Dando sequência à “Então, foi Assim?”, seção do Bem Blogado que traz textos do artista multimídia Ruy Godinho sobre como foram feitas belas músicas brasileiras, trazemos a aniversariante de hoje: Joyce. Grande cantora e compositora, Joyce conta para o Ruy, e para nós, como se dá com ela o processo de composição e relata a gostosa história de como se inspirou para fazer a letra de Samba da Zona, como ela dançou nas mãos do marido, o baterista Tutty Moreno para que a inspiração chegasse.
Mas, sem spoiler, vai lendo, viajando nas palavras de Ruy e de Joyce até chegar na zona do agrião, no Samba da Zona. Boa viagem.
Ah, feliz aniversário, Joyce. Vá dançar com o maridão.
As entrevistas que tive oportunidade de realizar com a bela e talentosa cantora, compositora e violonista Joyce sempre renderam boas histórias. Foi assim em Feminina e Mistérios (com Mauricio Maestro), Essa mulher (com Ana Terra) – publicadas no Volume I desta Série – e, agora, no contagiante Samba da zona.
Em nosso mais recente encontro, Joyce fez questão de enfatizar o valor que o rádio teve na vida dela, até como símbolo de liberdade adolescente. “O rádio teve muita importância porque lá em casa a gente não tinha televisão. A gente assistia na casa de um tio. Minha mãe só comprou televisão bem mais tarde.
Então, a gente ouvia muito rádio. Era uma época que tinha muita coisa interessante, muita música boa, muita coisa legal. E era um momento importante para mim. Ouvir rádio era uma coisa legal.
Quando eu ganhei o meu primeiro radinho de pilha, então, foi uma liberdade. Bem depois, a molecada ganhou os cassetes. Cada época com sua tecnologia. Eu não tive MP3 na adolescência, mas tive radinho. E a gente ouvia muita coisa legal.”
Posteriormente, ao ouvir a própria música tocar no rádio, achou que era uma coisa natural, já que a autoconfiança e a determinação construíram essa possibilidade. “Foi ótimo. Mas o tempo todo eu sabia que devia estar tocando ali. Pra mim, não foi um susto, não. Desde o início eu fiz um trabalho sabendo que ele iria ser tocado e conhecido.”
Para o caso de a música não garantir sustentabilidade, Joyce se graduou em comunicação social, baseada na relação estreita que sempre teve com as letras. Com a melodia, nem se fala, musicava até os textos escolares.
“Eu acho que já nasci para isso. De início, eu quis ser escritora, sempre gostei de escrever. Até me formei em jornalismo, como uma espécie de plano B, e cheguei a trabalhar como repórter. Mas era a música, e sempre foi a música.
Quando eu era pequena, pegava os textos que eu tinha de estudar, decorar – naquela época tudo era decoreba – e musicava para os memorizar melhor. Então eu chegava na hora da prova com a música na cabeça, com a letra do livro que eu tinha de estudar musicada por mim.”
Na história de Feminina , Joyce resume que a música vem na vertical e a letra na horizontal. Aqui detalha um pouco mais o processo criativo. “A música vem direto.
O processo da música vir na vertical já é bastante transcendental, porque ali você está se comunicando com o Divino, seja o nome que você queira dar. Mas é uma comunicação direta”, confirma categoricamente sua ligação com as divindades musicais.
A horizontalidade da criação literária traduz a transpiração e a paciência. “A letra, pra mim, pelo menos, é uma coisa de trabalho. Eu vou escrever primeiro o rascunho, vou trabalhar nisso. Eu tenho que suar, tenho de burilar um pouquinho, tenho que tirar uma história daqueles sons que a música me sugere. E uma vez que eu ache uma palavra…
Como aconteceu agora no meu mais recente disco (Tudo, gravado em 2013)… Eu fiz uma música e o refrão tinha uma frase musical que eu sempre cantava boiou, boiou, boiou. E eu não sabia muito bem como encaixar aquilo ali. E comecei a pensar nessa palavra, o que ela quer dizer. Quer dizer muitas coisas e eu fiz a letra toda pensando nisso, nas várias maneiras de usar a palavra boiou.”
Além disso, Joyce é perfeccionista, preocupa-se em amaciar as palavras para facilitar o ato de cantá-la. “Depois vou limpando, vou fazendo a minha música caber na boca, porque o cantor precisa ter essa coisa da palavra que suinga na boca, gostosa de cantar. Não pode ser uma coisa muito dura. Tudo isso faz parte do trabalho de compor. É uma artezinha complicada, não é simples como parece, não.”
Muitos compositores restringem o uso do instrumento como suporte da composição, para evitar que a criação se limite às suas performances, à bagagem de conhecimento técnico que cada um tem do instrumento. Para Joyce isso não é problema no ato criativo. “Eu preciso do violão, basicamente. Tendo o violão, está tudo certo.
Eu fiz muita música em passagem de som. É um momento em que frequentemente eu aproveito para compor. A gente está passando o som, a música está rolando de uma maneira muito fluida e a gente acaba criando alguma coisa.”
Joyce começou a se interessar pelo violão na época da Bossa Nova, dos acordes dissonantes e das harmonias mais complexas. Isso explica a origem do seu violão bem-tocado. “O violão que eu toco é de autodidata que depois foi para a academia. Quer dizer, eu comecei sozinha, observando o meu irmão e os amigos dele que eram músicos importantes de bossa nova.
Depois, quando eu já tocava, já compunha, me virava sozinha, já fazia tudo, eu achei que era o momento de estudar. Aí eu procurei um concertista chamado Jodacil Damasceno, muito legal, professor de violão clássico, que foi professor também do Guinga, da Rosinha de Valença e do [Jards] Macalé.
Então, foi esse o meu professor com quem estudei técnica de violão e quem botou a minha mão no lugar. Ele foi muito importante pra mim.”
Além do rádio, as primeiras influências recebidas por Joyce foram diretas e presenciais, com grandes nomes da Bossa Nova que frequentavam a casa dela. “A primeira influência é a da bossa nova, que foi a música da minha adolescência. Mas tem o samba, o jazz, que eram coisas que a gente ouvia em casa.
Na minha casa tinha muita música. O meu irmão Newton era músico, tocava em bailes e recebia amigos em casa: Roberto Menescal, Leny Andrade, o pessoal do Conjunto do Menescal, o Eumir Deodato, que eram os mesmos que tocavam com ele nos bailes. Eu sou treze anos mais nova do que o Newton, e ainda era bem garota.
Eles eram jovens mas eram adultos, e ficavam tocando. Eu ficava vendo eles tocarem. Tinha isso e tinha a música dessa fase tocando no rádio, o samba que é a música da minha cidade, que é importante também, tinha o jazz, que meus irmãos e a minha mãe ouviam, só que o dela era um jazz um pouco mais antigo: Benny Goodman, Sinatra, Bing Crosby, ela gostava muito disso. Mas meus irmãos também ouviam. Então tinha música em casa, direto.”
Um dos mais deliciosos sambas de gafieira que eu conheço, Samba da zona, tem Tutty, Miéle e até Bethânia pelo meio. “Sempre a Bethânia envolvida nas histórias. Era festa de aniversário dela. Ela estava fazendo quarenta anos. Você vê que aconteceu há algum tempo [1986].
Então, ela deu um festão na Villa Riso, uma casa muito bonita que tem em São Conrado [Rio de Janeiro], que eventualmente as pessoas alugam para eventos e festas. E chamou a Orquestra Tabajara. Era um baile mesmo pra dançar. Eu cheguei lá com o Tutty , com quem eu estava casada há quase 10 anos. E a gente começou a dançar.
E aí eu falei: ‘Caraca! Você dança bem pra caramba! Onde é que estava isso? Eu não sabia que você dançava tão bem assim’! E foi um choque pra mim. A gente já estava junto há tanto tempo, já tinha filhos e nunca tinha dançado. E ele é um superdançarino, espetacular. Tão bom, que eu, que danço mais ou menos, estava dançando bem também. É que nem o Fred Astaire com aquele cabide. O cara quando é um bom dançarino e sabe conduzir, leva a dama pra onde ele quer. E foi um negócio incrível.”
Fiquei pensando com meus botões: geralmente os homens são imediatistas, querem mostrar logo todas as habilidades para impressionar, gastam todos os cartuchos na primeira rodada e ficam sem munição para manter a data de validade da paixão em dia. Teria sido pura distração ou Tutty, com quase dez anos de casado, ainda tinha recursos estratégicos de sedução? Aliás, estratégia bem própria do gênero feminino.
“E daqui a pouco eu senti aquela batidinha no meu ombro. Era a Bethânia, relembra Joyce: ‘Posso dançar com ele’? Quando vi, eu já estava dançando com o Roberto D’Ávila, que eu não conhecia, nunca tinha visto na minha vida. Ela trocou de par comigo, me botou pra dançar com o cara que ela estava dançando e levou o Tutty embora. Depois eu fiquei vendo outras mulheres baterem no ombro dela, pra dançar com ele”, revela.
Feliz com a demonstração de habilidade do marido, Joyce compartilhou na boa seu par com outras mulheres. Mas não foram só as damas que perceberam a maestria. “No fim da festa, o Miéle estava lá, chegou pra mim e disse: ‘Olha, eu danço bem, viu? Mas o seu namorado é foda’! Quando chegamos a casa, eu perguntei pra ele: ‘Vem cá! Nossa, onde você aprendeu a dançar assim’? Aí ele falou candidamente: ‘Na zona’! [E Joyce:] ‘Ah! É’? [E ele:] ‘É, quando eu era adolescente’…”
Tutty começou a tocar ainda menino. Seu primeiro instrumento musical foi o trompete, em seguida trocou pelo sax alto. Atuou como saxofonista em diversos conjuntos de baile, em Salvador. Aos dezesseis anos de idade abandonou os sopros para se dedicar exclusivamente à bateria.
“Ele realmente começou com quatorze anos já como músico profissional, lá na Bahia. Outro dia, a OMB mandou uma carta dizendo que ele nunca mais precisaria pagar a anuidade, porque ele já pagava há cinquenta anos. Ele começou com quatorze e com quinze, dezesseis anos já tocava em bailes, embora fosse menor de idade.
Quando o baile acabava – me diz ele a seguinte história: que o único lugar que o pessoal tocava jazz e bossa nova era na zona, porque no baile era aquela coisa careta pra todo mundo dançar. Depois os músicos iam pra zona dar canja, ficar tocando.
Aí eu falei pra ele: ‘Certamente não foi a única coisa que você aprendeu lá, né’? Ele falou: ‘É verdade! Dançar fez parte inclusive desse aprendizado’. Então essa é uma história cem por cento verídica.
Eu fiquei cozinhando isso durante alguns anos, achando a história superengraçada, mas passou um tempo e quando chegou lá por volta de 1995, por aí, o samba veio inteirinho. Eu fiz o samba e no ano seguinte o gravei. Essa é a história do Samba da Zona.”
Comentei com Joyce que neste samba eu constato exatamente o exercício da palavra fácil na boca do cantor, porque a letra é fluente, macia.
“Esse é o grande lance. O pessoal gosta de cantar letra de música. Tem um segredinho, tem um mistério que não se aprende no colégio, como diz o Noel. Não se aprende em lugar nenhum. É na prática, no dia a dia você vai aprendendo aquilo.
Eu vi desde muito cedo pessoas compondo na minha frente, inclusive Vinicius de Moraes, por exemplo, Chico Buarque, pessoas que, diferentemente de mim, não têm nenhum pudor de compor na frente de quem está próximo.
Vinicius, então, compunha na frente de qualquer pessoa, numa festa. Eu já comecei a amizade vendo-o fazer isso. Então você vai aprendendo como é que a coisa vai sendo feita e trabalhada. E é sempre trabalhada dessa forma, num formato que fique mais gostoso, mais confortável para o cantor cantar. Isso é um negócio legal.”
Samba da zona foi gravado pela própria Joyce nos CDs Ilha Brasil (EMI Music, 1996) e Joyce – Ao Vivo (EMI Music, 2008).
O que eu havia ruminado com meus botões ainda me deixava inquieto. Razão pela qual, meses depois, resolvi consultar Joyce por e-mail para apurar ainda mais a história. Fora distração ou estratégia de Tutty segurar tanto tempo o trunfo de ser um hábil dançarino? Antecedida de uma boa risada, dessas que se usam nas comunicações virtuais, ela matou a charada: “Ha! Ha! Ha! Ha! Acho que foi por distração mesmo”!
Samba da zona
(Joyce)
Quando estou num baile, é duro de aguentar
todo o mundo cisma de dançar com meu par
tiram ele de mim e não me deixam em paz
porque ele aprendeu na zona, com as profissionais
e é por isso que ele dança, e dança assim tão bem
quando cai no samba então, não tem pra mais ninguém
ele é sensual e sabe conduzir
sabe que uma dama também quer se divertir
Silêncio agora no salão, que o show vai começar
e o meu par na banda agora assume o seu lugar
ele é genial, todo o mundo diz
porque ele aprendeu na orquestra lá do Tabariz
e é por isso que ele toca, e toca assim tão bem
quando cai no samba então, não tem pra mais ninguém
ritmo infernal, frases tão sutis
o que ele aprendeu na zona é o que me faz feliz
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