenção, está o crescente e assustador número de brasileiros e brasileiras em situação de rua, que têm mobilizado a comissão no sentido de buscar alternativas para atenuar o sofrimento dessas pessoas. São Paulo concentra, atualmente, 25% da população de rua de todo o país, uma situação inaceitável.

Alice Vergueiro
A socióloga Margarida Genevois e José Carlos Dias, históricos parceiros da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, no lançamento da biografia do advogado defensor dos direitos humanos

O combate à violência contra as mulheres, que não cessa de crescer, é uma prioridade. Segundo o IPEA, calcula-se que aconteçam no país uma média de dois estupros por minuto.

Os crimes de ódio contra a população LGBTQIA+, estimulados por líderes religiosos fundamentalistas e políticos homofóbicos, também têm crescido, o que nos coloca na vergonhosa posição de um dos países que mais assassina membros desta comunidade no mundo.

Vivemos em uma cultura caracterizada pela violência endêmica. Parte da sociedade brasileira aplaude os excessos da violência policial, que vitima sobretudo os jovens pretos das comunidades periféricas, encurralados entre o poder do narcotráfico, das milícias e da Polícia Militar. A eles, resta o encarceramento em massa. O crime precisa ser enfrentado com inteligência, integração e prevenção. A sociedade precisa entender que o uso excessivo da força pelo Estado eleva o nível da violência, criando um ciclo vicioso que se retroalimenta e não resolve o problema da falta de segurança.

A pandemia dificultou a escrita deste livro, pois Ricardo, como todos nós, precisou se isolar e nossas gostosas interações foram bruscamente interrompidas. Finalmente, em algum momento no primeiro semestre de 2021, já ambos vacinados, pudemos nos encontrar novamente. Lembro-me de uma quinta-feira, no dia 17 de junho daquele ano, em que Ricardo veio almoçar em casa. Meu filho Otávio Dias, também jornalista, estava presente. Eu perguntei a Ricardo: quando o livro fica pronto? Dentro de uns três ou quatro meses, ele respondeu. Três dias depois, no domingo, 20 de junho de 2021, Ricardo Carvalho não resistiu a uma doença aguda, deixando seus amigos inconsoláveis.

Pedi então ao Otávio que o continuasse e que preservasse, dentro do possível, o que já havia sido escrito. E assim foi feito. A estrutura deste livro é a que foi imaginada por Ricardo, com ajuda da assistente de pesquisa Paloma Avendanho. Sob a batuta do Otávio, foram abertas novas frentes de pesquisa, houve o acréscimo de capítulos e outros ajustes. Agradeço a todos aqueles que se dispuseram a conversar com Ricardo e Otávio para esclarecer fatos que vivemos juntos. Vários amigos citados já não estão aqui; lembrá-los trouxe-me deliciosas lembranças e muita saudade.

Minha mulher, meus quatro filhos do casamento com Margarida – Theo, Otávio, Celina e Marina –, e os quatro filhos de Regina – Paulo Eduardo (Padado), Fernando, Otávio e Luísa, com quem convivi desde pequenos –, também se empenharam em rememorar a minha trajetória, assim como os netos Gabriel, Helena, Bento, Rosa, Ana, Joaquim, Luiza e Clara. Os quatro mais novos, Ana, Otto, Lia e Elisa, nos estimularam durante esse longo processo com sua contagiante alegria.

O detalhado processo de revisão contou com a participação do jornalista gaúcho Márcio Pinheiro, da editora Vanessa Ferrari, de minha mulher Regina, do meu filho Theo, do amigo Oscar Vilhena Vieira, que contribuiu com um primoroso prefácio, e, claro, do Otávio. Na etapa final, entraram os editores da Alameda, Haroldo Ceravolo Sereza e Joana Monteleone, a quem agradeço por acreditar e apoiar este projeto. Obrigado também ao grande jornalista Ricardo Kotscho, amigo do peito de Ricardo Carvalho e também meu parceiro na defesa intransigente dos direitos humanos, por ter aceito imediatamente o convite para escrever a orelha do livro. Por fim, agradeço aos fotógrafos Klaus Mitteldorf, que fez o retrato da capa, e Alice Vergueiro, autora de outras imagens.

O livro é uma pequena contribuição à memória do nosso querido e sofrido Brasil. Sem conhecermos o passado recente, não é possível entender o presente e a violência que ainda nos cerca, em diversos níveis, e nos desafia todos os dias de nossas vidas. Se a sociedade brasileira não conhecer a sua história repetirá os mesmos erros, as mesmas barbaridades, os mesmos desatinos.

No final de 2022, após a vitória de Lula na eleição presidencial, estivemos sob a ameaça de um novo golpe de Estado tramado no próprio Palácio do Planalto. Em 8 de janeiro, a tentativa de ruptura democrática quase se concretizou com a invasão dos prédios dos três poderes da República.

As instituições não consentiram com o golpe pretendido pela extrema direita, mas nossa frágil democracia, embora tenha prevalecido, continua sob ameaça. Temos o pior e mais nefasto Congresso até hoje eleito, que parece empenhado em desfazer os avanços alcançados a partir da Constituição Cidadã de 1988. Temos um Executivo que, apesar de comprometido com a democracia, a redução das desigualdades sociais e os direitos humanos, admite jogar para baixo do tapete o passado autoritário. Um Judiciário que, embora tenha sustentado um papel fundamental na tutela da democracia, falha em cumprir no varejo suas obrigações para que a lei possa ser aplicada de maneira igualitária e imparcial a todas as pessoas.

Essa conjunção de fatores representa uma ameaça constante na medida em que solapa a nossa democracia. A união de todos os democratas, sejam eles posicionados mais à esquerda, ao centro ou mais à direita do espectro político, é o único caminho para enfrentar o crescente poder da extrema direita no Brasil e no mundo.

Os depoimentos colhidos neste livro muito me emocionaram, levaram-me a viajar no tempo e a resgatar alguns casos dos quais não mais lembrava. Mergulhei nestas memórias, reconstruí a minha vida como advogado e militante dos direitos humanos a partir do olhar generoso dos familiares e de tantos amigos queridos, com os quais tive e tenho ainda o privilégio de partilhar sonhos e lutas. Seguimos juntos na construção de um Brasil mais humano e mais justo.

(*) O livro Democracia e Liberdade: a trajetória de José Carlos Dias na defesa dos direitos humanos foi publicado pela editora Alameda.

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