Lances secretos (e reais) de um jogo

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publicado em Projeto Colabora – 

Livro em quadrinhos desnuda o tabu da homossexualidade no futebol e passeia por outras mazelas do esporte

Quadrinho do livro: discussão sobre homofobia no futebol. Reprodução
Quadrinho do livro: discussão sobre homofobia no futebol. Reprodução

Se quisessem, Alvaro Campos, Alê Braga e Jean Diaz poderiam perfeitamente estampar um “Baseado em fatos reais” na capa do seu “O outro lado da bola”. O livro em quadrinhos passeia por várias mazelas do futebol e da sociedade – em especial a brasileira – ao longo de 214 páginas, para atestar a industrial quantidade de hipocrisia que contamina o jogo-emblema da alma nacional.

Os autores parecem ter feito uma lista de agendas urgentes de ética, tolerância e direitos individuais, para incluir tudo na história protagonizada por Cris, o craque do Alvinegro Paulista (clube muito popular de São Paulo, de bandeira preta e branca, se você aí ainda não tiver entendido). O assassinato de uma pessoa querida detona um desabafo que sacode o planeta bola.

Na orelha do livro, o jornalista André Rizek oferece o questionamento decisivo: “Existem padeiros gays, jornalistas, advogados, taxistas, farmacêuticos gays. Por que não haveria, aos montes, jogadores gays? Isso diz muito sobre o esporte que quase todo brasileiro ama e que está cheio de preconceitos desde a nossa infância.” A orientação sexual do ídolo da torcida é exatamente o pontapé inicial da trama.




Em quadrinhos sombrios, desenhados à americana por Jean Díaz (que, jamais por acaso, trabalha desde 2003 em HQs como “Mulher Maravilha” e “Fall Out”), a trama se desenrola com cenas tomadas da vida real. Violência das torcidas organizadas – a mesma que mata perto e longe dos estádios –, mistura de esporte e política, cartolas que desviam dinheiro de clubes, envolvimento além dos limites éticos de jornalistas e fontes, casamentos de fachada, pedofilia, corrupção no setor público… Uma odisseia angustiante, que faz o leitor se lembrar do noticiário a todo momento.

Tanto que o projeto surgiu numa conversa prosaica entre apaixonados por futebol, três anos atrás. “Não tem jogador gay, né?”, questionou Álvaro Campos, autor de teatro, TV, cinema, quadrinhos – e botafoguense de ir atrás do time até no exterior. “Vamos contar essa história juntos”, convidou Alê Braga, diretor, roteirista, publicitário, professor – e saopaulino que se mudou para o Rio em 2002 e hoje gosta de ver o Flamengo “por causa da torcida”. Os dois começaram a fazer os textos isoladamente, para depois juntar numa obra a quatro mãos. Díaz juntou-se à trupe posteriormente, viabilizando o formato em quadrinhos.

O tema por trás do tema é a hipocrisia reinante na sociedade e no futebol. “O Cris apenas escancara coisas que existem nos bastidores do esporte”, explica Alê. Quando a história estava quase fechada, ele enviou o texto a uma jornalista americana, que perguntou a época da trama. “Ela não acreditou que falávamos de hoje”, recorda ele.

Outros consultores informais foram jornalistas esportivos, um jogador com experiências em grandes clubes, profissionais de funções técnicas (preparadores físicos, massagistas etc) e integrantes de torcidas organizadas. “Mesmo no anonimato, em relatos sem nomes, ouvimos  histórias com riqueza de detalhes”, atesta Alê. “Achávamos que a pedofilia talvez fosse irreal. E nos disseram que não era – ao contrário, pegamos leve. Ouvimos que raro é não ter”.

O planeta futebol reage com fúria a qualquer insinuação homossexual. Quando Emerson Sheik, atacante do Corinthians, postou foto dando selinho num amigo, torcidas organizadas do clube foram ao centro de treinamento protestar, com a bobagem “futebol é pra homem”.. A torcida do São Paulo de Alê é cotidianamente chamada pelos rivais de “bambis”. E se disseminou nas arquibancadas brasileiras cacoete dos torcedores mexicanos – quando o goleiro bate o tiro de meta, eles entoam o grito “bicha”. De tão aviltante, incomodou até a impenetrável Fifa, que multou o México pela homofobia em coro também na Copa da Rússia.

“O outro lado da bola” (Editora Record) é, sim, livro de ficção – #sóquenão. “Se alguém se sentir ofendido, estará concordando com a gente, em todos os aspectos”, sustenta Alê. “A estrutura do futebol é muito arraigada”, constata ele, diante de tudo que viu e ouviu.

Porque já passou da hora de o jogo da intolerância receber o apito final.

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