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Gente, o que é isso?
o julgamento escandaloso de Mariana Ferrer
Por Norma Couri, diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade da ABI
Mariana Ferrer continuou a ser estuprada no julgamento de setembro deste ano que considerou André de Camargo Aranha inocente. Ela vinha sendo estuprada todos os dias desde a festa de 15 dezembro em Jururê Internacional, Florianópolis, no Vip Beach Club. Ali, foi estuprada depois de dopada pelo empresário Aranha, 43 anos. Mariana tinha 23 anos e era virgem. As mulheres são estupradas todos os dias de diferentes maneiras, vítimas de machismo em favor da “legítima defesa da honra” do agressor. O vídeo do julgamento vazado pelo The Intercept inaugura um novo dicionário para nosso léxico, a saber:
Crime sexual: estupro culposo
Mulher sensual: imagens ginecológicas
Reação feminina: dissimulação
Desejo masculino: quer uma auréola?
Vítima estuprada: a desgraça dos homens é seu ganha-pão
Lembrando a máxima de Paulo Maluf “sentiu desejo? estupra, mas não mata” pode ser estendida ao advogado de defesa Claudio Gastão da Rosa Furtado que reagiu quando Mariana lembrou do seu comentário ao ver as fotos “muito bonita, por sinal”. Ou seja, inspirou desejo, quem mandou? Mariana, chocada, disse que tinha idade para ser filha do advogado que a humilhava. Furtado, um dos advogados mais caros de Florianópolis, respondeu jocosamente que não queria uma filha como ela. Mariana estava “dando seu showzinho, vive disso”, “você trabalhou num Café e perdeu o emprego, não paga o aluguel há 7 meses…”, “quer manipular com a imagem de virgem”, “só falta auréola”, “com essa foto chupando dedinho…” “foto em posição ginecológica”.
Mariana chorava implorando respeito ao juiz Rudson Marcos da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, paralisado diante do espetáculo do advogado-estrela. Furtado só via “lágrimas de crocodilo”. O veredicto decidiu que André Aranha cometeu um estupro sem intenção de estuprar, doloso. E concedeu à Mariana e sua família apenas um tratamento psiquiátrico. André é filho do advogado Luis de Camargo Aranha Neto.
Não faz muito tempo as mulheres que reclamavam na Justiça dos abusos masculinos eram enviadas a asilos psiquiátricos. Quantos maridos se livraram das acusações das mulheres declarando-as loucas. E eram internadas. Na Inquisição eram queimadas como bruxas.
Estupro seria um crime inafiançável se não fosse inventado pela criatividade jurídica o termo “estupro doloso” para inocentar o estuprador. Não basta a mulher ser considerada culpada por provocar instintos masculinos e desejo no estuprador como as antropólogas da Unicamp Danielle Ardaillon e Guita Debert mostraram em “Quando a Vítima é Mulher” (1987). Não basta atos desesperados como o de Lorena Bobbit decepando em 1993 o órgão sexual do próprio marido agressivo e estuprador que acaba de virar filme (A Mulher que Castrou o Marido). Também não foi suficiente ao nosso judiciário machista em 1976 a declaração de “inocente”, tentado pelos poderes da “mulher da vida airada”, do playboy Doca Street diante das fotos da socialite mineira Ângela Diniz morta com quatro tiros na Praia dos Ossos em Búzios. No caso de Ângela, a reação feminista foi tão grande que Doca acabou reconduzido à prisão por 15 anos e a sociedade brasileira ganhou o slogan Quem Ama Não Mata – mas ainda não assimilou.
O Senado aprovou nota de repúdio ao advogado Furtado, que cobrou apuração de responsabilidade de todos os agentes envolvidos do Tribunal de Justiça e do Ministério Público de Santa Catarina. A OAB e a Corregedoria Nacional de Justiça já reagiu para apurar a conduta do juiz, a humilhação do advogado de defesa do réu, e o silêncio do advogado de defesa da vítima. E o promotor Thiago Carriço de Oliveira, inventor do “estupro culposo”. Do STF, Gilmar Mendes condena a invenção, estupro culposo não existe.
Assim mesmo, se o termo colar na sociedade, as mulheres – nós -, século XXI, estamos todas fritas. “Gente, o que é isso?” foi a chamada de alerta de Mariana Ferrer no vídeo, alerta para todos nós.