Por Victor Moura, compartilhado de Projeto Colabora –
Fim do inverno promete alívio nas chuvas que ameaçam sete mil pontos de risco na cidade onde a população não está a passeio
Após ter chovido a semana inteira, num sábado ensolarado peguei minha bicicleta rumo a Olinda. Fundada em 1535, a cidade é uma das mais antigas do Brasil. Nasceu no alto do morro, ao lado do mar, com vista privilegiada para o estuário dos rios Capibaribe e Beberibe. Naquela manhã, mesmo longe do ciclo carnavalesco, turistas encaravam o sobe e desce de suas ladeiras. Alguns se valiam do transporte motorizado. Outros subiam a pé. “Mãe, olha, dá pra ver tudo”, disse um menino após subir a Ladeira da Misericórdia cheio de energia. Nas ruas, silêncio. Lembrança de que ainda estamos numa pandemia. Apenas consegui ouvir frevo passando pelo Grêmio Musical Henrique Dias, onde músicos treinavam, e na caixinha de som de um ou outro comerciante. No Alto da Sé, sotaques misturados, cheiro bom e som de fotografia. O Centro Histórico, principal ponto turístico da cidade, é considerado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade desde 1982. Pouco mais de 20% do território é tombado enquanto Zonas Especiais de Proteção Cultural e Urbanística. Boa parte na (ou perto da) chamada cidade alta, onde eu “turistava”. Mas nem todo mundo sobe as ladeiras de Olinda a passeio.
Logo fui pedalando até a parte noroeste da cidade, onde morros altos e populosos acumulam escadarias, ladeiras e áreas de risco. É onde 90% dos pontos se encontram. Aqui o barroco das igrejas é substituído pelo barrento das encostas. Já o colorido dos casarios coloniais dá lugar ao preto das lonas plásticas. Antes das “chuvas de inverno”, mais intensas entre março e junho, elas são colocadas paliativamente pela Prefeitura para diminuir a ameaça de um possível deslizamento de terra. Segundo dados de 2019, Olinda tem 7.200 pontos de risco monitorados.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, procurei a Secretaria de Serviços Públicos do município. Na resposta, o secretário executivo de Defesa Civil, Manoel Cunha, cita e apresenta o PMRR: Plano Municipal de Redução de Risco, de 2006. Nenhum outro plano semelhante foi criado desde então. À época, foram propostas 65 obras estruturais em áreas de alto risco, ou próximas. O secretário não diz se ou quantas dessas obras foram feitas. Escreve que o poder público atua para manter a gestão de risco “em níveis aceitáveis”. Fui lá ver.
Ao longo das comunidades vizinhas às estradas de Águas Compridas e da Mirueira, vi adultos e até mesmo crianças andando em encostas totalmente desprotegidas. As casas estão numa topografia que varia entre 16 e 75 metros acima do nível do mar. Não é raro ouvir histórias de tragédia nesta região. Entre subidas e descidas, conversei com alguns moradores, mas ninguém quis aparecer. Numa dessas tentativas, subi uma das ladeiras e acabei assaltado enquanto trabalhava. Não era esse tipo de “ponto de risco” que procurava. Fiquei apenas com a bicicleta. Voltei para casa. Por sorte, salvara parte das anotações na nuvem.
Na manhã seguinte, apesar do sentimento ruim que não cessava, resolvi ir a campo com o que me restava. Mais cuidadoso, nas ruas principais, fui perguntando se era seguro se aproximar das encostas dos morros. Dentre muitos avisos, ouvi as seguintes falas: “Tem uma barreira ali, mas não é muito bom, não”, “Se você entrar lá, vai voltar sem nada”, “Aconselho você a não ir, mas se você quiser…”.
No Alto da Bondade, uma rotina em meio ao barro e às lonas de plástico
Eu não quis. Continuei pedalando… e tentando. Em 2005, Olinda foi eleita a primeira Capital Brasileira da Cultura. Mas naquele domingo de sol e chuva, nenhuma cultura parecia estar tão presente quanto a da violência. “Aqui não tem estresse”, disse seu Antônio, de 67 anos, me tranquilizando em relação à segurança. Nos encontramos no Alto da Bondade, onde ele mora há 32 anos. Com as sandálias brancas meladas de barro, foi descendo a ladeira para me mostrar uma cratera aberta. A erosão está coberta por lonas plásticas. Durante as chuvas deste ano, uma casa despencou. Não houve mortes. “Saíram tudinho. Quem quer ficar aqui?”, questiona. Outras famílias ainda moram aqui.
Entre o Alto da Bondade e Passarinho, a ladeira que tem dois nomes (ruas do Cajá e da Comunicação) é a primeira na lista de prioridades do plano municipal. Há 15 anos já era classificada como área de alto risco, alta vulnerabilidade e baixo custo de intervenção estrutural por habitante. Hoje, o que alivia as frágeis condições do solo é uma canaleta colocada por seu Antônio com ajuda da vizinhança. Ele diz que, no segundo semestre de 2020, ano eleitoral, um vereador trouxe concreto para a rua, “para metade da ladeira”. A mão de obra ficou a cargo da população. A parte da cratera continua barrenta.
Seu Antônio nasceu em Escada, na Zona da Mata Sul pernambucana, em meio aos engenhos e canaviais. Estudou pouco. “Minha infância foi cortar cana, roçar mato. E depois que fiquei de maior, minha mãe veio ‘simbora’, meus irmãos vieram ‘simbora’, aí eu vim ‘simbora’ também”, relata. Com a crise na economia açucareira, abandonou a cidade natal por falta de oportunidade e comida. Chegando em Olinda, cuja fama e riqueza são frutos da cana-de-açúcar, ele construiu uma casa de taipa no alto do morro. Começou a trabalhar como servente e, depois, como pedreiro. Formou família. Tem cinco filhos. Apenas a caçula de 15 anos, adotada com meses de vida, ainda mora com ele.
De trocado em trocado, seu Antônio construiu sua casa de alvenaria. Hoje, mesmo aposentado e com dores nas costas, continua na labuta: “Quando aparece alguma coisa aí para fazer, eu faço”. As oportunidades são poucas. Ele é um homem idoso. Além do sustento do seu lar, continua aceitando bicos de pedreiro pelo sonho de poder dar uma casa própria a cada um dos filhos. Quatro dos cinco vivem de aluguel.
A encosta desmorona com o passar dos anos em Sapucaia, perto do Alto Nova Olinda
Ao deixar o Alto da Bondade, segui em frente. Entre descidas e subidas, quatro quilômetros depois, encontrei um morador no topo da ladeira do Alto Nova Olinda, em Sapucaia. Lá em cima, ele me recomendou falar sobre a barreira com dona Tô, que tem 37 anos. “Quem chega aqui e me procura pensa que é uma senhora”, explica Jacilene Maria. O Tô vem de “toquinho”, um apelido de infância em referência ao seu tamanho. Já a terra vem da sua avó, que subiu o morro e trouxe junto a família inteira. A mãe é sua vizinha. O irmão também. Ela mora no mesmo lugar de sempre com marido, dois filhos e um cachorro.
Com o dinheiro do auxílio emergencial, iniciou a reforma da casa na intenção de distanciá-la o máximo possível da encosta, que está desmoronando lentamente com o passar dos anos. Na borda íngreme tem uma lona plástica desgastada e “um muro de arrimo incompleto que não garante segurança alguma”. Também vi um mamoeiro, árvore considerada perigosa por acumular água no solo. São pouco mais de 20 metros até lá embaixo. É uma queda praticamente reta.
Com 8 anos, a pequena Tô chegou a cair da barreira. Em 2019, ao tentar pegar uma folha de aroeira, a cunhada também caiu. Quase morre. Foram oito meses em coma. Mesmo sobrevivendo, ficaram os traumas físicos e psicológicos. Depois dessa tragédia, o irmão improvisou uma grade como proteção. O quintal está cada vez mais curto. Ninguém chega perto. Em dias chuvosos, Tô passa a madrugada acordada. “Quando chega o inverno é só desespero. Nem dorme o povo de baixo, nem dorme o povo de cima. Mas depois do inverno é tranquilidade”, diz. As águas da chuva descem do morro pela canaleta feita pela Prefeitura, que passa por dentro da casa. Quando transborda, o chão dos cômodos fica enlameado, atraindo ratos e danificando móveis e eletrodomésticos.
A Quarta-feira de Cinzas traz o medo de volta
Atualmente dona Tô faz bicos como cuidadora de idosos e vendedora de “pipoca e confeito” na porta de casa. Ela é enfermeira formada. Passa o dia no celular atenta a alguma oportunidade. Assim soube de um curso técnico gratuito de bombeiro civil, que acabou de começar. Estudando, trabalhando, tem buscado sossego para si e sua família. “Barreira, quero não. Todo ano essa agonia. Meu sonho mesmo é sair daqui. Ir para um canto que não tenha barreira”, diz. São 37 anos tendo o alto risco como companhia diária. Em Olinda, onde nasceu e cresceu, existem duas “cidades altas” contrastantes.
Cada qual com a sua história. As ladeiras de Olinda são feitas de alegria ou de medo. A natureza é a mesma. O endereço não. No último carnaval, em 2020, 3,6 milhões de pessoas subiram e desceram as ladeiras festivas. Havia mais turistas estrangeiros na cidade, 400 mil, do que moradores, 393 mil. Dos cofres públicos, a Prefeitura tirou R$ 2,4 milhões para movimentar R$ 295 milhões. Um faturamento de mais de 12.000%. Mas nada dessa grandiosidade carnavalesca parece impactar o cotidiano do olindense que mora no alto do morro, à espera de um “desastre natural”. Para essas pessoas, a Quarta-feira de Cinzas é apenas um sinal de que o inverno está próximo.