Jovem, negro, trabalhador, cristão e baleado por policial

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, publicado em Projeto Colabora – 

Paulinho, 22 anos, está internado em estado grave após levar três tiros de fuzil de sargento PM que alega legítima defesa

Esta não é uma história de apenas mais um jovem negro abatido pela polícia. É a história de Paulo Cesar Siqueira Rodrigues, de 22 anos, que foi alvejado por 3 tiros de fuzil Parafal, disparados à queima-roupa pelo sargento da PM Elton John Silva dos Santos a 50 metros da porta de sua casa, no bairro do Engenho Velho, em Itaboraí, município do Estado do Rio. É a história de Paulinho, que não tem antecedentes criminais, mas tem carteira de trabalho assinada e uma filha de 3 anos. É a história de um jovem negro que saía para jogar a tradicional pelada na noite de uma terça-feira com amigos da igreja e que está internado em estado grave há mais de 20 dias num hospital de São Gonçalo, lutando para regressar à sua casa, provar sua inocência e voltar a levar sua vida normal. Na outra ponta está o policial, que é investigado por tortura em outro caso.

De acordo com a Polícia Civil, o inquérito por tortura foi aberto pela 74ª DP (Alcântara), a pedido do Ministério Público, e encaminhado à Justiça em julho, dois meses antes do caso em que Elton John atirou em Paulo Cesar sob a justificativa de que o jovem estaria armado e ameaçando um carro da PM com quatro policiais.




Paulinho com a Bíblia e camiseta do Projeto Revolução Radical: participação ativa na comunidade evangélica (Foto: Reprodução)
Paulinho com a Bíblia e camiseta do Projeto Revolução Radical: participação ativa na comunidade evangélica (Foto: Reprodução)

Conforme o Registro de Ocorrência (RO) protocolado na 71ª DP (Itaboraí) na madrugada do dia 11 de setembro, a viatura descaracterizada 55-0770 da PM trafegava, no sentido Itaboraí pela rodovia BR-101, por volta das 19h45m do dia 10, quando, pouco depois de um radar, o sargento Alex Barros Coutinho “teve a atenção despertada para um homem que transitava pela via marginal à rodovia, caminhando no sentido oposto da mão-de-direção, percebendo naquela ocasião que o mesmo empunhava uma arma de fogo”.  Segundo fontes da Polícia Civil, o sargento Coutinho está envolvido em pelo menos cinco casos de homicídios provocados por agentes do Estado, nomenclatura que substituiu o auto de resistência.

Inconsistências e contradições na versão policial

Segundo testemunhas ouvidas pela reportagem do #Colabora, na noite do episódio relatado, a iluminação da estrada estava com defeito no trecho em questão. Um vizinho, que preferiu não se identificar com medo de represálias da polícia, teria visto um carro preto, modelo Gol G4, entrar na estradinha de terra em que Paulo Cesar foi atingido pelos disparos. Tiago, irmão de Paulinho, que mora numa casa embaixo da dele, afirma que o poste de luz em frente ao local no qual foi alvejado está danificado há tempos.

Foi um choque muito grande. O Paulinho é como se fosse um filho para mim. Inclusive, meu filho nasceu há pouco mais de um mês e convidei o Paulinho para ser padrinho. Ele é meu braço direito no trabalho. Trabalha de segunda a sábado lavando carro e faz um extra como caminhoneiro aos domingos, dirigindo caminhão-pipa. É muito trabalhador

Rui Barbosa Vieira
Dono de lava jato onde Paulinho trabalhava

A reportagem do #Colabora questionou as polícias Militar e Civil a que velocidade se encontrava a viatura e como alguém conseguiria enxergar um revólver Rossi .32 long (arma atribuída à posse de Paulo Cesar no RO) de dentro de um carro em movimento, à noite, numa distância de pelo menos 20 metros.

Por meio de nota de sua assessoria de imprensa, a PM se limitou a responder que “policiais militares do 35ºBPM (Itaboraí) em viatura descaracterizada numa diligência do Setor de Inteligência do batalhão pelo bairro Engenho Velho, em Itaboraí, notaram um homem armado se aproximando do veículo. A equipe policial desembarcou advertindo que era Polícia Militar e tentou abordá-lo. O homem apontou a arma para os policiais, que reagiram. Ele ficou ferido e foi socorrido ao Hospital Municipal Desembargador Leal Júnior. Um revólver calibre 32 e munições foram apreendidas”.

A nota contradiz o próprio Registro de Ocorrência, segundo o qual não foi Paulo Cesar quem se aproximou do veículo, mas o sargento Alex Barros Coutinho que “solicitou que a guarnição desse meia-volta e retornasse até o ponto em que o suspeito fora visto a fim de abordá-lo”. Ainda de acordo com o relato, foi o sargento Elton John Silva dos Santos que se aproximou do suspeito e “mencionou que o tal elemento realmente se encontrava armado, notando que o mesmo passara a arma que segurava para a mão esquerda”. Paulinho é destro.

Segundo a nota da PM, “o fato está sendo apurado pela Delegacia de Homicídios da Polícia Civil e, no âmbito da Polícia Militar, por um Inquérito Policial Militar (IPM), que tramitam sob sigilo”. Já a Polícia Civil contradiz a Militar e informa, também por meio de nota, que “de acordo com a 71ª DP (Itaboraí) foi instaurado inquérito para apurar o caso”. Teoricamente, a Delegacia de Homicídios (DH) só assume um caso quando há pelo menos um morto. Paulinho continua vivo.

“Muito inverossímil, para dizer o mínimo”

Ainda conforme a Polícia Civil,  “familiares e policiais militares foram ouvidos e as investigações estão em andamento”. A família nega que tenha prestado qualquer depoimento. Um ex-titular da Delegacia de Homicídios também apontou outras inconsistências no relato dos PMs ao analisar o caso, a pedido do #Colabora, sob a condição de anonimato.

“A versão da nota (da PM) está diferente da versão dos policiais. Pelos depoimentos, essa dinâmica de que o homem se aproximou da viatura armado não bate. Outra coisa: muito suspeito não terem encontrado nada além da arma com ele (Paulo Cesar). Pois, se ele estava roubando, naturalmente deveria haver mais bens. Se eles (policiais) estão trafegando na via expressa e alegam que viram uma arma em detalhe na mão de alguém que estava na estrada de terra em um nível abaixo… Muito inverossímil, para dizer o mínimo”, opina o delegado.

Tive a alegria de batizá-lo e vê-lo se integrar totalmente em atos de bondades realizados em nossa comunidade e outras ações realizadas pela igreja. O acidente lamentável envolvendo o Paulo deixou a todos perplexos e assustados, mas confiantes que Deus operaria um milagre. Nossa certeza sempre foi que uma injustiça muito grande estava ocorrendo, pois o Paulinho é um menino cristão evangélico e muito trabalhador. Ele não é um bandido!

Eliéser Monteiro Freire
Pastor da Primeira Igreja Batista de Duques

Ele aponta ainda possíveis caminhos que a investigação pode tomar a partir de simples questionamentos, lembrando que, normalmente, viaturas descaracterizadas de P2 (polícia reservada, que geralmente circula à paisana, sem identificação) têm os vidros cobertos por películas escuras.   “Seria interessante indagar se eles estavam em operação; qual oficial deu a ordem para cumprir qual missão e onde; ver se os vidros da viatura possuem Insufilm e, se no momento do fato, estavam abertos, pois se estivessem fechados, dificultaria ainda mais a visibilidade”, ele observa.

O #Colabora apurou que Leonardo Luis Macharet, titular da 71ª DP, está de licença-paternidade, mas a Polícia Civil não confirmou a informação. A delegacia em questão é a mesma para a qual Mayson César Fidélis Santana, de Itaboraí, dirigia viaturas fingindo ser policial, segundo o colunista Ancelmo Gois, do GLOBO. Conforme a nota publicada no dia 29 de setembro, Mayson teve um celular apreendido na Operação Salvador, do MP do Rio, de combate à milícia, que em julho cumpriu 90 mandados de busca e apreensão.

Emprego em lava-jato e extra dirigindo caminhão-pipa

Familiares, amigos, vizinhos e pessoas próximas de Paulo Cesar duvidam da versão da polícia. Para eles, Paulinho é inocente e não estava com nenhuma arma na noite em que foi alvejado pela polícia. Rui Barbosa Vieira, chefe do jovem num lava-jato, foi um dos últimos a ver o rapaz naquele dia, quando ele saiu do trabalho, num posto que fica no Km 284 da BR-101 de acordo com o patrão, que o conhece desde os 13 anos e mora a menos de 1km dele, no Engenho Velho.

“Ele tinha saído do serviço às 18h e ido para casa guardar a moto antes de ir para a pelada que ele joga toda terça. Só fiquei sabendo de madrugada (que ele foi baleado). Lá pelas 3h ou 4h, fui para o hospital para dar um apoio à família. Foi um choque muito grande. O Paulinho é como se fosse um filho para mim. Inclusive, meu filho nasceu há pouco mais de 1 mês e convidei o Paulinho para ser padrinho. Ele é meu braço direito no trabalho. Trabalha de segunda a sábado lavando carro e faz um extra como caminhoneiro aos domingos, dirigindo caminhão-pipa. É muito trabalhador”, diz Vieira.

Paulo Cesar Rodrigues, com a mãe, Ana Elena: baleado a caminho da pelada (Foto: Reprodução)
Paulo Cesar Rodrigues, com a mãe, Ana Elena: baleado a caminho da pelada (Foto: Reprodução)

“Já já eu vou tá em casa. Se quiser fazer uma visita lá… No hospital fica meio complicado. Tem vezes que vêm três, quatro (pessoas), e não dá para entrar todo mundo. Aí fica chato, né? Mas já já tô em casa, se Deus quiser”, disse Paulinho num áudio enviado ao grupo de WhatsApp de sua família antes de voltar ao CTI para fazer uma nova cirurgia, dessa vez para conter uma hemorragia no fígado em função de estilhaços de uma das balas. As outras passaram raspando no coração e nos pulmões.

Ele nunca se envolveu com gente que faz coisas erradas. Um dia antes do acontecimento, ele estava evangelizando na rua e na casa das pessoas que estavam afastadas da igreja

Tiago Rodrigues
Irmão de Paulinho

O pastor Eliéser Monteiro Freire, da Primeira Igreja Batista de Duques, foi uma das pessoas que visitaram Paulinho no hospital e contou que ele se emocionou ao entoar em seu ouvido um dos louvores de que o jovem gosta de cantar nos cultos. Alguns versos da canção “Uma revolução da graça” dizem “Eu me sinto livre, eu me sinto vivo” e  “Não sou mais condenado, fui livre do pecado”. Paulo Cesar chegou a ficar internado sob custódia, com a polícia proibindo visitas, segundo familiares. Mas uma decisão judicial concedeu liberdade provisória devido à ausência de antecedentes criminais e pelo fato de ele ter residência e trabalho fixos.

Depois disso, o pastor pôde visitá-lo. E prega sua inocência. “Aproximei-me do Paulo todo equipado, cheio de aparelhos ligados a ele que o monitoravam e pensei: será que ele vai me ouvir? Respondi para mim mesmo: se ele não me ouvir, Deus me ouvirá. Vou orar, mas antes vou cantar baixinho um louvor que ele gosta. Coloquei a mão na cabeça dele, cheguei perto do rosto dele e comecei a cantar o refrão ‘Uma revolução da graça…’. Com muito esforço, mas com um sorriso nos lábios, o Paulinho completou: ‘uoh oh oh! Já começou em mim, já começou em mim’. Sorrimos, nos alegramos e oramos juntos agradecendo a Deus”, conta o pastor.

Trabalho de evangelização

Eliéser recorda que conheceu Paulinho ainda criança, por volta dos 9 anos, e teve o primeiro contato com ele quando o garoto lavou seu carro. Segundo o pastor, o menino chamou a atenção pelo sorriso e pelo foco na tarefa. Durante a adolescência, mesmo ainda não sendo membro da igreja, ele já participava de algumas atividades religiosas, mas, por diversas vezes,  tinha que abrir mão delas em razão do trabalho.

A polícia sempre cria uma história para poder justificar o ato de execução ou tentativa de execução. E essa história, por mais completinha que ela pareça do ponto de vista da sua hermeticidade, sempre esbarra em detalhes como esses de que a iluminação e a distância tornam absolutamente não convincente a alegação de que eles viram o sujeito com a arma. A história fica ainda mais inverossímil. Ainda mais diante das evidências coletadas, essa história é completamente incompatível com a realidade do local.  A narrativa policial levada à delegacia na forma de um registro de ocorrência sempre tem a intenção de esconder uma verdade: a letalidade policial

Rafael Borges
Presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ

Depois que completou 18 anos, ele teria passado a frequentar com assiduidade os cultos, celebrações e atividades diversas da igreja, como enumera o pastor: escola bíblica dominical, evangelismo de rua e nas escolas, além dos encontros do Projeto Semeion, o time de futebol com o qual ele jogaria na noite em que foi baleado. Normalmente, ele ia a pé até o Campo do Waguinho, num sítio em Duques, às margens da BR-101. Enquanto isso, o pastor reza para que a justiça dos homens seja tão justa quanto a de Deus.

“Recentemente, levamos Paulinho para participar do Projeto Revolução Radical, que tem por objetivo despertar os cristãos para viverem com fidelidade e ousadia o evangelho de Cristo. Logo após retornar desse projeto, tive a alegria de batizá-lo e vê-lo se integrar totalmente em atos de bondades realizados em nossa comunidade e outras ações realizadas pela igreja. O acidente lamentável envolvendo o Paulo deixou a todos perplexos e assustados, mas confiantes que Deus operaria um milagre. Nossa certeza sempre foi que uma injustiça muito grande estava ocorrendo, pois o Paulinho é um menino cristão evangélico e muito trabalhador. Ele não é um bandido! Temos certeza que os fatos serão apurados e as autoridades competentes irão julgar de forma justa”, acredita Eliéser.

Mesmo não tendo religião, Tiago, irmão de Paulinho, endossa o coro do pastor. Os dois cresceram juntos em Pacheco, distrito de Itaboraí, até os pais se separarem. Os irmãos chegaram a morar um tempo com o pai, Luiz César Rodrigues, mas depois se mudaram para a atual localidade, no Engenho Novo, onde mora também a mãe, Ana Elena de Lima Siqueira. Apesar de ela trabalhar e dormir no Rio de Janeiro durante a semana e normalmente só voltar para casa nos fins de semana, sua rotina foi abalada pelo filho baleado. Desde o episódio, ela está de licença no emprego e diariamente visita Paulo Cesar no hospital. Tiago diz que o irmão sempre preferiu trabalhar a estudar.

“Mas ele nunca se envolveu com gente que faz coisas erradas. Um dia antes do acontecimento, ele estava evangelizando na rua e na casa das pessoas que estavam afastadas da igreja”, relembra Tiago.

Por mais que o governador fale, não existe licença para matar nem essa autorização legal.  A justificativa geralmente é esta: a pessoa tinha uma arma, tentou atirar, fez movimentos bruscos. As histórias são muito limitadas e têm um fio narrativo muito semelhante. E esses policiais geralmente têm uma arma na viatura, a chamada vela, arma fria usada para incriminar a pessoa que sofreu a tentativa de execução. Nesse caso mesmo: o policial deu três tiros de fuzil. Por que três tiros de fuzil? Para que isso?

Rafael Borges
Presidente da Comissão de Segurança da OAB/RJ

Três tiros de fuzil

A pedido do #Colabora, Rafael Borges, presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB-RJ, analisou o RO e apontou incoerências a partir do que ele identifica como um padrão de narrativa que se repete para justificar a tentativa de execução policial. Criminalista, Borges citou especificamente o trecho do relato do PM de que “o suspeito fez menção de que iria efetuar disparos contra a guarnição ao movimentar bruscamente seu corpo” como recorrente em registros de ocorrência para policiais alegarem legítima defesa para atirar, ainda que a versão seja inconsistente.

“A polícia sempre cria uma história para poder justificar o ato de execução ou tentativa de execução. E essa história, por mais completinha que ela pareça do ponto de vista da sua hermeticidade, sempre esbarra em detalhes como esses de que a iluminação e a distância tornam absolutamente não convincente a alegação de que eles viram o sujeito com a arma. A história fica ainda mais inverossímil. Ainda mais diante das evidências coletadas, essa história é completamente incompatível com a realidade do local.  A narrativa policial levada à delegacia na forma de um registro de ocorrência sempre tem a intenção de esconder uma verdade: a letalidade policial”, comenta Borges.

O especialista analisa o caso à luz da política de segurança do governador Wilson Witzel, que manda mirar na cabecinha de bandidos e abatê-los. Os resultados apontam para um aumento no número de mortes provocadas por agentes do Estado em 2019 no Rio de Janeiro: 1.249 entre janeiro agosto, com um crescimento de 16% em relação ao mesmo período do ano passado,  com uma média de cinco mortes por dia, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). É o maior patamar desde 1998, quando começou a série histórica.

De acordo com o presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB-RJ, o policial que agir “na linha dessa comunicação midiática do governador, está agindo de maneira errada, contra a lei”. Borges argumenta que, ainda que os policiais entendam que essa fala do governador seja uma ordem, “ninguém pode cumprir ordem manifestamente ilegal”:

“E essa ordem para matar é manifestamente ilegal.  Por mais que o governador fale, não existe licença para matar nem essa autorização legal.  A justificativa geralmente é esta: a pessoa tinha uma arma, tentou atirar, fez movimentos bruscos… Aí eles inventam… As histórias são muito limitadas e têm um fio narrativo muito semelhante. E esses policiais geralmente têm uma arma na viatura, a chamada vela, arma fria usada para incriminar a pessoa que sofreu a tentativa de execução. Nesse caso mesmo: o policial deu três tiros de fuzil. Por que três tiros de fuzil? Para que isso? Até se ele estivesse em legítima defesa, seria exagerado”.

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